segunda-feira, 27 de junho de 2016

ossos de porcelana



como é triste para o poeta
o som das palavras
do ofício asfixiante de recria-las
obediente da liberdade
onde tudo é palpável
alinhavando horas
e a procissão já no átrio
de toda a articulação
do tempo contra o tempo
Ia triste.
e sem mais preâmbulos
a palavra resolve-se
quedou-se o pensar
ouvindo contar de um acrobata
que o céu tinha muito mais para contar
que o equilíbrio é uma ideia
para repousar
na retina, na veia, categoricamente
ser ou não ser
chagas num corpo de vidro
que se quebra e desfaz ao assobio
atirar-se às suas cinzas
nessa provocação caduca
de energias flutuantes
de corpos cópias sem asa
mãos e espírito de sacrifício
homem-massa apóstolo
mosaico, prisma, rótulo
feridas para ângulos sem título
ossos de porcelana sem carne
em contratempo ideias desnutridas
vagas antigas de melancolia
o fato que nos vestem depois de morto
ao poeta militante da morte
na obrigação de explicar ao mundo
os trópicos da paranóia
a casa decimal dos delírios
os co-senos perturbados do animal
quem não conhece senão a língua do afecto
chegou antes do tempo
sedento do tempo de amar
mas já vai alta a madrugada
e a procissão chegada
e o santo de volta ao altar
fica uma garganta cansada e seca
de tanto apregoar o teorema
para bestas sem poema







quarta-feira, 22 de junho de 2016

como as palavras ficam



cantam os búzios terrores cristalinos
madrepérola o tempo de espera
diamante, radiante, encontro estropiado
do naufragado sem memória
tecem redores de uma malha sem nós
música de variações amorfas
vêm até aos nossos dias
a ausência das coisas espíritas
rosas, converto-me em horas mortas
buscando-te em terras sem órbita
gentes da desocultação oblíqua do sol
já não há sol do outro lado da colina
símbolos, das contribuições vindas
da alternância das lágrimas
de tanto indagar fronteiras
da permeabilidade da obra indolor
já nada mata a grande dor
o culto padrão das locuções de dentro
a luta entravada comanda a diáspora
há um magoado diálogo de esperanças
do espartilho momentâneo do peito
os trópicos descansam na linha térrea
quando me deito no passeio
da encenação utópica cárdica
ficam de lado todos os paradigmas da terra
a pedra é dura quando te deitas nela
da existência do poeta resta o poema
dos recalcos e socalcos resta a fúria
de abruptamente deixar de caminhar
como vingança
repousa no fundo do oceano
o compasso mortal da saudade
como a folhagem que nos cobre a campa
e a visita dos pássaros na penumbra



como partem as palavras



atai as redes dos pés
sois pescadores de rua
onde o horizonte se precipita a cair
-ainda bem que ninguém volta
a imobilidade intocável do partir
no recorte indeciso de uma asa
da sede de cavalos negros
adeus ao silêncio transeunte
todos se desfazem no céu
aceno a mim, o vento me escuta
do instante com rosto de acaso
aponto a alma ao coração incerto
pêndulos em calafrios
há quem tenha frio
no desarrumo desse tecto, pesos
encontrar triângulos na parede
a geometria é simples
o espaço ensina o afecto místico
que fermenta dentro do frasco
das barrentas barreiras do peito
das baladas do instinto tudo tem que ser feito
da vontade de me vestir de dor, despir-me
da aragem morna da noite sem sombra
para a distância não se entende que somos nada?
desses lábios de coral beija-me
segura-me na cintura e levanta-me
banhar-me de cheiros de fumos
o sonho missionário da mutilação do verso
magma que sangra em cada página
em estratificação ágil as palavras caem
na hora da fascinação do abismo lírico
vincar o arsenal de nuvens vermelhas
que adensam esse céu de sangue
tal oração dita sem estrutura linguística
o sentido é a condenação de um coração sem pés
do eco nostálgico da tua ausência
como eram as palavras de outros tempos?
eternas
da metamorfose de pulsações do fim
o astrolábio são teus lábios sem rasto
da encenação dos deuses entre nós, brandos
a poesia não é o consolo, é o recobro
mas o virar da página é sempre doloroso
porque te encontras só



sexta-feira, 17 de junho de 2016

profecias vagas


vai andando...
pedras nos vidros das janelas
ímpetos de avançar sem terreno
ao encantamento
da língua escorrem serenas flores
carnívoras
como se a necessidade das horas
do rabiscar das auroras
não nos dividisse em noite e dia
triângulos
o sol a lua e os estranhos
pelos caminhos de pedra
sombras móveis despertam
do leite materno espumante
o canto invisível dos pássaros
o perfume do orvalho choroso
fitar os olhos nas nuvens
gigantes peneiras do sol
não ser senão um peixe azul
num aquário de vidros baços
para lá dos espaços haverá outros gémeos
que se encantam e emocionam como nós
gira o peixe então às voltas
numa casa assombrada sem memórias
equilátero, isósceles e escaleno
acelera o passo
imagens plácidas apregoam a chamada
rangem as escadas ao ultra terreno
do fundo do espelho seres de arco íris
o leite morno ou azedo
dizendo tudo vai bem mas não é perfeito
passa a mão pelo rosto
o vestido branco estampado de sangue
frio e calor ao mesmo tempo
perde-se o compasso de espera
das páginas que o livro reza
a menina do espelho diz ámen
duas gémeas, a terra e além




