quarta-feira, 26 de outubro de 2016

para Aurora


sei, a linha que me escapa deste espaço
dos alicerces as forças que abalam
sou tudo o que preenche
que num determinado momento mergulha
os olhos que me sentem vagos
como centauros vigilantes
arco-íris de espuma virgens
ser-me fiel à alma que carrego
pelas metamorfoses da planície
ruínas mistério desabitadas
soam gongos no desafio de escutar o espírito
dos quadrís entranhas na carne
pertencem os lábios aos insectos que partem
ser animal de ofício caminhante
pelas estampas de nevoeiro cabelos negros
do vale dos murmúrios se levantam
do busto, dos dedos, da trama dos veios
a seiva tem vontades de asas de carmim
os pensamentos são o alimento
bagos de fascinação que o destino tece
lamparinas que alumiam de sílabas essenciais
o perfeito inacabado arrasto da sombra
a submissão ao astro sentinela
sim, partem dos lábios insectos rumo ao silêncio
se alma tivessem, partiriam rumo ao nada
onde tudo infernalmente não se cala
juntam-se ao sono escalas de sobressaltos
da migração de fragmentos de resistência
pedaço a pedaço, o olhar perde-se dos olhos
no abismo dos abismos do mundo dos mortos
do estancar do sangue em fúria
cura-me em descargas de novos pulsares
tenho nas pupilas radares
do ondeante olímpico horizonte
para um ponto de repouso seria a fonte
da poeira dos tambores que proclamam a liberdade
fronteiras do procura do ser feliz
tudo isto são fios ferroviários
uma locomotiva infância em trânsito
a bordo uma guerrilha lenta
o veículo que nos transporta é a morte
é com ela que viaja a vida
ecos de cláusulas para nascerem desertos à beira
do descarrilar de episódios eclipses
apocalíptico
renascer a cada novo instante
com a despreocupação realista de partir
atravesso aldeias onde sonho existir
sem o sufocar da enfermidade do agora
agora, partem insectos da minha boca
rumo, aurora, com a tarefa de me levar
com alma

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

passeio sem rumo


enquanto caminho

de porte intangível uma ave atravessa o céu
estremecem os favos de um peito largo
numa cadeira de baloiço um sentimento
de pertencermos à terra
dias sombrios onde na praça alguém coloriu
de flores carnais
esse solstício de feridas da solidão
na brancura mistério
de uma botânica de estufa e cimento
compreender que faço parte de um ciclo
do alto de uma torre asteróide
prepara-se-me a geada da alma
para acolher os demónios presas do frio
nesse adormecimento que todos parecemos
areias movediças do pensamento
demora-se o gelo no corpo mole das plantas
que outrora foram embrião
essa ave de rapina que atravessa a avenida
que é o tempo
no céu caminha o reencontro
mas as barcas abandonam o porto vazias
das terras ilhéus mantos
que homens armados de passado
na surdina santa em dialectos de um deus
perseguem
hóspede, a tentação detrás das cúpulas
os cascos escorregam dos vapores das nuvens
a terra desaba numa palma
caem pedaços de fogo além sol
ecos de hinos da ventania
no respeito da possibilidade de tudo ser extinto
os espaços sem as pessoas
as pessoas sem os espaços
entre o sagrado e o profano a palavra
que tritura martelando tudo o que não se entende
porque na linguagem das plantas, do coração, das aves
já não fala gente
no corpo espaço cosmos de carne e osso
já não mora...gente

sento-me

de costas para a cidade
na minha frente...o rio..outra margem
a manhã clara onde me demoro
chegar-me a terra ao peito
a tripulação que trago por dentro
interromper-se-me as voltas do farol
na véspera de se inventar um astrolábio
navegar nessa grande escotilha
que é a mente
são horas de regressar ao presente
de limpar as chagas dos ombros
de apanhar os estilhaços de nuvem
de silenciar a agonia
de suprimir o bafo de fogo
da fantasia

e penso
porque o sol se põe e se levanta
com a mesma alavanca com que abrimos e fechamos
as pálpebras





