quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Panaceia

Da periferia vimos todos nós. Porque afinal o epicentro não nos passa pela vista. É tudo uma questão de política. E tem tanto de aborrecida como de compulsiva. E ela come e tem sempre mais fome. Qual seria a etiqueta para este tema? Uma hiperligação permanente de dependência. Uma forma de localização de todos nós numa árvore genealógica que começa onde? Uma análise antropológica que parece ter tanto de inocente como de ignorante. E tudo vai dar à mão de Deus. Como aquela história onde um homem e uma mulher foram deportados por incumprimento de regras. Até o paraíso as tinha? Daí que o raciocínio nos leva sempre ao mesmo ponto: será que o homem alguma vez terá maturidade para viver sem imposições exteriores? É preciso saber gerir recursos, é preciso gerir afectos, é preciso gerir espaços e individualidades. Uma gestão que nesses moldes teria de partir de cada um. Pois, volta-se ao início, a ganância, o poder e a fome material. E um profundo desacreditar que o homem seja capaz de contrariar a sua natureza animal. Então aqui passa-se à educação. E regressamos à regra. Se abordarmos a educação que respeita o ritmo e o potencial de cada criança, caímos na questão da estrutura e da necessidade dela para nos conhecermos. Pelas abas do meu berço, eu sinto o meu colo. Pelos braços da minha mãe eu sinto que sou amado. Se sou amado aprendo a amar. Se...e não, nasço e sou. Em parte do que trago dentro de mim, em parte do que recebo daqui. Da periferia vimos todos nós. Mas no epicentro, deste ponto de vista, estamos nós. Mas é tudo uma questão de política. É ela que hoje nos condiciona o futuro. É ela que escolhe, que decide e que não assume essa responsabilidade. Se eu dissesse: hoje sou o que me foi permitido ser aqui. Estaria a ser realista ou demasiado dependente? Só encontro uma saída neste labirinto suicida...vejo uma porta que tem escrito: planta onde ainda ninguém plantou,cuida como ninguém cuidou e continua como ninguém continuou. Mas que Panaceia tão bonita, numa terra onde a política colhe o que tu plantas e continua a colher em nome de todos. Mas é uma porta, não deixa de o ser. E é a única que continuo a ver. Seja aqui ou em qualquer outro lugar. Talvez o problema não seja do homem mas sim do homem político. E assim, a educação do homem político resolveria e mudaria todo este labirinto. Mas quem gere esta educação senão outro homem político? Todas as respostas trazem novas perguntas. É o castigo de quem insiste em pensar. Cada um que se agarre à sua panaceia, de colo precisamos todos nós!   

quinta-feira, 5 de julho de 2012

3 e uma vírgula

Três meses são o quanto baste para desaparecer por aí, por lugar nenhum e onde todos me encontram. Como se a concordância fosse corrigível em todo este enredo que nos engole e nos apaga da existência medíocre a que nos permitimos na correria do dia a dia. Adianta alguma coisa correr mais depressa para não chegar atrasado? Adianta querer fazer tudo correto se o azar prefere puxar-nos o tapete com a maior das satisfações? Adianta o quê? Adianta nada. Porque o momento é mais veloz, porque queremos e às tantas já nem sabemos o quê e uma vírgula...não, várias vírgulas que se deitem na curva e todas elas juntas não me deixem passar. Que não me deixem passar. É tudo o que preciso para aguentar, nesse momento, esse momento, só eu. E noto que nem me preocupo no onde, tanto faz, assim mesmo, aqui, na minha casa é o suficiente. Não preciso de vistas, nem de variar de posição. Não preciso de me sentir com os pés no chão ou de costas no colchão.  É tudo uma questão de fechar os olhos. E limpar a mente. Curta e simples a ideia. E só de pensar ser uma ideia já de si ocupa demasiado espaço. Branco. Neve. Paredes de cal e copos de leite. Confesso, tenho uma perturbação espacial dentro da minha cabeça. E adoro entreter-me com ela. 
E se todos os parágrafos fossem sinónimos de começos? De avanços e ligações que nos contam histórias. Do ponto zero, do ponto perfeito. Já me perguntei porque gosto tanto desse grau. A resposta não é importante. Como disse, do que preciso é de uma vírgula, não de outros pontos sem sossego. São as linhas do vazio que cozem as minhas forças. Quase tão mágicas como a elegância de uma pomba que leva na boca
a última verdade absoluta deste mundo: estamos de partida. Estamos sempre de ida e sempre a pensar nas voltas. Que desperdício, por isso é tão importante colocarmos vírgulas em tudo isso. Eu amo a vida e ela deixa-se ser amada por mim, apenas assim, não há amor de volta. Quando sentir que ela me devolve, talvez me sinta então aborrecida e me dedique à morte.
E, por mais que tente, rente à letra, na brevidade de uma sesta...ela é tanto mais branca quanto eu sou negra. E que fazer? Nada, mas nada mesmo nada.
   