quarta-feira, 15 de junho de 2016

marchas mortuárias


uma oitava a cima
o oráculo dos sonhos
do completo vocabulário de gravuras interiores
do revelar de películas a preto e cinza
ousam os fados a alma acolhida
a lua é mentirosa
quando as sombras se levantam e caminham a teu lado
do arquipélago narrativo - o que nos espia
o rasto do silêncio que cruza o céu
da terra natal dos espíritos
o ciclo completado dos vivos
campos de neve e porcelana
das camélias penduradas no cabelo
uma borboleta milagrosa sobrevive ao embate
a cúpula de mármore face lisa
o semblante de um coração partido
a tentativa honesta de reter uma gota de chuva
são as mãos que são de areia
da plumagem de um pássaro selvagem
vontade de vaguear pelas ruas sem luar
desertas de silêncio a respirar
há flores que acordam de noite
para irem a parte nenhuma
do consolo de um rio que espelha nada
o contágio que sacode o grito para longe
reformando-se na madrugada
dos rumores do que falta na paisagem
há qualquer coisa que falta na paisagem
do retrato da ancoragem de ninguém
começam os ruídos da pensão
gemem homens de coração na mão
também os recém chegados sofrem
terrores do desconhecido que se deita com o demónio
há um céu sardento que nos repudia
do limbo triunfal do fim dos tempos
seguro dos humores que se estendem pela encosta
dedilhando nas janelas desvirtuadas da cidade
o altar é o leito dos abandonados
riscam espaços desenhos nos defeitos do cimento
todos os momentos belos já partiram
em rapsódias de corredores malignos
derramam-se os passos
colunas de vasos sem flor
das vidraças tricolores quem nos espelha
os espíritos berrantes que ficaram na fronteira
quando meus olhos me olham sem emoção
a vida vai desfilando marchas
do pó de arroz mortuário
sambam as falas nesse caminho de sombras
e aos poucos se vai desaparecendo
na memória que os dias de sol refazendo
e as gentes se debruçam nas janelas
para enfeitar as aguarelas reproduzidas à escala



quarta-feira, 8 de junho de 2016

do meu alpendre



naipes de enforcados
de tempos trancados
em capicuas de amor
de folgas espaços buracos
pelas pálpebras dos marinheiros
que o destino são rumores
de sílabas de fora
entre os soalhos do oceano
cálices de fontanários envenenados
o coração dilatado
como se tudo o resto tivesse tamanho errado
mergulho nos lençóis de água
como se nadar fosse nada
escoando segura do meu caminho
no estampido de um obstáculo
de não haver sequer caminho
vai-se deambulando nas modalidades
de uma lagoa sem destino
de paragens e momentos gota a gota
sermos memória que somos esquecimento
vagas que não tardam
pérolas consoladoras
transfiguram-se os remos da aflição
quando tudo quer chegar ao fundo
tonturas como num dia de verão
ondular a alma
as campainhas que nos visitam nas beiras
brotam da solidão mal me queres
deixo-me ficar nesse areal jardim
sinto na pele o estalar do sol
o mundo queima a pele sensível
a brisa que tarda e não acalma
a terra respira a morte
são os meus dias de alpendre
que deixarão saudade
na obra que ainda não os compreende
a sombra tropical da melancolia
os barcos que lamentam
o aportar dos duros
que se embriagam e adormecem
nesses nocturnos sonhos
que a luz cegou sem alma
a eles faço companhia
com eles faço poesia
podendo tristezas mudas conversar
nas horas de tédio de instantes eternos
um passado que por defeito não passa
só no coração do poeta se vive a hora completa
ou hora nenhuma
alguns têm pressa para ser velho
nessa ilha de tédio
suspiro moribundo
com a dualidade moral
de destruir ou salvar o mundo
são as paredes de cal e as rugas de sal
de quem se olha ao infinito
encontrando a morte no horizonte


( a morte é a nossa última fronteira)

um verso atravessado


cisma-me um luar ainda o dia a raiar
na sobriedade mestra de uma frase
no arame do fulgor dos estames
o negro desmaiado das violetas
sobre a terra o sinistro se coloriu
unhas aveludadas um espaço sagrado
eu quero a luz! eu quero tanto a luz!
de todos os solfejos o sol amplificado
só me lembro de todas as manhãs frias
onde me deixei petrificado
voltam lacrimejantes os passos ao coração
não fizeram senão trovoadas secas
do mais lúgubre rompendo o verso
basta-me um juramento franco
mordendo o frio das palavras
calidos aromas caminhantes
levaram-me a todo o instante
alucinando de ser saudade e areia
murmuraste: quero-te sereia
o verbo penetrando a veia
do peito tantos pontos de geleia
o mar se afunda em tormentas
ando gladiador há tanto tempo
que a força que me condeno é poeta
nublando estacas no alcatrão
penso que me raizo, mas não
parece que me deito sempre a descer
e o corpo desnivelado a endoidecer
cândidas candidatas a imagens
se tendo a adormecer
oh mas essa nota eleva-me, sonha-me
o silêncio das noites imperiosas
nas linhas que me deixam sem fôlego
a poesia é mãe de todos os tristes
o aroma de todos os nomes
por quem não chamaste

esconde-te, refugia-te, guarda-te
um santo repudia a tua lágrima
o poema é um caminho sem volta
atravessado pela revolta