segunda-feira, 30 de maio de 2016

extractos do coração



está tudo escrito ontem
o passado é muito extenso
nada disto é um ensaio

vogar em sedimentação
da carne à pedra
num relâmpago o afago
do olhar que apago
tudo é um festival
de espectros bem ensaiados
a saudade à margem sem costura
no estuário de uma ardósia de sopros
deixo ser formigueiro jugular carótida
a disposição dos galhos dos umbrais dos vasos
dos tímpanos do mundo
faço
um alçapão para o silêncio
em telegramas de micro poemas
todas as palavras são promessas
e até aquelas não ditas

drenando sonhos coágulos
uma malha laça de afecto
que dura e dura no contágio
labiríntico de horizontes
o vento acenando a possibilidade
da imutabilidade das coisas
das siglas do corpo a corpo
que contém o céu soletrado

e quer oiças quer não oiças
tudo não deixa de ser fado



sexta-feira, 27 de maio de 2016

a liturgia da palavra



o fumo da boca à nuvem sem anáfora
imagens temporárias desse dialecto
sinal dos tempos de um tempo que não volta
aos defuntos e aos vivos
comungam o poema e o coração em
células de braille desgastado
trepando varandas orientais sem telhado
candeeiros nocturnos redundantes
encaracolando momento mortis
do ventre rebelando-se a oração num gesto de paz
aos olhos da virgem parecem humanos
um coração de espinhos apertado
todos os homens sofrem do oculto
da astrofísica vascular do céu inacabado
achas de resíduos sem matéria
absolvidos do sangue da luz extinta
de partículas emoção eco fantasma
o corpo às vezes é um elemento à beira
do precipício alfabético das sombras
do princípio destronado dos deuses
olhas-me como se estivessemos perdidos
para sempre
não sei se piedade se compaixão
de um caos desencontrado no nevoeiro
contemplo esse deus em cativeiro
como se apenas presente nas paredes de um templo
sou convidado a um relicário vazio
à imagem de um sonho inominável
meio animal meio homem selvagem
que repulsa em te demoras?
no limbo de uma lágrima de porcelana
nas reminiscências de uma última hora
meu coração não podia ser mais franco
estala aos assobios ásperos golpes
no arrepio de graves moldes
teríamos sido feitos à imagem de um animal que sofre
teriam sido as aves mais livres
estariam as aves mais perto do céu?
declaram-me as raízes que me sinto feliz
debaixo do tecto em que me fiz
de resto que pode o tecto incomodar
se são as pegadas que insistem em não te encontrar
que pode um cego procurar
se ao tacto o teu corpo é frio adormecido em vidro

os poetas têm apenas espinhos
do coração...só caminho

quarta-feira, 18 de maio de 2016

xilema matricial


lugares
da poção da vitalidade
esse caldeirão das bruxas febris
sintoma de desarrumo
desse tecido vegetal matricial
diante da pura evanescência
fantasio com a minúscula bússola
que me cabe em vão num fonema
numa página de celulose feitiço
súmula epicurista dos dias
a tolher fuso adormecidos
no histerismo de um beijo despertar
escuto o que de mais íntimo há
entre as folhas
no movimento livre mas contido
onde
o vento é vago dialecto
bailarino virtual no meu tecto
da declinação da permanência
conversam
do tamanho do sufoco se misturam
nessa reza automática ancorada
represento o poema
a espécie que o contempla
e tudo o que mais resta da sua ausência
no paradigma feminino do éter
não pertencer a nenhum conceito terreno
solitariamente atravessado pelo vento
opero a subtracção da gravilha
pedra a pedra
desses passos cristalizados
no impulso de desertar
pela emoção justificada de ficar
compreendo a vocação do absoluto
nesse sono de infância gritante
à viagem meridional do pensamento
mas que lugares pode o vento riscar?
desse traço de devastação
folhas enroladas esquecidas a um canto
destinadas aos grandes úteros aterros
desprezível endereço
são cabelos de bruxa que enfim vejo
desalinhados num poema condenado ao exílio
que se dispam as árvores já destinadas à fogueira
e se quebrem os ramos dos complementos sem beira
há algo de tenda nómada ou fenda ou nódoa
nesse xilema onde corre o veneno da cabeça

terça-feira, 17 de maio de 2016

hóstia viva


corpo místico
que recebe a alma em vão
escamoteando a realidade
na esmola de um suspiro
hóstia viva truncada por tábuas
machadadas na raiz de um velho gitano
a labuta da cruz nas suas próprias linhas
toma o verbo como pedaço de carne
e na clausura do poema sacrário
oferece-te
ingrediente mundo silencioso
filho do homem
na imolação de um coração teimoso
na sua aparência viva
na unidade de uma só paixão
o prato da balança pende
na expiação dos dias perdidos
quando a terra é dura
serão precisas mais palavras
vindas de todas as correntes sanguíneas
na abstinência de algo físico
Maria e todas as mães
que choram a partida de um filho
no cume da montanha dos partidos
é na perda que mais perto e mais longe
nos encontramos do destino
sangram bárbaros na labuta diária
a cruz da vida que nos atravessa
não há penitência em consciência
é real e violenta
mas venha a nós o Vosso reino
mandai um exército de poetas
que o mundo anda sedento
da cabeça aos membros
todos percorrem o caminho da indiferença

a humanidade dorme sobre pedras ruínas
adormece nos abismos da matéria prima
lascas soprando um vento cálido
a agitação dos dedos dobrados em punho
por osmose, a palpitação do coração
preso nesse momento de redenção
na palma da mão de Deus se entregam
campos austeros de intoxicação
somos papoilas flamejantes
nos filamentos de um ópio
que não mais errante

o laconismo de toda a expiação
desses dias vividos sem comunhão
nesse porto onde desafoga
um coração minguante
com a ironia das coisas dolorosas
escreve-se
nos pergaminhos da coragem
foram inventar outro porto
foram invernar para outro sonho
que flutua antes de ir ao fundo
esse corpo que respira sozinho

guarda-mór da linha austera
das altas esferas absorventes
tudo ainda te espera
tudo ainda te acredita
no último quartel de vida eterna
poeta