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Clandestina Mente

Clandestino. Como lugar de acontecimentos obstruídos ao mais comum dos mortais. De fenómeno em fenómeno, pérolas de submersão oceânica. Ostracizadas no mais perverso dos pensamentos. E lá nesse lugar dorme um desejo. E lá nesse desejo dorme um Eu. Como pode o escafandro que te envolve o corpo chegar ao fundo?  A tua mente está perdida, empresta-me uma agulha e na água serei encontro. E na água serei encontro. O que se pretende é que a areia nos explique porque tem o mar uma amor por ela. Um amor daqueles que enrolam e enrolam e não deixam nada. Escrevi o teu nome com a cana da pesca e ele veio e como borracha deixou-me tristeza. Sete ondas. Sete mares. Pesca recreativa para a mente. Pesca de palavras que possam ser transparentes. Sublimação de amores decadentes. O isco está lançado, na mais carente das redes. Se não fossemos todos peixes, andaríamos de cabeça no ar. Talvez sejamos peixes de pernas pro ar. Daqueles que se vêm nos mosaicos pintados à mão. A minha embarcação já não tem muito mais tempo aqui. Por muito que tenha esperado, nesse lugar clandestino, acho que foi o próprio destino que me submergiu no mais comum dos mortais. Perverso tudo isto. Mas não mais perverso que o desejo de me encontrar. Clandestina Mente. 

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

história sem absurdo

Tu és o meu parque infantil. O meu baloiço e o meu escorrega. O meu bebedouro e o meu cavalo. Já chega. De porta fechada dizia: não é mais permitida a entrada! Rapariga tens formigas no bolo e eu sou guloso! Agita mais um pouco. Gosto do leite bem misturado com o chocolate. Bato com os dedos na mesa, e os meus pés querem dançar. Roda esse vestido. Gasta a sola do sapato. Vamos até à aranha. Massaja a barriga até às entranhas. Mete-me o dedo no umbigo e salta comigo. Olha, alguém deixou uma carta dentro do lago. Embrulhada num saco de plástico. Anda ajuda-me. Traz uma cana. Deixa-me ler, o que diz?
Quem procura no fundo pelo sentido do absurdo tem obrigação de devolver a resposta ao mundo.
Olhamos um para o outro e fugimos. Para lados opostos. Esconde esconde. Corre corre, que eu te apanho. Mas algures a meio do caminho perdemos a carta e esquecemos o recado. E os anos passaram e quando lá voltamos dizia: não é mais permitida a entrada! E tudo passou a correr. Não como escorrega, não como baloiço, não como bolo guloso. Escadas, só escadas. Degraus e lances de chances perdidas. Numa corrida para chegar ao topo. Para pisar o sonho e deitar fora o prémio. Tu foste o meu parque infantil. Hoje eu penso que nunca conheci outro. Mas não tenho que me sentir triste com isso. Tenho a certeza de que alguém encontrou a carta e deu continuidade à resposta. Eu terei sempre as nossas memórias e o bolo, bem esse, já nem as formigas lhe pegam mas aposto que tu continuas guloso!
Estava a pensar em dar um final diferente a esta história mas francamente, penso que não sei a resposta e talvez nem a pergunta ela própria me faça sentido. Porque nada disto é absurdo. Se nós perdemos a carta foi porque não merecíamos a pergunta.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Relógio de Sol II

