segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O logar

Em 1927
o Logar estava na espera de ser ocupado
por todo e qualquer ser desenfreado
ávido de carácter de conquista
de uma mente, eleita, perene...

No prefácio a nota editorial
é substituida pela mão de Marden,
editado pós O Sucesso pela Vontade
onde se lê: sacudir jovens que se estiolam
sem um ideal..

No outro dia..
-Então mas o Comunismo também é
uma religião..Marx estava errado?
-Todo o ideal o é porque pressupõe
uma fé..

Aspirações adormecidas...
tal como participações políticas
assutadoras abstenções...
a idade dos que chegam ao voto
já nem lhes permite discernimento
e acompanhamento, só de atestado
bem bem,
- os jovens devem vir à tarde..
sim sim...menos de metade!

De se reter:
-incutir alento
-novos estímulos
-maiores resoluções
-abrir caminho à vida
-um propósito decidido

"Não há nada que estimule mais um jovem resoluto
cheio de vida e de energia
do que as anecdotas biographicas
de homens que se distinguiram pelos seus feitos...
A Juventude exclama Vida! Mais Vida!...
que os fracassos e os tropeções
para o débil e vacilante
são pretextos e victorias para o forte e o decidido"




sexta-feira, 27 de setembro de 2013

A escrever...

As duas velhas à janela. Cada uma no seu andar, uma por cima da outra. Quase que se consegue imaginar a de cima a babar-se para a debaixo. Talvez não seja imaginação. É o que nos espera no fim da vida, estar à janela, numa cidade grande. Podia ser à porta, sentadinhas lado a lado, conversando sem torcicolos, mas não, aqui a porta do prédio é pública, dá para passeios ocupados por carros estacionados e cagadas de cão. A vista é apenas o outro lado, um outro prédio, onde por azar, no caso destas duas velhas, não moram outras duas velhas para conversarem frente a frente. E talvez o grau de surdez não o permita mais, nem para a frente, nem para baixo ou para cima. Assim se olham apenas, a de cima mais que a debaixo. São as pessoas que passam o entretém do último sentido da vida, o olhar, isto se também este estiver em condições de alguma distinção. 

E às vezes, quando alguém passa e olha para cima e sorri, as velhas recolhem-se tímidas mas regressam com ar desconfiado. E se a mesma pessoa tomar por hábito o sorriso diário, depois de algum tempo, elas sorriem também. E mais algum tempo e até se conseguem ouvir algumas frases típicas de velhas "é a vida..lindo cãozinho, também tive um durante vinte anos..andamos sempre carregados e não levamos nada.." E se por acaso essa pessoa tiver disponibilidade de parar para dar mais conversa, ouvindo o que têm para contar, mesmo que seja a mesma história repetida e repetida...essa pessoa está a cometer um milagre, numa cidade, grande. 

E assim se tornam vizinhas, as vizinhas velhinhas, que à janela nos esperam todos os dias com mimos e sorrisos, em troca de outros mimos e outros sorrisos. 

Mas antes de tudo isto, estavam duas velhas à janela, uma por cima da outra...

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Ai, não diga isso...

-Estava a ressacar de ti. O vinho está azedo.
-Deixa-me provar. Não, parece normal.
-Ah, deve ser de ter lavado os dentes antes.
-Lavaste os dentes antes de comer?
- Sim, para não contaminar com restos de comida.
-De ontem? Isso é que foi um banquete!
-Sim, mas não havia nenhum como tu..




L.

Nuvens. Laranja.
Planos de rasgos atiçados ao longe
ninguém as desenha como estradas
Se elas fossem caminhos de gomos
e nós doces como ser sem caroço
E os prédios definhados 
o gosto que contrasta e nos afasta
com orifícios respiratórios 
que dão directamente 
para a frente de outros 
Tem qualquer coisa de acolhimento
tipo compartimento galinheiro
onde chegamos, nos arrumamos 
e por lá ficamos. Sem gema no Ovo. 
Como o cubo mágico
movendo, trocando
acertar as peças, homogéneo
Idêntico lado a lado
Perfazendo assim um quadrado. 
Tudo, perfeitamente, encaixado.
Tudo, Laranja. 
Pelo menos
do lado de fora. 



Preguiça


Será que consigo escrever deitada?
Ou a tinta se recolhe na direcção oposta
e a caneta de pernas ao contrário
não escreve?
Serei eu que estou de pé
e tudo o resto está horizontal?
Não,
perpendicular, não,
o que quero é estar em sintonia terrestre,
que o corpo se alinhe
na linha do equador e descanse.