quarta-feira, 19 de outubro de 2016

lá das colinas


mundos, tantos
para vos engordar de um alimento latente
inumano, extraordinário e sanguíneo
de escudos e intuitos seduzindo pedra
aquele que carrega nos ombros
descobrir-se perante deuses sem nome
peão, atirado às vestes da escuridão
vigilantes, do assassínio do primitivo
do rosnar atento da existência sem grito
no mergulho, encontramo-nos despidos
terras pardas de terraços antigos
almas pedintes de novo e acaso
no macabro de estranhas vozes, polidas
pelo vigor da memória do mundo
banham-me as raízes de próprio material desaparecido
emanada do gesto enfático de ser nada
e tudo sentir sem um pasmo
todo o último poente tem o seu mistério
no vago navego sem corpo
tudo aponta a um verso extinto
contra a criação suicida de ser pássaro dócil
erguer as folhas profundamente vivas
e queima-las,
gravadas debaixo da pele estão
incluir-se na água, no fogo, na exaustão da terra
e nos moínhos de vento ser janelas
caem estrelas sem que as vejamos
o que separa uma margem da outra
é a distância com que nos amamos
espectral, carnal, ventral
metálica atmosfera linfática
o magma que nos transforma em pedra
vem de dentro, vem de dentro
vem do nada
desejo ser peixe fora de água
respiro porque foi assim que fui criada
o peso de tudo o que carrego não me diz ordem
o resto que em mim vasculha, avança pântano
de uma ponta à outra, eu sou, vândalo
inverte a marcha, anti-maré, da energia solar, tem fé
acima das montanhas, de dentro das entranhas
do automatismo, da aridez das colinas donde venho
há um não sei quê de sinistro, de in vitro
de sentir sempre mais que semi-vivo
de me contrariar, de me insistir sempre a virar
porque há-de o vento dizer-me
para que lado hei-de ...ser

A cidade dos outros


troncos oníricos que se projectam
pelos corredores sombrios
nesse abate de planos
sóis amarelos subindo as avenidas
calhas que se orientam ao céu cinzento
gatos vadios fantasmagóricas esquinas
carruagens alegóricas de outrora
num entra e sai da alma
a cadência do bater das asas
voos que carregam as margens
num passeio desquebrado
abandonei-me num balcão, doca, espera
nesse ângulo onde me vejo
numa longa travessia entre mim e o espelho
meter-me o anzol à boca
amarrar bem a âncora à roupa
a cidade é feita de linhas
numa dança de ondulação corrente abísmica
todos os dias me atravesso de submarino
nesse corpo carga para a frente e para trás
erguer os olhos aos penhascos de betão
e perceber que só depois da partida
começamos a viver


terça-feira, 18 de outubro de 2016

tauromancia


da armação de ferro do peito
contra as barricadas feras exibidas
das impressões do sangue
o espectáculo do coração de sangue
tacteando do espanto de cada batimento
as paredes são salteadoras de vida
lugares de sombra que desafiam as forças
ocupadas pelas estações nocturnas
águas correntes que vibram das teias
sinapses apanhadas na charanga
de gente nativa do desconcerto
do instante
quando se levanta o pano das trincheiras
do ventre que as nuvens espadaúdas
e as hastes dos homens-cavalos
escondem
do encontro das patas na arena
dos passos e aplausos e volteios
dardos na carne golopeados golpes
quando o olhar animal nos confronta
contra o pano, mortalha, denso escuro
como se o mergulho no lodo da impotência
o sonho é a lança, farpa, desejo de criança
a multidão orgásmica de morte
os cornos do touro no ventre do mundo
quando no corredor do abandono
só, aguarda pelo fim, ainda morno
no envolvimento impermeável da partida
uma lágrima escorrida desse olho trémulo
e os aplausos dão a volta à arena
e os chapéus e os uivos despedem-se da vida
enaltecendo-a
do túnel vórtice o animal à morte
a chuva caindo na horizontalidade
a chuva caindo depois da morte
com a própria inocência da natureza sem fausto
lento, descompassado contacto entre sóis
do profético gado de jade negro
a cólera partindo do esquecimento
do peso sensorial do abandono
do questionar bandarilheiro do sentido
de termos nascido touro bravo

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

sombras de Hades




há um corrupio esférico
no labirinto de Creta
um peão na mão fria subterrada
mãos raízes pálidas
que nunca conheceram raios sol
soa a melodia do adeus
arco de costela contrariado, desafinado
ateado da cabeça aos pés
erguendo-se das esquinas
acidentais dos ramos vegetais
imaginá-lo parado
entre os olhos e os muros de fresco
a terra depois de lacrimada
correspondendo ao apelo da vida
suspirar de cansaço
da faina repetida do eu fado
desta tarefa escolhida de martírios
para poder separar o joio do espírito
para oferecer um poente aos mortos
homens que não conhecem o reino dos céus
pálidos e obesos na hora redonda
quando a terra pára
e a vida acaba
a imagem que fica, de ti jovem
ainda pronta ao rebentamento
de uma última palavra
das esporas da fúria do desânimo
dessa mãe terra enlutada de polén
da memória dos flancos e solavancos
do revirar dos ramos de buscas a braços
que se dedilham madeixas de cinzas
dos arcanjos sem origem
quem nos abre as portas de Hades
se dos contos nos mentiram
e da barriga não nascem espíritos?