Não há nada que me dê mais prazer do que ler ou escrever ao Sol de Inverno. Porque é quente e calmo. Pacífico. Na mesa ao lado, um riso absolutamente sinistro dá pela cara de Lili. Uma mulher alta, sempre vestida de preto que sempre que aqui vem bebe por três. E três minutos bastam para que se ria com se estivesse num velho cabaret embebedada até aos ossos. E as amigas falam não se percebe de quê, não importa saber de quê. Foi a golden retriever que por momentos impôs silêncio na Esplanada. Bendita. Que atravessou a correr o estrado atropelando tudo o que se meteu na frente. E ao silêncio seguiram-se os gritos das amigas. Bendita abocanhou a cachorra da D. Brígida, uma chihuahua que em segundos ficou esfanicada. Foi apenas um susto, nada de danos. A bem dizer a cachorra já manifestava o feitio da dona há algum tempo. ~
Meto à boca um rebuçado de amora. Se fosse a minha cadela dava me a mim o fanico. Sempre critiquei aquelas pessoas que falavam dos seus animais como filhos, tanto gatos como cães. Primeiro apareceram os gatos na minha vida, amor à primeira vista. Animal independente com carácter único. Quando o meu gato adoeceu com aquela gripe horrível e ficou internado sem saber se voltava para casa, aí eu percebi o quanto nos ligamos a eles. Tenho alguma reticência quanto ao inverso, se fosse eu a desaparecer da vida deles, será que sentiam a minha falta? Quando chego a casa lá estão eles, os dois de pé a olharem fixamente para mim à espera do mimo que me permitem dar-lhes. Sim que ninguém se iluda, os gatos são os nossos donos. Tudo funciona quando eles querem e como querem, excepto à lei do chinelo, aí eles reconhecem por momentos uma autoridade. Quando a cadela foi lá para casa, ainda nem tinha dois meses, aí eu descobri que os cães de facto são mais evoluídos emocionalmente. Quando falo com ela há alguma coisa no olhar dela que me responde. Teimosa como qualquer criança, meiga e resmunguona, mas sobretudo, ligada a mim. Ou pelo menos tenho essa ilusão. Sim, todos eles dormem na minha cama. E sim, já não encarava o meu dia da mesma forma sem eles.

Aquele que conhece verdadeiramente os animais é por isso mesmo capaz de compreender plenamente o carácter único do homem. Penso que Lorenz não chegou à parte do homem. Eu pelo menos cada vez estou mais longe disso. Não é só porque a mulher ri como uma puta, não é só porque a D. Brígida é um ser insuportável, não é só porque se critica tanto o amor das pessoas aos animais. É porque a expectativa da relação criada é imprevisível. Estímulo-Reaccção. No caso do homem, a equação nem sempre é linear. Mas isto também não é novidade nenhuma, todos nós todos os dias nos surpreendemos com alguém. Para o mal ou para o bem. E até temos algum prazer nessa surpresa. Cria dinâmica nas rotinas de mesmidade. Mas quando sistemáticamente, alguém nos surpreende pela negativa, aí devemos pensar se na verdade essa pessoa tem algum afecto bom por nós. E podemos mesmo perguntar-lhe. E podemos mesmo responder-lhe: vai-te foder. Estou calma, muito calma. Se estivesses aqui podias observar-me a sorrir. Nada disto tem importância nenhuma porque uma vez mais, o sol já se pôs.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Pólos

O mar enrola na areia, ninguém sabe o que ele diz. E eu prometi voltar na hora em que o sol estivesse mais quente. Na hora em que o conforto me permite viajar ora no ontem, ora agora, e já era. Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...Do fado à festa, da ciência ao coração, da razão à sua ausência. Nos dois pólos a oscilação permite-me criar. E acelero e ascendo, ou directo à decadência. Umas vezes em nada e eu vegeto outras a um ritmo extenuante. Assim eu vivo. Na boleia de tudo o que existe à minha disposição, eu sinto. Não sou várias, sou uma só em muitas disposições. Também à volta assim o é, não é? Não vês?


- Sabe o que é que aconteceu ao meu vizinho? A mulher estava a levantar dinheiro no multibanco, apareceu um indivíduo que tentou assaltá-la, o meu vizinho tentou defendê-la, o indivíduo sacou de uma arma deu-lhe um tiro no peito e matou-o. O meu vizinho era missionário, distribuía a reforma dele por quem tinha mais necessidade. Foi piloto da Tap.