Poema Inacabado


o poema é holograma objecto
de largar tudo o que não importa
fechar portas dentro de tecto
ser projectado no lugar de nada
pelos veios do imaginário
ser tudo possível espásmico
ser tudo o que nos foge
enquanto somos elástico
do nosso ser alforge

um amor assim não se queda
não se apaga por cansaço
não desiste por obstáculo
nem se dá nem se empresta

é um estar de egoísta
um espelho contra espelho
onde no meio, se exista
e tudo o resto, lhé alheio

é feliz e triste
não neutro
onde choraste e riste
em silêncio
completo inacabado
depois de passado
eterno

por isso o poema não pode
ser humano
por ele passa atravessando
disfarçado
de corpo mente mundanos
deixando ou levando
o melhor o pior
desagregado corpóreo
de uma elevação, maior


quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Até ao fim..

Havia qualquer coisa de mágico nesse observar do cair da noite através do vidro da janela da sala de aula. Pela estradita em direcção a casa seguia, já a noite caída, todos os dias. Ocasionalmente, encontrava-o. E por um pedaço de estrada, conversavam, a casa dele era próxima. E conversavam sobre o dia de escola, sobre música ou filmes. Sobre namoricos e amigos. Quando se despediam havia sempre uma parte da história que não havia para contar. Ela baixava a cabeça e seguia. Pela linha do comboio, temendo sempre algum encontro não tão desejado pela escuridão que projectava o caminho. 


E num dia de Novembro, depois do toque de saída das seis e meia, quando passava o portão da escola, ele a esperava. O pai. Deu-lhe um beijo na face, estava gelada. Vamos dar uma volta querida? Tenho algumas coisas para falar contigo, que tal se fossemos ao salão de chá? 

Sobre a mesa torradas banhadas em margarina arrefeciam. O chá opacado com o leite fumava. Olhava o rosto dele. Estava envelhecido e olheirado. Falava devagar, parecia mesmo cansado. Sim filha, estou doente. Não me resta muito mais tempo. O drama instalava-se como roupa em fúria na corda abanada de ventania. Chorou primeiro, depois falou. Pai, o que vais fazer no tempo que te resta? O pai olhou para as torradas e deu uma dentada na mais periférica do prato. Mastigou. Vou fazer o mesmo que tu fazes todos os dias, viver. Viver como se fosse o último dia. Tenho tido muitas saudades tuas. E não creio que estar doente me valha um perdão pela minha ausência. Ela encerrou as mãos na frente da boca escondendo o lábio que mordia. Onde será que esta história vai terminar? Sim, ele vai morrer, sim eu já estou a sofrer, mais ainda do que estava antes. Mas..e então, no meio de tudo isso o quê? Como ele disse, viver?

Três dias passaram. Tocou na porta do prédio. Duas vezes. Sempre duas vezes. Que neste gesto se sentia mais motivada. O pai finalmente abriu. Chegando ao quarto andar, ofegante, entrou e alguma coisa naquela casa estava já diferente do dia anterior. Números, tudo na vida são números por onde o tempo se estende e se perde. Encontrou-o sentado no sofá olhando a janela. Hoje escreveste pai. Vejo que estão novas páginas escritas no teu caderno. Posso ler? Foi encomenda da editora? Mas as frases entalavam-se atrapalhadas sem nexo pela folha. Umas por cima das outras em desespero. Vamos passear? Talvez precises de inspiração lá de fora. Ele sorriu-lhe. Sim, vamos. Gostava de ver como progrediram as obras do novo jardim da Sé. Pelas ruelas andaram toda a tarde. Conversando sobre um pouco de tudo e olhando as paredes da cidade encontrando motivos curiosos. Já viste? Nesta rua viveu a tua avó há muitos anos atrás, hoje a porta dela dá entrada para uma gelataria. E ela odiava gelados, dizia que lhe davam dor de cabeça. Tenho pensado no teu futuro. Tu tens pensado nele? No futuro? O caminho de casa para a escola era o seu mundo agora, dentro da sua cabeça tantos outros habitavam, mas no presente. Não sabia não. Sem grande pressa de se projectar numa profissão gozou na resposta, acho que gostava de ser um pouco como tu, calão, e sorriu ocorrendo-lhe que poderia ter ficado ofendido. Recordou-se do acordo, doença não será nunca desculpa para não haver honestidade. Um acordo que depressa lhe foi contaminando a revolta, apaziguando-a. Revoltar-se contra quem? Havia que aproveitar o tempo, isso sim, e de forma honesta. Tão honesta que prometeu a si mesma não ir vê-lo quando não lhe apetecesse ou se aparecesse outra coisa mais interessante, como, aquele amigo convidá-la para irem ao moinho. Sim o moinho, todas as outras já lá tinham estado e a si, ninguém convidara até à data. Que futilidade de momento bom a ser vivido.