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Quid hic agis?


há razões silenciosas
razões que nos transformam em titãs
os condenados a murchar
porque um espírito de passagem
permanece mármore
porque nos acenam do fundo os pilares do amor
laivos em cordas bambas
de chagas de vida insana
que divertem os escravos volantes na mão de deus
a hera comendo bichos opiáceos
para a entrega a um céu opaco
em fúria a caçada dos anos juventos
quedas de água manipuladas num pau de chuva
torcem as asas num frágil encantamento
de acrobacias de olhos abertos
há bichos que dormem de olhos abertos
pregos atirados às tábuas
o tique taque frígido
filtrando a luminosidade de miosótis
nesse staccato triunfado da matéria
vulgar uma ideia reparadora
de que todos podem ser reparados
mas há razões que nos transformam
em milhares de cadáveres tranquilos
o cadáver de um deus desaparecido
Quid hic agis?
escrevendo o diário de um convertido
enquanto todos descem à arena
almas voluntárias caminham até Ele
eu escrevo


sexta-feira, 6 de maio de 2016

acalma o coração



caminhando sobre o fogo não articulado
somente de pés descalços
para o renascer na curiosa palpitação
das brasas próprias do chão
de que se vestem os nus
da candura de filantropias
revela-se a si mesmo
quando o eco soa mais alto que o pensamento
pétalas de narciso por mãos alheias
fui feito de rasgos de infinito
da lapidação de um rude coração
pétalas de sangue de uniões selvagens
descubro-me na curvatura de mil coisas
nenhuma delas me deslumbra mais
monstros, pó, desenhos de um só traço
mundo vasto fósforo efémero
os estames e o estigma
centre e fuga e ilumina
Ícaro sol fortuna
sinto-me levado de arrasto
ou preso nesta varanda citadina
como se lá em baixo
estivesse a vida
do fino recorte do vento encaracolando
as paixões naturais que nos punem
há uma corrente estranguladora
talvez seja a mente castradora
sonhos diurnos de lábios entreabertos
para que as palavras de facto escoem
de dentro
como corrente curadeira de uma alma
perdida
da voz profunda soou
uma tremenda dor pela vida
a sombra tem o seu encanto, os olhos baços
de porte quebrado escarlate
porque estes lábios pertencem a outros mundos
as palavras ametistas exclamam
uma valorização futurista
que pode um floco fora de estação?
derreter-se no chão
do labirinto poético mortal
os pincéis secam sem lágrimas
confirmando-se a paixão de um pé outro aqui não


quarta-feira, 4 de maio de 2016

pátria amor



uma quimera cabalística
da vizinhança demoníaca que vai fora da cabeça
impressões dos carnavalescos arlequins
há um impulso nocturno
a lua vagueando no absurdo
à confissão dos sopros e das cordas
empalidecendo o retorno da vida
quando finalmente a cidade crepusculada
se dimensa na silhueta de um desconhecido
subindo à lua num dirigível
para lá do cognoscível
deixaram o rosto de estanho contemplando
o sol posto
embora aquela vista não fosse viver
formas enregelando nas vidraças de uma teia
mirante de uma estrela que não vai mais brilhar
uma copa de pedra que não mais vai frutar
e um sentir que tudo está de passagem
num compasso desassossegado
há um tremor que habita uma outra epopeia
uma orquestra de esqueletos
cravando na terra as unhas alongadas de ocre
quando o entorpecimento acorde
os passeios de cimento levantar
um corpo cidade  flutuar
então fazer amor num leito vago
para reinventar o amor, levantar de novo
o insofrível corpo pátria livre, o sonho
no prazer de todas as brutalidades
que caíram no esquecimento
cai sobre o nosso esquecimento
a lembrança de um passado

terça-feira, 3 de maio de 2016

o caminho para a negação


dobram-se as casas rogando o chão
acendemos lampiões à perdição
antes que se extingam as adivinhações
capturamos as esfinges de beira de estrada
decompostas de caminhos possíveis
e para lá do que se desintegra
as mãos economizam formas do passado
a erecção dos pasmados
aqui espera-se tudo do acaso
desse monstro fabuloso com cabeça de sonho
as mães vestem vestidos cor de fogo
e comem um género de insectos ressequido
interroga-se a própria sombra que nos estranha
borboleteando do prazer melancólico
ou dos triunfos mundanos que não satisfazem
abafam no colo as profundezas
certas miudezas do espírito que não choram
as mulheres conversam para entreter
um tempo que só se converte em miséria
substituir as obras mais sérias
passeia-se a futilíssima mentira espontânea
com a sensualidade de uma posse de carne
um mundo que se supunha mais tenro
apertei-a contra o peito e embalei-a
supunha-a uma espécie viva de crença
mas como calar uma criança não meiga?
com lágrimas e beijos
e diminutivos de homens como tu
mas a carne não responderia à minha
somos união de outra natureza
noutros campos te pari
e tudo entendimentos provisórios
houve um tempo em que também eu
fui religião
e dizer-me agora para me iluminar
depois de tudo ter sido em vão