O que é que Deus anda a fazer? Se a morte colhe ao acaso sem critério de bem ou mal. A Teoria do Equilíbrio do Universo é curiosa. Se alguma coisa de errado acontece que prejudique alguém, noutro lugar algo de muito bom beneficia outro alguém. E não é nenhum Deus que promove este equilíbrio, é a ordem da Natureza.



Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...Mas na ausência de um sentido que dê sentido aos meus sentidos, também eu preciso de filosofias. Mas a minha filosofia é primária, olho por olho, dente por dente. Animal pouco crente na ideia de dar a outra face. Dar a outra face pressupõe inactividade e fé na iluminação da culpa interior do outro. Tretas, quem não tem moral, nunca a terá. Protejam a vossa família e os vossos amigos. Protejam os vossos bens e o vosso carácter. Protecção ou justiça pelas próprias mãos? Para além de Deus, também não creio na nossa justiça. É lenta, burocrática e sobretudo pouco eficaz. Qual é o papel da justiça se não impor limites no cidadão. Ci da dão, outra expressão curiosa que me leva a mais uma descrença: a sociedade onde supostamente me deva inserir. Com impostos, com imposições, com restrições e sem nenhuma ou qualquer protecção ou garantia individual de saúde, educação e projectos de vida. É esta indignação que me faz descer à terra. É este não querer pertencer a nada disto, porque não concordo, porque não o elegi, porque não o compreendo.


Na simplicidade de um ignorante guardador de rebanhos reside por ventura a solução para as sociedades doentes deste século. No regresso à terra, à comunidade, à cooperação e reunião familiar, à produção do essencial. Quem acredita nisto, precisa de uma fé maior: a fé nos homens, na sua capacidade de fazer o bem. Mas o homem é um animal. Territorial, egocêntrico e cada vez mais, desenraizado da terra que o sustenta.



Anti-metafísico. Em última instância para quem se sente atormentado com tudo isto. Para quem se sente pequeno para agir. Quanto a mim, desejo que permaneça num dos pólos a minha filosofia animal e no outro uma força imensa que me leve a crer que aonde as minhas mãos alcancem, eu posso fazer melhor.

domingo, 29 de janeiro de 2012

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De lado pareces mais nova. Não sei porque me disse aquilo naquela tarde de Verão nas areias da Praia Verde. Deixa-me cuidar de ti, só precisas de deixar que eu fique aqui. Junto a ti. Foi o Verão em que comecei a sentir-te crescer dentro de mim. Como semente, como espaço de gente nenhuma. Sombra de ser anónimo que ao movimentar-se projectava do meu corpo rastos que os outros deixavam em mim. E cresceu, com ramos que me chegaram ao coração e ao cérebro. E pelas minhas mãos começaram a ganhar definição. Quadros, fotografias, filmes, retratos de lugares comuns. E porque me dava prazer, não podei este mal. E ele foi crescendo como Hera nos muros da minha necessidade. De querer mais. Todos os dias mais um pouco, mais um hora, um minuto. E toda a minha liberdade foi contraída dentro de mim. Só em ti sentia vida. Só nas tuas horas me sentia plena. Só nas tuas palavras encontrava paz. "Uma mulher deve ter dinheiro e um quarto próprio se ela quiser escrever ficção". E eu não tinha. Nem um quarto, nem sequer dinheiro. E foi então que me tornei escrava de ti. Feliz quando estávamos juntas e miserável quando não estávamos.Desespero. Lugar de dependência animal.

Enrolo-me sobre mim própria. Aconchego o meu território e pesquiso o infinito. A minha alma traduz-se em palavras de dispersão. Ao centro, o meu ponto conector é um vector apontado aos céus. Lá no alto bolas de vidro ascendem ao Paraíso. Dentro de cada uma envio uma palavra. Da minha boca ar quente acelera a ascensão. Para fora. para cima. Para longe da vista, que não sinta. que no final me encontre vazia.