Com o passar dos dias o estado de saúde do pai foi na verdade agravado e pouco saíam de casa. Ela leva-lhe livros que por casa andavam que a mãe insistia serem dele. Dentro de cada livro havia sempre uma carta, uma fotografia ou um bilhete de qualquer evento vivido pelos dois, ela e ele. Ela sabia que a mãe o fazia mas não comentava, era um momento apenas deles. Perguntava sempre se queria acompanha-la à visita mas a mãe respondia amargamente que não, ele que fosse visitado pela outra. De noite ouvia-a chorar no seu quarto, queria abraça-la, encoraja-la a ir mas não sabia como. Quando se aproximava do quarto dela, recuava, não era capaz, sentia que se cedesse nesse apoio também em si cairiam todos os pilares de força que lhe seguravam o personagem. Voltava para o seu quarto e por horas perdia-se em pensamentos focados no seu amigo. Ele não sabia. Não falava com ele sobre isso, com ninguém. Esse era o principal fosso entre si e os outros. 

E o Inverno chegou. Havia esperança de chegar ao Natal e em si desenhou-se a fantasia de um último Natal em família, reunidos. E todos os dias foi plantando a ideia na cabeça da mãe, apenas o seu orgulho a detinha, mas acabou por aceitar na condição de não abordarem o assunto da doença. Onde está a outra agora? Ah, pois é, descobriu-lhe a morte e pirou-se, interesseira, homens, tão fracos, umas pernas bem feitas e pronto, é o fim de vinte anos de casamento, ele que venha mas não esperes que seja amorosa minha filha. E este discurso foi amolecendo, de dia para dia, ao ponto de lhe comprar presentes, de ter enfeitado toda a casa, coisa que já não fazia há muito tempo, de ter encomendado um pinheiro verdadeiro, sim, para depois plantar no quintal, e por aí fora. Assistiu com felicidade ao renascer do espírito de comunidade numa casa que antes transpirava solidão e vazio.
E a noite da consoada chegou.

Estavam as duas à mesa. Na mesa havia um centro de azevinho sobre uma toalha vermelha. Velas e aperitivos. Toda a casa era um conto de Natal. Havia uma certa inquietude dentro de si, consultara o relógio vezes sem conta e na mãe de forma pouco disfarçada, transpirava na voltas que dava da cozinha para a sala sempre lembrando de qualquer coisa por fazer para estar tudo impecável. Mas ele não sabe que horas são? Não era melhor ires buscá-lo? Não mãe. O pai não disse que quem o trazia era o rapaz? o enfermeiro que ia passar lá em casa para ajudá-lo? É com ele que o pai vem, o rapaz até é nosso vizinho, mora algures na rua de cima. Ele se calhar nem vem..era homem para isso, era..depois de tudo..ai deixa-ma estar calada ao menos hoje... E voltava à cozinha para torrar mais pão. E a campainha tocou.

Correram as duas à porta. Era ele. Abraçou-o e a mãe atrás sorriu corando. António! Luísa, estás linda! Entra..está a ficar tudo frio..vamos para a mesa, vão lavar as mãos...o rapaz não quis entrar? Muito prática mas visivelmente feliz, a mãe trouxe para a mesa as entradas quentes. A mesa era redonda, antes na outra casa era rectangular e o pai sentava-se sempre numa das pontas e a mãe na outra. Escolhe um lugar pai, eu costumo sentar-me aqui junto da janela. O pai trazia um embrulho  que ela colocou na árvore. É pesado! O que é? Sorriu no seu melhor sorriso de garota à espera da hora de abrir os presentes. Mais logo filha..mais logo..Estava completamente decadente, as mãos tremiam nos talheres mas muito bem disposto, agradecia a tudo agradando a mãe pela cordialidade. Mesmo antes quando eram casados, ela lembrava-se de ser sempre assim. Nunca compreendeu a atitude do pai porque aos seus olhos aquele casal era feliz, pelo menos terno um com o outro. A conversa foi se desenrolando timidamente. Pairava no ar uma felicidade com termo mas sendo desfrutada com tranquilidade. Isso trazia tristeza e ao mesmo tempo, alegria. A mãe serviu o bacalhau. E depois um desfilar infindável de sobremesas. Esteve durante dias a preparar tudo, pai, e piscou-lhe o olho. Enquanto ela trazia o vinho do porto da cozinha, uma lágrima escapou-lhe no rosto. Ela deu-lhe a mão. Não chores, senão vou chorar também e a mãe vem aí e choramos todos e isto é uma desgraça colectiva..E secando a lágrima com o guardanapo esperou que a mãe regressasse e falou para as duas..obrigado por tudo isto. A mãe correu à cozinha, o açúcar esqueci-me do açúcar! Vai lá pai.. e foi. Deixou que os dois se entendessem na cozinha, sabia que tinham vontade de se abraçar pelos olhares meigos que lançaram todo o tempo durante a ceia. Levantou-se e olhou pela janela. 

