quinta-feira, 28 de dezembro de 2017
a labora do poeta
da oscultação do vazio de deus
cinzas habitantes das sombras
debaixo da túnica o ventre das bruxas
caindo homens de pedra paridos
anjos que não carecem mais de asas
como árvores dispersas sem linhagem
a paisagem feita de carências bífidas
o corpo um telégrafo de bestas
necrófagos pássaros do ventre de Lilith
deixadas no lugar do trono
as pálpebras do anoitecer ficcionando
a queda de um animal doméstico
encolhendo minguando
para a antemadrugada em transe
dormirem juntos no avesso das intermitentes
calhas do mundo morto
é coisa dos dias, das horas trancadas
do desvario da lassidão ou abandono
o mecanismo encerrando-se no corpo demónio
surdo de uma profecia amorfa
para um duelo com a mente erótica
corpo entregue a corpo
vertebrados os sonhos são fundidos
a terra rasgada de precipitações do vazio
para extrair da última gota do sémen de deus
a nudez das palavras sem talha
Ela está no meio de nós
quinta-feira, 21 de dezembro de 2017
as pás do arrasto
as pás do arrasto calaram-se
no canto um monte de folhas e lama
a terra remexida por lágrimas
que o sol insatisfeito de inverno vai secando
embalagens ressequidas, rostos rasgados
cascas de frutos que os pássaros de luto devoraram
as aves alheadas sobrevoam e cruzam os prédios
desenham nas arestas combinações destinadas
a linha da roupa das molas das copas
das armações que não sustentam as costas
a idade à janela num diálogo repetido
serve de companhia o horizonte gasto carbonizado
as roupas encolhem as meias rasgadas
os chinelos do arrasto aquietam-se
janelas que se abrem ao contrário
naftalina e ocre dos gatos pendurados na máquina
que cose sem linha panos de barcos estagnados
no vício de um cigarro apazigua-se o riso céptico
de tudo estar à beira de um fim
e não é romântico nem cáustico ou moderno
não é aceitá-lo de braços abertos ou fechados
antes uma impotência surda do inadiável
porque nos podemos adiar até ao fim
o que resta da solidão é um aperto no coração
a curva por onde nos despenhamos e o agarrar
que só na possibilidade do sonho nos poderíamos salvar
para depois de um esforço arrasador chegar ao topo
e constatar que todos os outros estão lá
e um gemido definhado porque ninguém se salvou
que a alma no momento da partida tentou ainda
no pós vida arrastar-se colina acima
quarta-feira, 20 de dezembro de 2017
a um deus sintético
no colo da virgem sintética
o esqueleto de uma árvore decapitada
cobertos de névoa os campos são florescência
gotas que pendem para cristalizar a dor
no ventre da terra ancoradas as cordas
do instrumento que nos distorce
o cordeiro aninhado em espinhos sonha
o manto de todas as mães dos nossos terrores
sem tocar deixamos lençóis engomados
instantes em que nos despimos e vestimos
intervalos de inexistência
pasta o rebanho nesse retrato a preto e branco
ancorar na omoplata direita que sofre
o instrumento doentio não mais melódico
a linha que estica e encolhe por asfixia
do fole o fluxo vascular para a secura
talvez uma chuva que nos leva por arrasto
a luz raiando a miopia natural
demasiado oxigénio a rasgar no lugar
as asas que partiram antes do corpo doer
disparos de cegueira para a paz da fé
e os momentos caem ao encontro do adeus
volteio nesse perímetro de recantos e colunas
que atrapalham as voltas da lucidez
guardar na carteira o santo pisar o chão colante
cuspir o atraso das horas que nos partem
em impossibilidade de construir a carne
mas as mãos voltam ao bolso e descobrem
a solidão da virgem de cartão
e do outro lado da rua saindo de casa
alguém carrega uma árvore nua decapitada
sexta-feira, 15 de dezembro de 2017
auroras de luz
golpes de luz iludindo as arestas
para nos partirmos em instantes
para o terror da madrugada lúcida
foi o vogar lento de um passeio
o lugar comum purificando a dor
assento aurora na fronteira de um rio
encosto as vértebras à corrente
desdobrar-me e assumir o fluxo da água
negro o rio devora-nos lento
aspiro a náusea flores de dentro da cabeça
o frio de um intervalo que se quer despido
ficar-se por ali a contemplar a mistura escamosa
o arrasto viscoso da língua que mergulha noutra língua
sentir o arrepio da espinha quando arrancado à linha
e atirado de novo à água já morto mas ainda vibrando
para ser desconectado da parede das estrelas
ou emprestar-se a toda a pele que se funde no balaço
doce e amargo da nascente ao inferno
sopram preces de um prazer tão íntimo
que só o silêncio respirado é capaz
e corpos abandonados capazes
essa massa brutal corpo de água um só ser
longe de pensar onde acabar o movimento prende-se
nas docas entre as pernas que caminham arrumadas
sobre a água, dentro de água, fora de água
a luz abrindo portais de longe
rasgando a pele que vira costas e atira-se à margem
para nos partirmos em instantes equidistantes
nesse arrasto melódico, o rio
um organista do mundo dos vivos
que por nós há-de passar
quarta-feira, 13 de dezembro de 2017
a decadência do símbolo
aves negras insónias cobrindo a retina
um salto felino para a exaustão
servir a carga as penas coladas na saliva
o grande escudo das radiações além tecto
