As pedras de gelo giravam no copo. O tempo lento de um pensamento que se entendia para lá da distração de pensamento nenhum. Que idade? Que nome de ninguém, sentado ao balcão mirava uma imagem perdida no espelho do velho bar do cais. A esta hora da tarde só as moscas de companhia e ainda o cheiro bafiento da noite atribulada. Dois dedos de líquido âmbar que no copo esperavam. Lá fora uma aragem ia bambaleando as asas de madeira, uma fronteira entre esse burburinho de pessoas que passam, carros e sirenes. Não se respira, o calor de Agosto gira na ventoinha do teto, um enjoo de hélice. Mete os dedos ao copo e procura agarrar a pedra esguia, nas têmporas um acordar ou simples anestesiar de uma dor mais fina que o próprio fio de cabelo queimado de um Verão que não finda. Uma estação agora demasiado longa para uma cidade que não sabe por onde respirar. Todos os canais que vão dar ao rio entupidos de viaturas poluentes e ratos. Ratos que atingem dimensões de gatos, gatos com cores berrantes de verde fluorescente e homens cada vez mais raquíticos. Da alma e do corpo consumidos. O rapaz de barba aparada limpa um copo, olhando para a porta pensando que sem fazer nada o tempo é ainda mais pesado. Contorna o bar e na cozinha pega nos sacos do lixo. Pelas traseiras leva-o ao contentor, que só de madrugada será aliviado. Uma velha prostituta compõe o cabelo. Então rapaz é hoje que vai um docinho? Ri-se sem dentes esgarrando um batom cor de sangue e suor. As rugas e as pregas na barriga já não lhe conferem um lugar lá dentro e há muito que aquela esquina é mais contrabando de pílulas que agitação de ancas. Os rapazes do cais sabem que é ali que a qualquer hora da noite a podem encontrar e a qualquer preço um pedaço de céu por ingestão ou inalação. Quem diria que o céu era afinal comestível? Quando era miúdo o céu era cor de rosa e vinha enroscado num longo pau de ásperas lascas. A mãe sempre anunciava o fim do algodão doce, que não chegasse ao pau pois ficava com a língua cravada de dores. Para a mãe tudo eram dores e dias por vir de mais dores. Assumia até as dores dos periquitos, que dizia ela davam-lhe maleitas do pulmão mas ai de quem lhes desse liberdade, dizia que se esquecia de o ouvir gritar no canto deles. Merda para os pássaros da velha, leva a pedra à boca e trincando com asco o gelo procura estilhaçar essas memórias que têm tanto de podre como a latrina ao fundo. Procura pela carteira no bolso do colete. Apalpa, não encontra. Nos bolsos das calças tão pouco. Olha para baixo do banco e ao longo do balcão, estaria na casa de banho? Teria ele estado ali ontem à noite. Não se consegue recordar. Na última semana tudo estava envolto numa neblina dúbia. Tinha ido à terra, o funeral, a chave da casa da velha mãe, a viagem de barco e agora ali. Traços apenas de um desfilar de acontecimentos que não mais lhe diziam agora. Estava ali, a bebida não descia e da cabeça não saía este azedume de mal estar sem saber que nome concreto lhe dar.
E agora a carteira, mais essa. Um homem sem notas e sem cartões que pode fazer. Rapaz, preciso de ir a casa ver da carteira. Deixa aí o copo de lado. Certo, patrão.
Quando atravessou as portadas de madeira a luz da tarde a pique cegaram-no. Talvez fosse ainda meio dia. Tempo de inferno de verão. Limpou a testa com o lenço e seguiu rua abaixo. No bolso tilintavam duas chaves, as de sua casa e as da casa da terra. Ao caminhar passou pela banca dos jornais. As letras gordas anunciavam a visita espacial dos vizinhos galácticos, tinham sido chamados de Nobes, sabe-se lá porquê. Ele pelo menos não sabia e tão pouco lhe interessava essas modernices, o mundo atual há muito que já não lhe causava espécie de pergunta. Podia descrever-se como um homem drenado de linfa ou genica. Havia o bar que só lhe dava despesas e agora a casa da terra...que faria com ela. Na travessa da sua casa, a vizinha pendurava a roupa, de tal dimensão a gorda que a corda chegava ao chão. Nem bom dia nem boa tarde, que há muito que não se falavam. Já nem sabe dizer como começou ou onde não parou, mas trinta anos de implicância ou de mal dizência, pensava que as pessoas que ainda moravam nestes bairros ou que moravam nestes bairros deste sempre haviam ficado cristalizadas no ócio do pensamento e talvez por isso se odiassem. Que as suas rotinas de lavar roupa ou atirar pela janela o lixo não haviam mudado nunca, antes piorado os seus hábitos de animais defecados de pensamento. Ele próprio, também ele uma pedra dessa calçada que ninguém concertara. Buracos, como os buracos dos degraus de madeira das escadas do prédio. Ou as falhas no seu teto. A chave à porta, o silêncio do interior. Um momento de inspirar e deixou-se cair no cadeirão da entrada. Fechou os olhos, não deu pelo cair da noite.
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