Limpou o vidro com a camisola. Lá fora o céu estava negro. Olhou em redor. A praceta estava iluminada por um candeeiro que piscava. Oh, nunca mais arranjam isto. Focou melhor o olhar e pareceu-lhe ver um vulto. Sim, olhando melhor, era um homem, encasacado, de pé, olhando bem na sua direcção. Recuou. Daria para ver o interior da casa? Estaria ele a vê-la? Olhou novamente, o vulto acenou-lhe. Quem será? E não escutando nada de desagradável da cozinha, foi ao quarto, vestiu o casaco e desceu as escadas. Parou diante da porta..uma história? Nova? Mas esta estava a ser tão..sim, vou lá fora. Decidida pisou o chão molhado de humidade. Contornando o prédio encontrou a praceta. Lá estava ele. De costas agora para si. Aproximou-se devagar sem movimentos bruscos. Parou a uns centímetros dele. Entendeu a mão e ele voltou-se. Pai? Estava mais novo. Sorria. Tudo em si caiu ao chão. Mas..como é possível? O que se passa? Olhou para a janela da sala e ao lado, a janela da cozinha estava às escuras. Lá em cima. Não pai..tu estavas mesmo agora ali connosco..Não..e abraçou-o com tanta força que sentiu o casacão dele encolher e cair-lhe sobre os braços..vazio...

Correu com o casaco na mão para casa. Subiu as escadas, entrou em casa. Na cozinha, ninguém. No quarto a mãe deitada sobre a cama ao lado do pai, imóvel, de olhos fechados..vai até à sala..o teu pai deixou-te alguma coisa, está junto ao pinheiro..E deitou a sua cabeça sobre o peito dele..

O pinheiro, reluzindo e piscando tons de brancas estrelas. No topo de vários embrulhos estava o dele. Pegou e sentou-se no sofá. No seu colo foi rasgando o papel de embrulho castanho. Era um caderno pesado. Um livro, ele deixou-me um livro? O seu último livro? Até eu teria originalidade para pensar noutra coisa..em fúria atirou com ele à parede. Caiu no tapete machucado. Ele escreveu tantos livros durante a vida dele..e agora no fim..mais um livro..um só livro..um estúpido livro..é isso? 

E o caderno no tapete permaneceu por dias sem que lhe fosse dada qualquer importância. O enterro foi na capela da Sé, a mãe estava destroçada. E ela, como um bloco de gelo, impenetrável. Por dentro, doía-lhe tanto que falar parecia ser uma tarefa impossível, por isso não o fez durante alguns dias. Vieram umas tias, irmãs do pai, a que a mãe envolvida em dores, resolveu dar guarida. E elas apoiaram-na e ajudaram em tudo o que foi necessário. E arrumaram e limparam a casa. E o caderno, foi posto na prateleira do quarto da mãe. E por muitos e longos tempos, esquecido. Não tinha curiosidade em lê-lo? Não queria saber do que se tratava? Sabia que era a letra do pai porque aberto escancarado no chão naquela noite a reconhecera..mas de resto..


Quando a mãe faleceu, bem mais tarde, a idade em si era outra. Não menos doloroso mas focada nos seus próprios filhos, sentiu uma vez mais que era preciso ser forte e tratar de tudo com muita prática. Foi ela mesma que desfez a casa da mãe. E nos dias em que andou a empacotar coisas, deparou-se diante da prateleira do quarto. Lá estava o caderno. Terá a mãe lido? Não seria publicável? Sentou-se na cama com o caderno, uma vez mais, ao colo. E abriu e começou a ler. Durante um par de horas ou duas, não deu pelo tempo passar e a noite chegou. Levantou-se e foi à sala para fechar as portadas da janela. E distraidamente, espreitando para a praceta, lá estava o vulto. Era ele? Voou pelas escadas e de encontro a ele, abraçou-o. Abraçou-o e pediu-lhe perdão. Sentaram-se no único banco à luz do mesmo candeeiro.  Embalando-se no ombro dele, voltou a pedir-lhe perdão. Era o teu último desejo...e eu não..E olhando ao fundo meio turvo, outro vulto apareceu. Aproximando-se deles, caminhando pairando. Mãe! O pai levantou-se e deram as mãos, desaparecendo pela escuridão...Estava só..sentindo uma paz de encaixe eterno suave..tudo estava por fim no seu lugar. 

No quarto sobre a cama, não havia mais caderno nenhum. Procurou, vasculhou, olhou debaixo da cama e nada. Havia desaparecido. Mas dentro de si, cada palavra veio como história encadeada do princípio ao fim..todas elas, de rompante, tal e qual como ele as havia escrito..todas na sua cabeça, agora ..então...foi isso!..esta é a história. E pela primeira vez saboreou o futuro na certeza de o conhecer até ao fim.