E as minhas costas tornaram-se negras. Tatuadas de vergonha. Porque não chegámos a velhas. Porque a queda não foi conjunta. Porque parte de mim foi fraca. E apenas a carne voltou à terra. Incompleta e não realizada. Não, volta atrás no tempo. Imploro-te que inspires nesse momento. Antes vivas amordaçada cá dentro do que em lugar nenhum. Rodopia, espiralisa. Mescla todas as tuas frases. Enceta todos os pontos finais. E em cada pequeno verso, repousa. E recupera o fôlego e começa de novo. Acredita, é doloroso, é exaustivo mas é nosso. Em partes seremos apenas metades.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Relógio de Sol I

O sol bate-me do lado esquerdo do rosto. Tudo é verde e sereno. Restam apenas alguns minutos para que fique mergulhado em sombras e nevoeiros de Inverno. Sinto-me mais perto da mãe. Ao longe os carros parecem ondas de marés ruidosas. O vento é rente ao chão. As folhas queixam-se aos melros e eles queixam-se ás cigarras adormecidas. E eu movimento a mesa onde escrevo para apanhar os últimos raios quentes de vida. São Oliveiras, tal como as via quando era criança. No alto da colina em frente à casa e corria para apanhar o por do sol tão vermelho e tão quente do Alentejo. Cheguei tarde hoje. Sinto frio e por isso não consigo que as minhas memórias me transportem para lado nenhum senão para casa. No tempo de um cigarro abro bem os meus sentidos e aguardo. Um último momento só para nós, hoje. A marmelada, as nozes, o azeite, o sapo, o banho gelado do tanque, o chinelo da avó, o presente do aniversário do primo, o pai que dorme na sala da lareira, os bolos da D. não me lembro do nome, as estrelas e os grilos e o quarto das três camas. Eu tinha uns calções vermelhos e tu tinhas uma bicicleta amarela.
Não consigo, o frio traz-me sempre aqui e longe fica tudo o que me levava até ti. Aperto as mãos uma na outra, talvez mais para ali ainda esteja quente. Não. Amanhã então marcamos encontro logo pela manhã. E teremos o dia todo para estar juntas.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

A visão de Zeca

-Anda, não vens hoje à noite? A Malta vai-se reunir no Largo em frente ao quartel.
-Sim, encontramos-nos lá em baixo. Vou dizer aos outros que é Hoje!

20 de Janeiro de 2032,20.45
Hoje faço 50 anos. Sei disso porque o intrafone está programado há três anos pela minha ex-mulher para me acordar neste dia sempre com Joy Division- love will tear us apart. Desligo esta merda, tomo banho, tomo a cápusula, visto o casaco de cabedal e saio. A passadeira avariou. Descer as escadas relembra-me a antiguidade da minha própria pessoa. Somos todos velhos nos dias de hoje. No senado a média de idade é de 17 anos. Quando eu tinha 17 anos o mundo ainda era azul. Hoje o céu é magenta. Faço parte dos Renegados e por isso, a minha comemoração apenas pode ser feita em lugares públicos. Expostos para que nada se passe longe dos olhares da S3. A minha identificação termina daqui a cinco anos. Depois disso não tenho mais licença de circular por Lysboa.
Nos últimos tempos tenho andado pela cidade velha. Tenho procurado as memórias da minha vida em livros, postais, fotografias das gentes desse tempo. O ponto de viragem bateu no ano de 2012. O mundo como o conhecia nunca mais foi o mesmo. Foi a guerra que o transformou irreversivelmente. Não sei se lamento não ter feito parte da tragédia desse Maio. Na verdade, depois disso o conceito de estar vivo deixou de o ser. Passamos a ser permitidos. E essa permissão é a premissa básica para a morte. Mas, como em todos os momentos da história do Ser Humano, também na data se formaram rebeliões. Sobretudo formadas por mais velhos. Eu faço parte da que está menos activa mas associada a todas as outras. Faço parte da mais antiga e sou também eu, dos mais antigos.
Hoje está marcado como o dia de mais uma tentativa de aniquilação do senado. O Ataque electromagnético do quartel. Pelas 22 horas já se saberá se será mais um Dia-D da História.

- Acorda, acorda Zeca. Estavas a ter um pesadelo!
- Não,que dia é hoje Zélia?
-24 de Abril de 1974. É hoje...
-Sim é hoje...mas não será agora!