domingo, 28 de fevereiro de 2016

gomos de tangerina



a espessura da caverna epiderme
descascando-se a miséria dos acasos
vultos pardos ácidos
a cicatriz de mato, o golpe certo
tal um caranguejo domesticado
comendo tangerinas esfomeado
trémulo o ponteiro, vive-se no passado
mergulhado na primitiva lembrança
no resto do mundo comem-se laranjas
a imobilidade dos frutos colhidos
que se grita por socorro
nessa atmosfera de locomotiva
vagões de homens deixados aos zigue-zagues
a cada novo êxodo a roda da fortuna
fruta abandonada nos campos
conchas de moluscos feios
certas matérias retiradas do coração do fruto
o sol apaga-se no horizonte
setas em fogo de criação-ovo
espelhos no jardim dos ciclos da ternura
olhos de luz seguindo o seu curso
raios de lua que abraçam o frio imenso
à noite laranja é veneno
quedas de água de intoxicação e esforço
atravessam-me os poros do corpo
célula-viva
ecos e acordes de um pacto além morte
num esforço imenso da entrega
corpos mendigos estendidos sobre a eira
a consciência animal sob o coração esfolado
debaixo da pele de um gato, a ternura
um animal completo, completamente negro
de intelecto e superstição e afecto
de ciclos lunares espírita
na dormência de um colo ermita

faíscas rasgam o tempo de ser hora
soando como fios de aurora
tropeçando na consciência
exprimirem-se imagens sem pronunciação
tremendo o chão de incerteza
decompõe-se gomo a gomo a verdade absoluta
num futuro de tangerineiras sem fruto
para uma terra pura de puro fatalismo
certa, de não haver sequer futuro

que dorme nas profundezas do mar
inerte amor
quando era pequena no limiar do prato
batalhas de gomos e ansiedades de estômago
para numa concha se depositar
o apego a uma mentira
como se todas as conchas se abrissem em pérolas
essa pérola-monstra cuja fome nem mil peças
subitamente na cegueira da felicidade
deixa-se de brincar com a saciedade
deixa-se de gostar do fruto do mar
e se repousa muda numa gritante concha vazia

nem todas as tangerinas são doces



quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Antes que Te aconteça


Filho da mortal frigidez que nos extingue
da afasia, da astenia, da marcha lenta
da fantasia
a vida pertence a uma folha em branco
à terra revolvida desmaiada de futuro
à força do nunca baixar dos braços
da cal viva, da cal que queima em carne viva
o sangue castigo que se derrama
esse castigo de estar vivo
porque o esqueleto do mundo tem tristeza
teus ossos são poemas
Tu
que caminhas em pontas de agonia
torrencial, rente ao chão, transportando
em síncope os movimentos do enforcado
ata-se ao pescoço um desafio
encarregue da salvação da tua alma
a lâmina, o rubor, guilhotinado olhar
que fixas saudoso o horizonte
essa linha que não é mais uma fonte
que a terra para lá continua
sonhando confusos intermeios
Teus receios
bichos papões da vontade
cabeçudos baloiçando à dentada
corações coralizados atirados
borda fora

na chapa do céu oceano
mira, Teu reflexo narciso
desse húmus contos de fadas
somos histórias extraordinárias
opus estorvo, o cu de judas
autópsia de um mar morto
a qualquer hora, muralhas, defesas
pequenas falhas em gaiolas de lira
o gosto salgado sanguinário
porque para se viver há que se matar
uma ideia, um pensamento, uma dor
Tu que só podes ser suicida
de um outro Eu que não Tu Vida

despidos de ser



o avesso vale o interior
de se andar despido de tanta dor
de se mastigarem as coisas
no reflexo de um Maçam-me
podia ter despido uma desconhecida
dos intocáveis nós do seu vestido
monstros de múltiplos domicílios
um trajar de reversível
ostentatório de berloques e fantasias
a minha musa tem apenas dias
e algumas noites de acordada
amostras do começo de ser gente
carpetes e retratos para contraplacado
tudo vendido no mercado
quando o céu reflecte o final do dia
o adormecimento de Vénus
um segundo império
começado de um bocejar
que se deixa em ponto morto
as vozes autóctones anafadas
os escaravelhos agitam-se na folhagem
tudo é curiosa observação onírica
para a paisagem perdurar no retrovisor
nessa memória-santuário
inspirada na mais pura das linhas
dos antagonismos que nos contemplam
em que se fundem as massas
no anonimato sem carapaça ou véu
uma paisagem-romance
o purgatório na rodagem mecânica
o óculo numa espécie de focagem
a vida é um grande desengano
desce-se o pano e não vai nada
a cabeça móvel de um homem miniatura
a repetição de um paraíso inquestionável
tudo no paraíso é uma questão de estatística
o complexo doentio dos mandamentos
 e que mandam os mandamentos?
das grandes artérias da vida dádiva
obrigar um mundo qualquer a parar
repousando na retina milenar
o enfim descanso de não se ter de continuar
faisão em tapeçaria de parede
alimentado a grão concentrado de ilusão
a ideia-fixa da terceira dimensão
que nos persegue a transformação adiada
remenda-se tudo sem um pouco de nada
os habitáculos do céu são perfeitos
no vértice da pirâmide umbilical
babel parindo algo de angelical
me coloraram um nome
onde a escuridão tem olhos
para nos definir sem fisionomia
volto-me, para a irradicalidade de um mundo
sem continuidade
para-me o coração de narrador sem vontade
encarniçamo-nos de uma sorte desfavorável
a escória humana
aproximando-se a passos de enterro