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Meu sangue/ Mi Sangre



hei-de esquecer
que fluem plantações no reino das trevas
por essa estrada de flocos de sangue
hei-de esquecer do murmurar das águas distantes
escutando em vão as gralhas de deus
de sermos pétalas de opala dura
da lua trapézios de sombras
do vale de Minerva servos sem tarefa
em telhados de musgo, ruínas do peito
caveiras em pirâmides de gelo
hei-de esquecer
os limiares da costa das agonizantes vagas
as mãos que nos deitaram ao mar
sem sermos metáfora para a vida
hei-de esquecer
as tábuas oblíquas do amanhã
hei-de esquecer que te esqueceste de mim
a um palmo do fim

Mi sangre

Olvidaré
que fluyen plantaciones en el reino de las tinieblas
por esa calzada de copos de sangre
Olvidaré el murmullo de las aguas longincuas
escuchando en vano las cornejas de Dios
que somos pétalos de ópalo duro
de la luna, trapecios de umbras
del valle de Minerva, siervos sin tarea
en tejados de musgo, ruinas del pecho
calaveras en pirámides de hielo
Olvidaré
las orillas de la costa de las vagas agonizantes
las manos, cuales nos echaron al mar
sin que fuésemos metáforas para la vida
Olvidaré
las tablas oblicuas del cras
Olvidaré que me olvidaste, a mí,

a un palmo del fin

Tradução Duarte Fusco


súplica de um sonhador


quando os olhos encontram outros olhos
fadas de veludos perfumes lilases
velas esvoaçantes do imaginário
nessa floresta longínqua quase morta
vogam as cores da aura dos desígnios
num balanço imerso de paz espírita
de um adorar de óleos e seivas
bebendo a saudade pelas asas
dessa invariável imensidão...voam
seres de simples abraços
porque nos fogem as noites
do desejo fraco de criarmos raízes
somos obrigados à verticalidade
nessa gravidade de dias felizes
quando os olhos encontram outros olhos
a grandeza do bem oculto
para arrancar do coração o luto
e deixa-lo doente e esqueleto de vazio
lembrar-me o passar dos anos
desses passeios de instantes
presa das teias mais longas
das estrelas de tédio e impaciência
obstinadamente tentei que esses olhos
nunca deixassem os meus
mas a cidade perdeu o seu manto
se vestindo e revestindo de tambores
que ritmo nu impróprio de expressão
corpos magros do mundo quebrante
pernoitam no meu e assim desaparecido
esse barco que nunca aportou do sonho
enfeita o rio de fantasmas e névoa
quando os olhos encontram outros olhos
nesse afago de fagocitoses do desejo
não encontra reduto ou alquimia
e nos corpos gélidos que se deitam
descubro, que fui eu o nevoeiro
 e na leveza de todas as nuvens que ficam
as margens de outro paralelo espelho
tão sedutor como ofegante
essa sinfonia que escuto vem de longe
e eu conheço ainda os seus sóis e girassóis
que vão bebendo de um dormir
tão terno
-mãe fada, embala-me no teu peito
no irremediável colo que não mais me sinto


quarta-feira, 5 de outubro de 2016

a cantiga do velho


do arquétipo do poema
se levantam de noite os grilos
porque range o soalho e as plantas trepadeiras
do ardente mistério das nossas fronteiras
as ideias que nos povoam a verticalidade
porque há vocábulos encantatórios
que convocam as searas de trigo
para serem o alimento e o abrigo dos tristes
para inteiramente despertar de olhos abertos
dos dias que correm sem veias, sem tecto
pairam fantoches sobre os dedos
de unhas rasantes e peles descarnadas
dedos roídos das vinhas de sangue
das nuvens mais puras
do deus das madrugadas perdidas
quem abandonou na poesia os primeiros raios de sol
uma sonata ultra efémera
das inevitáveis teias das cordas vocais
lágrimas que caem até ao chão
do descer ao calabouço
todos esses degraus de osso
são a coluna vertebral e um velho torto
só as carnes carecem de outro alimento
a lua crescente, intramuros reservada
aos duros, combatentes da enxada da paixão
que vai lavrando campos apartir do nada
cauda de animal cósmico coisa de si extraída
o bicho-homem já nasceu morto
achando diante de si um corvo
para devorar o peito de leite azedo
a terra que nos promete crianças contentes
se inundará de criaturas desossadas
compreender que alguns nascem
outros apenas se deixam nascer
e a cantiga chega-nos
no arrependimento das injustiças
que cometemos com o afecto
e a cantiga chega-nos
com a mansidão dos dias que lá vão
os sinos avançam na noite invertebrada
que cai sobre as nossas pálpebras
diz que os peixes dormem de olhos abertos
orando submarinos nas entranhas de um amor inerte
quando o sol já vai alto
o fim da jornada
pancadas no estômago para um banquete do céu
os corvos vêm-nos buscar as peles e as carnes
a fisionomia do sonho nunca é severa
a vida aqui na terra
da disciplina extraordinária de nos transportarmos
sem pele, sem carne, sem ossos