Regresso à Vida

Aparentemente rústico, o navio atracou e as cordas alguém lançou
Numa pancada forte, ao largo encalhou, para ter tempo de escolher
de braços caídos, badalando, vinham içados desesperados outros dois
imediatos socorros, só um se pode salvar, não havia mais acordo
olha, se morrer não faz falta a ninguém, aparecem como formigas
alma danada, ponha-lhe as calças a enxugar, e uma gargalhada
depois de tanto chorar, o estoiro foi grande, embrulhando na manta
quando ia no ar, sem sentidos, pareceu-lhe escutar: ti'Joana
a caminho do S. Pedro, sempre são homens, agora ela é uma cabra
Então, o que disse o doutor?
Só se pode espreitar, precisa de repousar, não se sabe.
Cara entrapada, braços em talas, pernas esticadas, ligaduras muitas
Uma porta chiando ao abrir, desta vez tenho de admitir, se finara
toda uma vida borda fora, tirou as moedas do bolso, estendeu a mão
quero-a de volta!

Nosta Algia

Deixa que te descubra por baixo da pele
Que me sopre por um orifício 
que te chegue ao ventre
E andando por dentro
o peito encontre
Que nele me deite
Envolvendo-me na tua carne
respirando pelo teu batimento
E deixou
Cozendo a saída
Para mais tarde talvez
Talvez um dia
E perdida ficou
Por onde quer que fosse
ela estava dentro dele
Um dia em agonia, outro feliz
Sem saber bem como
Ás vezes sem sono
Fechando os olhos
viajando os dois
De momentos vividos lá longe
Onde foi tempo de se encontrarem 
Olhando o horizonte, sonhando
Foi. 
Não volta mais


terça-feira, 17 de setembro de 2013

PropagandaPorno

Vivemos na era das trevas..
Que pessimismo vai na tua cabeça!
Acho que estás a precisar de uma lavagem
propaganda política ou então ir à missa
e-learning! Isso sim é moderno
Sinceramente prefiro pornografia
Sempre dou um jeito à..
Cuidado com a língua!
Está certo, há que cuidar da imagem
Horas de serviço fora de Horas
e depois vêm com histórias
Ai temos que vestir a camisola
Armadura para cavalaria pesada!
A lâmina na mão do que comanda
Ataca na mente do que precisa
Esta luta é bizantina?
Uni-vos porra! Ai não, e as contas?
Prefiro não dar nas vistas..fora de listas
assim sempre posso escolher
a cor da dita que vencer

Vivemos na era dos porcos
com mandioca ou agri-doce
engordamos a barriga dos outros
e mordemos a língua de revolta
mas à mesa..medalha de honra!

preferes Hentai ou Hardcore?















é peixe...


Homem ao mar! E depois há que remar..
O maldito entretinha-se a contar os que não voltavam
A rapariga merecia-o, o rapaz nem por isso
A seu tempo viria a saber
Costurando o silêncio ao peito
Da cortesia de sermos aventureiros
E se retalhassemos o tempo?
Agora vou eu dar os primeiros passos
vou despir me de Deus e atirar me dos céus
quero sentir o que é ser homem, por um dia!
Olha a luz que se vai outra vez, não pagaste?
A alguém há de calhar a grande sorte
Foi à escala de outro jogo que te perdeste
o do poço!
E a canseira não se lhe dá?
Um par de meias brancas para amanhã
Deixa te lá de apalpar, o mar é todo água
descarga! o que é preciso é peixe...

o que é preciso é peixe...
o resto..Deus que explique..
quando me sentar a seu lado
como bom aparentado





quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Emprego?

E o currículo estava na pausa
por muito tempo esteve em branco
é por isso que sei, estás tramada
como um copo de vidro, transparente
de líquido cefalóide poluente, não!
que profunda invasão de escumalha
vinda de todas as bandas humanas
recusar-me a partir o muro de betão
andam os canalhas a pé coxinho
dando saltinhos fora da lei
ainda há disso? confesso, não sei
a pressão apetece-me ser ladrão
encher os pulmões de ócio
ou será que escutei ópio?
vá, vamos lá a fazer sentido
portanto, do que preciso mesmo
é de um vestido acima do joelho
assim sim: o emprego está no papo
no meu ou falamos de salário?
vejo que preciso de lata
ou talvez fazer me à estrada
foda-se
protege, minha filha, a honra
não enche barriga mas justifica
grandes mulheres ficam na linha
na linha? ou na pausa sem escolha?
repito:
que se foda esta merda toda!





quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Em teus olhos

-Quando olhas para trás e só vez destruição...
E remexia desesperadamente nas fotografias, como já havia feito durante todo o dia anterior, em busca de uma específica...
-Não devias pensar assim..ainda no outro dia li um texto lindo não me lembro de quem que dizia que importante é olhar para a frente e procurar o que ainda não foi feito.
E estavam as duas sobre a cama debruçadas numa caixa cheia de papéis antigos e onde casualmente se distinguiam fotografias. Era uma tarde calma de Novembro, as chuvas ainda não tinham chegado e as pessoas pareciam ter sossegado da histeria deprimente do regresso pós férias pelo pouco transito que se escutava da rua. O gato deitava-se sobre a confusão derramada e logo era empurrado para fora da cama. Indignado procurava uma distracção para regressar astuto à participação daquele evento tão ao seu gosto, caótico. Lambia-se e deliciava-se com o barulho das folhas que se amarrotavam ao seu peso. Pela casa pairava um odor de bafio. O pó incomodava no nariz e a impaciência de Ana começava a despertar nela uma vontade de sair daquela busca que se revelava em vão...
-Há dois dias que procuras não percebo o quê, não me queres explicar? Começo a perder a paciência. Já tenho o nariz num frenesim..se me explicasses podia ser que eu compreendesse e me sentisse mais motivada a ajudar te..
-Não posso explicar porque na verdade não sei o que procuro, há três noites atrás sonhei com a casa da minha avó..sobre a cómoda onde se costumava pentear estava um porta retratos..vazio, e eu preciso de encontrar esse retrato que não sei de quem é...
-Pareces uma louca a falar assim, se me tivesses explicado não tinha vindo contigo...Maria...é preciso avançares com a tua vida, o passado não te vai trazer nada mais do que já trouxe até aqui, tens de olhar em frente, fazer um esforço, por ti...
-Não tenho nada à minha espera no futuro, eu preciso deste retrato...
A outra olhava-a compadecendo-se, dentro de si uma gigante impotência crescia e de dia para dia assistia ao crescer da loucura da outra. Que mais podia fazer, todos os dias lhe dedicava grande parte do seu tempo livre, levava-a a passear, procurava distraí-la, dar-lhe força e ideias para se projectar no futuro, mas tal como esta busca, começava ela a estar desesperada...Pensava ser talvez o tempo de Maria ter ajuda profissional. E isso seria uma verdadeira tragédia para ela. Nunca acreditou que pudesse ser ajudada por médicos, sempre lhe ouviu dizer que os profissionais da alma e do corpo só servem para drogá-lo, anestesiando assim a vida única que cada um é suposto viver e se a sua neste momento é esta, tem de vivê-la sem o auxílio de químicos. Sabia perfeitamente todos os argumentos da amiga. A própria conversa sobre tal assunto deixava-a perturbada. 
-Talvez estejam mais caixas no sótão..vamos anda comigo...
E subiram as escadas em caracol que davam a uma porta pequena trancada. Metendo a mão ao bolso, Maria sentiu um peso que antes não estava lá, não tinha dado por ele. 
-Uma chave? Onde foste buscar isso?
-Não faço ideia, não me lembro nada de ter guardado uma chave no bolso..nem sabia que esta porta se trancava, quando a minha avó era viva, nunca vi esta porta fechada...vamos experimentar se abre..
-Começo a ficar assustada...já estamos no campo do sinistro..e esta casa começa a parecer um cenário de terror, vamos embora Maria está a ficar de noite...estou a ficar com medo..
-Não sejas tola, medo de quê? dos ratos e das aranhas..só pode..
E a chave abriu a porta. Rangendo, a luz do interior da casa desvendou uma grande sala de tecto descendente e uma janela tapada no topo direito. Retiraram o cobertor e da janela o dia mostrou então o que antes eram contornos de coisas pouco claras. Uma arca, caixas de papelão, um armário de gavetas muitas, um cesto com bonecas de porcelana zarolhas, livros cobertos de pó e algumas roupas empilhadas sobre uma secretária encostada à parede. Nessa secretária Ana viu um molho de fotografias,  aproximando-se uma particular chamou-lhe a atenção, pegou nela e trouxe-a para mais luz...
-Oh...será defeito do tempo..parece muito antiga..Vê no verso se tem alguma coisa escrita...
Lia-se numa letra corrida muito miudinha "Maria Antónia, 1932". 
-Que estranho..mas já havia fotografias nesse tempo?
-Não sejas parva..cem anos antes foi inventada a máquina fotográfica..não reconheço este nome..e o retrato desta jovem..não se parece com ninguém que eu me lembre da família..quem será? é tão estranho..já viste, não tem mesmo nada no lugar dos olhos! 
-Maria por favor, vamos descer, estou toda a tremer...não me sinto nada bem aqui..anda por favor, traz essa porcaria se quiseres mas anda.
E desceram em passo acelerado, deixando a porta lá de cima aberta. Mais depressa seguiram para a porta da saída e só do lado de fora da grande casa é que Ana conseguiu respirar menos sofregamente.
-Nunca mais me convides para estas palhaçadas, vou ter pesadelos com isto toda a noite..não me mostres mais esse retrato sinistro..Já ontem estiveste para aí sozinha..que maluquice! Ainda por cima a casa deve estar cheia de pulgas...já estou a senti-las pelas pernas a cima..
Mas Maria não escutava nada..olhava para o retrato procurando uma explicação. 
-E se fossemos ao Manuel da fotografia, deve estar ainda na loja, talvez ele nos possa explicar se isto é um fenómeno de degradação do tempo..e sobre quem é..bem talvez a minha tia Bela possa ajudar, ela tem um álbum muito antigo em casa de parentes lá para trás do sol posto..vens comigo ou tens que fazer?
A outra resignada seguiu-a. Aliviada por se ver afastada daquela casa. Antes, habitada era um lugar confortável. Muito brincaram as duas quando eram pequenas no quintal das traseiras. A avó fazia queques de amora e bebiam leite, enquanto escutavam as histórias da costureira que tinha vindo de África. Muitas tardes passaram naquele lugar e as memórias eram felizes. Mas agora abandonada, deserta, coberta de pó e teias de aranha era tudo menos agradável e só Maria a visitava de tempos a tempos. Dizia que ainda conseguia sentir a presença da avó pelos corredores e que isso lhe transmitia calma. Mais um dos devaneios que já eram característicos dos seus últimos tempos. 
O tilintar de presenças anunciou as duas visitas ao Manuel da fotografia. O único na cidade nesse ramo. E à porta aproximou-se um senhor de larga idade, de cabelo esbranquiçado e uma voz rouca. Trazia os óculos pendurados na ponta do nariz e vinha a comer uma maçã.
- Arre! Uma pessoa já nem consegue trincar uma maçã..a idade é uma grande cruz..
As duas seguiram-no depois de um cumprimento breve, o Manuel da fotografia era conhecido pela sua frieza, dizia-se que para ele as pessoas só existiam na película e a bem dizer, viveu uma vida muito solitária dedicando-se ao estudo da fotografia, um cientista curioso perdido nos confins de uma cidade do interior. Muito antes de aparecerem as fotografias a cores já ele conseguia colorir retratos com pormenores que os enchiam de vida. Teimoso e amargo, recusou-se sempre a partilhar os seus segredos e nem sequer gostava de ouvir falar em grandes progressos digitais dos dias de hoje, ainda tirava retratos com a sua velha "caixa de caça espíritos" como ele lhe chamava, umas das muitas da sua colecção de tesouros dignos de um museu. Não existiu outro fotógrafo retratista antes dele por estas bandas e por isso Maria tinha esperança deste retrato ter sido obra sua..
-Sim- olhando meio perturbado piscando muito os olhos- lembro-me deste retrato, a jovem Maria Antónia..- e atirou o retrato para as mãos de Maria como se lhe estivesse a queimar a palma - eu se fosse às meninas deixava esse assunto de lado, não têm namorados para se entreterem ou maridos já para cuidarem? Essa história deve ficar onde está..esquecida..e não sou eu que vou quebrar esse voto de silêncio..tenho muito que fazer no laboratório, vá ide à vossa vida...
- Mas Senhor Manuel, eu sonhei com isto, é muito importante eu saber, diga-me por favor, ao menos quem foi esta jovem, só lhe peço isso..
-Pergunte à sua família..a mim não - e virou as costas seguindo pela loja a dentro.
Maria ficou irritada, a sua última esperança era a tia Bela. Embora essa fosse outra velha resmungona que raramente a recebia com boa disposição. Ana sentou-se na beira do passeio em frente à porta da loja consultando o relógio. 
-São horas de jantar, queres vir jantar a minha casa Maria? Lá pensamos juntas numa forma de descobrires isso tudo, até podes lá dormir e conversamos até adormecer, como sempre fazíamos lembras-te? Vai-me saber bem a tua companhia, o João está fora há tantos dias, também me sinto só..
-Pois tu estás é com medinho do fantasma da Maria sem olhos..Ai para falar a verdade até eu estou um bocado incomodada com ele..talvez seja boa ideia..sim vamos, passamos no supermercado a buscar qualquer coisa rápida sim? quero pensar nisto..

