segunda-feira, 29 de maio de 2017

o poema entornado


vou subir mais um degrau
para mais tarde não ser capaz de dizer adeus
os cães que ladram ao seu próprio reflexo
vou esperar que a noite me desça sobre a sombra
não deixar rasto como se apaga um astro
o som da avaria do motor, o esquentador
o martelar da minha alma contra o tecto
o descampar de um cemitério a céu aberto
vou subir mais um degrau
engolir-me pela cal da parede desaparecer-me
matar todas as vidas que me põem doente
deixar-me um só corpo onde não habita gente
vou subir mais um degrau
que o fundo da garrafa tem depósito
e no fundo das escadas bebi o primeiro trago
vou tombar por aí, talvez rezar
pedir às pedras da calçada que me deixem
encontrar-me num buraco
quero saber a que sabe ser atravessado
por tanta gente que não se sente
vou subir mais um degrau
e depois se me vires, não me cumprimentes
...não terei mais dentes para te ver sorrir












sexta-feira, 26 de maio de 2017

poema mourisco


é o cabelo que me afaga as costas
esse manto negro reluzente
do leito da baía da captura
arrepio na noite caída da loucura
o vento clemente de corpos nus
para atirar ao interior da terra
recortes do horizonte sem tréguas
o vestido de noite branca
os cavalos percorrendo a sombra
cada fio de cabelo são rédeas
que a natureza oferece
e que tu não domas
como um estaleiro a dentro
que o tempo quisesse de pasmo
as âncoras da terra levantando
são os braços com que me danças
os sonhos feitos de obeliscos
de uma aceleração sem fôlego
atear a fogueira com o corpo
que o amanhã é sempre imaculado
porque amanhã há sempre o lugar
ainda no pulso de correr acidentalmente
um vento constante
da análise sentimental do rastilho
da mira do dorso do animal
o corpo viagem astral
e vi o vagar da estrela rasgando o céu
para caminhar nas sobras do tempo
para lá da pele, dos cílios, da penumbra
como um mero acaso orgásmico
porque em nós tudo é exilado
quem nos devora as entranhas
e os cavalos seguem em liberdade
nessa quebra da noite sem fim
são arrancados ao sonho
descolados do chão infértil
para atravessar os jardins do éden
cavalos de fogo
do tempo de ser mortal
ocupados por um corpo de crinas
do leito da baía das lágrimas



domingo, 21 de maio de 2017

a ceifa da dor


os dias tristes da jorna
para o cáustico do sol
de amanhã febril imenso
os céus subindo demais
temendo demais
quão vago ou tão raro
um astro festivo das entranhas
do remoer de homens e castigos
quebrados pela cintura
trazidos em suspenso
como braços da era de deus
são as caldeiras e as mãos cheias de terra
o afago das nuvens as brasas dormitando
a lâmina que nos ceifa desarmónicos
com a leveza do fumo esbatido
homens abandonados no escuro
a luz talhando os contrastes
para a intimidade de mundo
lágrimas lavradas de orvalho
na dureza das manhãs
para plantar o arrebatamento
da orquestração dos espaços
o dia multiplicado de ausências
baloiçam as cabeças no desafio constante
da planície da tristeza
desse desdobrar, arfando no ar que se respira
as mãos que tremem
o suor que escorre com a vitalidade
do desaguamento das ânsias
segue o voo dos pássaros quietos
a quebra das nossas searas
o corpo sedento do sol que rompe a noite
no arrasto das luzes
o chão mergulhado sem tréguas
para um chão já plantado
o eco das chamadas de dentro
erguem-se esses braços dos meus
o homem volta-se às colinas
galgando alturas e horizonte
os dedos descarnados de alimento
capatazes de tudo
para a labuta do sangue que foge
para fora de tudo
as foices do fim do ciclo
do vaguear do pêndulo sem fim
riscando o silêncio a cada esgar
o sol é um clarão que não pede tréguas
valas para tendões de poldros
tudo é céu aberto e selvático
rompendo as pálpebras casulo
as foices reflectem a alma da ceifeira
as mãos que escorrem de sangue
para o voo abstracto da dor



quinta-feira, 11 de maio de 2017

mãos de oleiro


os mistérios
da estrutura espacial dos sólidos
das substâncias comuns que somos
pedaços de vidro
o carrossel das altas fusões
a preparação de um sólido ao amanhã
para a deformação
essa magnetização ao sonho
o pensar cristalino da salvação
tudo pode ser aleatório e amorfo
todo e qualquer polímero
que carregamos na distância dos anos
essa construção cerâmica
para encontrar o estado físico da alma
gotas de chuva depositadas num frasco de vento
lágrimas guardadas sem pensamento
que se vão evaporando nesse céu espelho
expandindo nas asas de um pássaro azul
a distância significativa
onde se alinha o pensamento atómico
o poder cristalino do vazio
replicando-se no amanhã em doses
de bombeamentos de vida
as lágrimas reviradas em marés vivas
diamante grafite pedras pedras pedras
o corpo há-de ficar para trás
porque nos pesa
a cada difracção ou distracção
a natureza ondulatória do coração
da poesia quântica que nos define
ou um arco-íris que nos deslumbra
as lágrimas são capazes de tudo
limpam, lavam, secam
castelos salinos depositados na areia
que as mãos modelam
para a erosão dos mistérios da vida
as lágrimas são essenciais à matéria
a água que quebra a argila
e ainda que lágrimas de vidro
nada é definitivo

domingo, 7 de maio de 2017

linhas puras


contemplo esvoaçantes
os tapumes que revestem as paredes
dos estaleiros verticais
uma gaivota perdida na passadeira
moscas sobrevoando palmeiras
espectros às janelas
pérolas desfiadas de terços
de andarmos nauseados no labirinto
nos juncos da memória
andorinhas retidas em estação alguma
para levitar a um palmo do chão
há o contentamento das coisas vagas
para me estranhar
para me tecer de um aperto
desse leque que se abre de nebulosas
falências
imagino observadores
anjos revestidos de pele encolhidos
nos extremos das linhas
pontos de fuga
às beiras dos extremos das nuvens
a alvorada levando de arrasto
esse sonho que não nos continua
que me querem as ladaínhas
revejo-me nos rostos espelhados
que a todo o momento abandono
nos dejectos de um gato
numa fenda no telhado
por onde rompe a copa de uma árvore
no combate à dor que já nem sinto
na impureza astral de um mapa ardido
vago como fantasma no prolongamento
das palavras
e contemplo, com tempo
tudo o que fica perdido nos meandros
do invisível