quinta-feira, 17 de outubro de 2024

um retrato de Thanatos



a roupa negra estendida na corda 
quem passa benze-se afastando a morte da sua porta
os sacos pesam na mão com talos de couves pendurados
a calçada irregular que nos faz desandar da linha reta
na janela um violoncelo quase que chora 
o carro que passa e atira borda fora qualquer coisa
o céu pesado prestes ao desabafo
noutra janela a vizinha reclusa do seu corpo gordo
há algo de estranhamente errado no cenário
todos velhos, muito velhos
no dia em que deixaram de nascer 
um mundo dominó de partidas
que importam as heranças e as posses ou os sonhos
mãe nenhuma na terra vela pelos filhos
porque a todos o fim está certo e acomodado no resto
as tarefas sucedem-se com o aprumo da rotina
os preparativos de enterro, o fato e os sapatos
ficam cartas e instruções para os que ainda se demoram
as águas dos riachos correm mais lentas, as luas de arrasto
nos dias do fim tudo tem um sabor diferente
a morte iminente tem tanto de angústia como de vibrante
é nessa espera de se saber certa....para-se para contemplar
o movimento ondulante da roupa na corda
como se fosse importante decifrar o discurso latente
talvez uma razão ou uma formula que nos dissesse 
porque é que cada peça tem o seu peso 
o seu tamanho, o seu tempo de uso e gasto 
porque agora só nos serve o luto
quando nasces, durante muito tempo
ninguém te explica o que é a morte
a morte é uma grande mãe que no céu está descrita
que vela por nós até à última hora
as crianças sonham e com esses sonhos estão vivas
mas deixaram de nascer e a morte viu mais fácil
a tarefa de nos colher...agora...amanhã...sabe-se lá
quando vamos todos morrer
o violoncelo desperta, mais intenso mais voraz
é possivelmente um anjo que nos toca do além
essa melancolia que nos invade de dentro
que fluindo da janela penetrante vai colorindo
de diferentes tons de negro
porque se impõem as rotinas e as horas 
quantas pausas de mais triste ou mais intensamente de forte
e essas notas vibram, se vibram nas nossas pernas e peitos
as notas que nos sopram ao ouvido 
que têm na sua infinita sabedoria que 
a roupa que outrora garrida e vibrante
que a roupa agora pesada e negra
estará pronta para ser apanhada quando estiver seca
roupa negra que combina com morte certa

















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