Ao jantar comeram pizza feita no microondas e limonada de pacote, pouco conversaram porque estavam ambas pensativas.  Atiraram tudo para o lava loiças e foram para o quarto. Novamente sobre a cama, Ana olhando o tecto pensava no seu namorado embarcado há quase um mês. Custava-lhe esta vida mas era a que tinham de momento. Falava para Maria sobre isso, mas a outra não comentava. Pouco faltava para as dez quando o telefone tocou. Foi para o sofá da sala, a esta hora era sempre ele que ligava para matarem saudades e partilharem qualquer novidade do dia. Maria ficou no quarto. E à luz do candeeiro voltou a contemplar o retrato que tinha guardado na mala. Uma jovem com um chapéu de palha e uma flor na fita, vestido longo branco e cabelo aos caracóis solto pelos ombros. Meias brancas e sapatos brancos. As suas mãos estavam juntas no colo e na ausência de olhos, a sua boca transmitia uma seriedade, como se não estivesse feliz no momento da fotografia. O cenário era uma parede atrás de si, um vaso de flores à sua direita e nada mais específico do que umas sombras meio esbatidas. Era um retrato a preto e branco e nos cantos o tempo já tinha comido um ou outro pedaço acastanhando o contorno. Maria imaginou se estivessem no lugar os olhos que estariam a olhar ligeiramente para a direita devido à inclinação subtil da cabeça. O peito saliente e as ancas redondas sugeriam não se tratar de uma criança, e as meias e os sapatos de fivela redondos diziam poder ser uma jovem rapariga, as senhoras já usariam certamente saltos e o cabelo não estaria solto e sim armado dentro do chapéu. Algumas vezes Maria tinha folheado o álbum da tia Bela e tinha verificado estes pormenores nos trajes e modos desses tempos. Retratos de família, da sua família. E nenhum com estas características. Esta jovem teria idade para ser sua avó. Mas a sua avó sabia que não era por comparação a outros retratos e por pouco ou nada se parecer de fisionomia. E tanto quanto sabia, a sua avó só teve irmãos, todos homens, seis. E nestes pensamentos, os seus olhos foram ficando pesados até cair no sono. 