compreendo agora um só refúgio
contemplo as pequenas esferas
planetas-umbigos abrigos


quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

o abismo por instante



quando nos morre a alma na poeira do chão
na língua latina o silêncio da cobardia
o que levita é a vergonha de um vida sem luta
a cisma de um sorriso medicado pela morte
em peregrinação descarnada a ironia
como um esqueleto que guarda com cuidado
a caixa do coração para oferecer a outro corpo
convulcionar-se até à combustão da loucura
as cinzas de uma alma vazia são a especiaria
que adorna a festa das epifanias
a chuva que na teimosia contorna as sombras
os campos desnudos são entregues ao acaso
à sibilância da queda das estrelas, não há desejo
a transpiração da terra lacrimejada são nevoeiros
a vida desmembrada pelo exílio do anil
cada vez mais longe desse céu anil
quedas d´água de segredos engenhos
colunas de pedra e espelho
são as cataratas da cegueira de uma vida inteira

quando nos morre a alma na poeira do chão
de que serve estender a mão com nostalgia?
saudades que não alcançam porque não tocam
a cidade murcha como uma rosa do avesso
para que se imagina haver outra vida?
de todos os quadrantes da existência, tristezas
a devoção despede-se de nós
algo raro e sabotador emerge com tamanha dor
são os ventos cortantes da melancolia
purpurinas para antigas liras
a foice da musa que encanta a paixão última
exercício marcial de erudição sublimar-se
a doma da dureza de alguns milagres
segundo os cânones do universo
quando dança um planeta em volta de um homem
o abismo por instante seria a vida
da maquinação inocente o refúgios dos fatigados
parar-se no cadafalso equilíbrio
que só o imaginário poderia ser fictício descanso


quando nos morre a alma na poeira do chão

comovo-me numa cidade de espectros
choro numa cidade-deserto






segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

apocalipse Agora



os bichos bichanam
palpitam os homens de puro bruxedo
a aba do monte que se dobra em montanha
o céu tresmalhado de doença
vai chover
e o capote obediente ao mínimo passo
minguar-se num pequeno coração resinado
fazendo o inventário dos solitários sobreiros
tudo pode ainda germinar nesse preâmbulo
de morte
laminares de vida microscópica onde deus
se manifesta
os arrufos adormecem na zurrapa
onde está ninguém em nenhures
do sangue à terra
que termina na foz da solidão
ser um farol das horas do sol
e depois das estrelas sem constelação
os espíritos de vanguarda emanam
galvanizados, irados, dançantes
episódios de sonho que ardem na fogueira
nasce um homem sem infância
das alavancas a mó, o pão que consome a vida
cadinhos onde se conjecturam rumores
que caminhos outros, tractores
a terra dura abrindo-se aos infernos
nem os animais têm mais préstimo
da faina dos esquecidos não há lembrança
é um agri-doce de paz e inquietude
os olhos negros de luto
por aqui há sempre luto
um qualquer sentimento definitivo de partida
que significa estar mais só
contemplarem-se os dias felizes
num feixe romântico de encantamento com a morte
ser-se apenas um apontamento no horizonte
uma árvore, uma cegonha, um pastor, um cão
o severo entardecer de comoção violenta
uma lágrima furtiva para o último
sempre desiludido com o próximo
alvoradas indesejadas...cíclicas, amaldiçoadas
onde morrem os santos
capelas escancaradas para altares de pombas
contam-se histórias em voz alta
para antepassados espectros de saudade
daninhas as almas que renascem
persegue-lhes a melancolia nesses dedos profanos
que das paredes e dos pátios as ceifam os anos
a morte nasce com a vida





terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

as searas do nada



sofre de fastio no seu poiso
lactante de pedra, o seio
predilecto filho da lua
as arestas chocalham nas matrizes
das palmas oleadas de amor, embalar
um traço encardido, nascemos com rugas
da ranhura da fechadura emerge
o nostálgico olhar do que não foi
o choro em uníssono antecipado
inventam-se degraus de fuga
para se deslizar por abismos sem luta
águas paradas de mel de esteva
o diâmetro, amasso, estendido
abismado numa espécie de fermento
migalhas de pão de deus
cismar o que em mim não saciado
somos tentilhões na sombra
para galhos aparafusados
de um artifício anti natura
por isso não houve sequer ruptura
olvidou-se-me um passado...
diz que nós também já falecemos
só ainda não chegou o nosso tempo
contemplamos no céu estrelas-espelho
do alpendre o fruto mostra a força
depois de maduro e não colhido
procrastinando-se de esperança
que se vai consumindo oxidada
ceifamo-nos na geada...
fora de um tempo que nem foi tempo
por tudo isso,
atrasa-se a sementeira
de joelhos a seara domada
ainda a mão se entrega à terra
nesta morrinha, cacimbando
o bafo divino da ensinança
que das tristezas iguarias
não cresce nada...
o cão que manda na gente
o chão magro que engole a gente
caminhar-se arrimado ao mundo
caminham os sapatos do defunto
nesse passo sem préstimo
mas o chão é sempre vagar
porque assim se gosta de estar
cada lágrima é um poema que avento
que cai ao solo sem amanhã
até o nada carece de tempo