hexagonal mente perfeita de olhos abertos
um prazer sufocante no intervalo dos braços
constelações do isolamento ao cair vago
mais ar dos termos lógicos do levitar
da armação incompleta das horas
da programação da busca dos sentidos
a escuta o diálogo de uma língua desconhecida
quando o cosmos cai de um orgasmo
sublimado na solidão dos corpos
decadências no segundo extinto do dia
ciclos falidos existindo colidindo
um sistema sintético de antagonismos
aves que não procuram ninho neste mundo
a miséria da fome do campo experimental
a ordem natural que não cabe no bombear
verbalizado na pedra basilar de todas as cargas
que sempre nos pareceram demasiado pesadas
o sonho insonhado no corpo nunca adormecido
só as aves pernoitam no dia que não chegou a vir
em lugar nenhum o poema acordou
terça-feira, 12 de dezembro de 2017
dos últimos dias
o poente despede-se
visitando um lar perdido incolor apolar
horas perto do equador
mortífero para nos engolir por inteiro
e partiram penhascos de gelo
um sistema de tentáculos e tubagens
onde as palavras são metano
circulando na boca dos homens
o caminho da balada dos sinos
bizarrias atravessando portais de púrpura
uma corrida nocturna sem corpos
animais dos últimos dias
abrir no hiperespaço uma força tarefa
cair de um ponto morto
e leopardos mineiros saindo da nave mãe
as vozes do tempo para um não tempo ainda
pela cintura a borda da placenta
transbordando uma barragem de magma
nas margens velas recolhem os intrusos
metais distorcidos e o pender de quebrados fios
figuras de antes manipuladas
à terra seca de cinzas pentagramas giratórios
irados os homens sem âncora de arrasto
abruptamente há o quebrar do céu
faiscando as fronteiras de deus
velhas trepadeiras de luz trémula
as primeiras aterragens fora da atmosfera
estrelas emergindo do movimento especular
bolas de fogo saindo do peito dos lobos
e todos os quilómetros de espessura
apertando-se como um louco
devolvido à camisa de força do mundo
assim, sem massa, sem carga
nossos corpos quentes como conchas ardentes
o assobio do eclipsar de exaustão
a seiva pronta à fervência
e um último elo que nos prende à cadência
combustível para rampas de lançamento
habitar no coração do astro hipnótico
mensagens por impulso em metros cúbicos de amor
como qualquer insecto vulgar que já esqueceu a dor
as mãos erguidas companheiros de queda
a figura turva de uma memória não mais redonda
porque nunca tiveram um só sonho
que não acabasse no ponto mais distante da terra
estaremos sempre a caminho
apesar de não haver chão, nem cordão
estranhos vindos das estrelas
da parte da atracção de nos projectarmos para fora
dessa estranha forma lúcida da insatisfação
irrevogavelmente transmutar
o tempo partido de olhos abertos
entre o permanecer e o partir sem nunca ter existido
e o poente despede-se triste
porque quem lá fica nunca soube que podia ter partido
quarta-feira, 6 de dezembro de 2017
choros do vento
é o sal da lágrima que cura a ferida
para o matraquear da máquina
essa parede de fóssil vivo
para o riso histérico de uma carcaça
a criatura dissimulada da própria morte
o desgaste oleoso de um relógio novo
e afogar-nos num só golpe de pesçoco
sugar do polegar da criatura a beleza
que avança pelos cascos da consciência
ao travar da luz, meditar no topo escultura
alimentar os cães com carne crua
o céu interpretativo adesivo
para escutar por detrás das portas
o gemido
e um corpo recém-aceso
um instrumento fora de sítio
gene ostentação de imagens imortais
todos clandestinos da forja divina
a condensação do movimento natural
o fumo instinto que brota da boca
para flutuar num aquário seco
nas costas subscritas de um anjo
nas paredes mosaicos de um tabuleiro
onde se estende essa terra oca
dos lábios um rebordo de um beijo
vejo cabeças de hidra reviradas
nos dedos delgados do sonho
e das palmas raiadas planar
cães vagueando pelas estrelas sintetizadas
a mente ficando límpida da fúria do abstracto
para a revelação da ausência dos deuses
no fundo de um rio calcetado de aço
há um espelho retorcido por onde passo
é poro, pedaço, pano de mundo amordaçado
o exorcizar do real sem fonte
te recordas do horizonte?
para dar corda ao mecanismo
o arquétipo da escuridão cá dentro
rosários para despir ao contrário
ornatos acordados de fresco
pelas caves da mente
onde cada paz tem a sua campa
as folhas caem na atmosfera
tronos de pedra adormecidos
o cair ensurdecido da ressonância do vento
que por baixo da pele prolonga a morte
as nossas mãos são lendas entrelaçadas
as casas abandonadas arquitectam-nos
pontes de existência para uma nuvem contínua
um bosque vivo na ponta dos pés
tudo tem olhos refundidos
aquieta-nos
espirais por onde saímos sem ter entrado
remexem dentro de nós via satélite
no décimo andar de uma copa despida
para a ruptura dos hemisférios métricos
choram-nos, lágrimas doces que não curam
rostos de pedra
passos de musgo
linhas de água
a descarga viral
em gradações de poentes
para repousar no eixo imóvel da terra
nossos corações raivosos
de quem não sossega
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