A escada. Estava no princípio da escada que conduzia ao sótão. A casa estava iluminada com a luz do dia e as cortinas do andar de baixo dançavam. As janelas estavam abertas e a casa arejada e perfumada. Olhou os seus pés. Tinha uns sapatos de fivela e nas pernas calçadas meias até ao joelho. As mãos tocaram o algodão suave do seu vestido. Branco e Longo. Estava a subir lentamente a escada em caracol. Brilhava de envernizada e tinha ainda a passadeira de cores vivas. Havia no seu olhar uma desfocagem meio sonâmbula, onde as imagens em seu redor pareciam mover-se desmaiando umas nas outras. Chegou ao andar de cima, junto à pequena porta, aberta. E ao olhar lá para dentro avistou um espelho redondo de pés de madeira. Aproximou-se e olhou-se. E nesse momento em sobressalto, acordou chorando. 
-Não tinha olhos, não tinha olhos! Ana! 

Ana correu da sala acudindo e tentando segura-la. Esbracejava e gritava histérica. Chamando por ela, conseguiu que se acalmasse e percebesse onde estava. Levantou-se e correu ao espelho, olhando-se em pânico. Sim, tinha olhos, podia respirar fundo. Chorou abraçada à outra. 
-Calma, já passou, foi só um pesadelo. Estas parvoíces, metemo-nos com estas parvoíces e é no que dá..não devias ter lá ido a casa..nem devias ter encontrado esse retrato macabro... 
-Ele é que chamou por mim, primeiro era um porta retratos vazio e agora isto..não entendo..a tia Bela, ela tem de me ajudar! Vamos lá agora...
-Maria, são onze da noite, a tua tia está a dormir, amanhã vamos lá de manhã sim? 
-Sim, talvez seja melhor, a tia de manhã parece estar sempre menos azeda, mas porquê? porquê a mim? 

Deitaram-se as duas de luz acesa e conversando adormeceram por fim. De manhã Maria já estava a pé antes das oito. Fazia café e cantarolava.
-Que horas são? Estás muito bem disposta...
-Sim, acordei cheia de energia. Aquilo ontem foi um disparate. Isto tudo deve ter uma explicação muito mais científica do que macabra...vais ver que a tia Bela nos vai esclarecer este assunto e fica arrumado..anda apressa-te para lá irmos..

Não passava das oito e meia e já estavam as duas na rua. De manhã tão cedo ainda nem as lojas estavam abertas. Passaram pelo mercado onde carrinhas descarregavam fruta e outras coisas frescas. Era Sábado. 

-Podemos entrar tia?
A porta estava aberta e da tia nem sinal. Se calhar havia saído para ir ao mercado. Não era estranho deixar-se a porta aberta, aqui toda a gente se conhecia e não havia ladroagem. Maria seguiu até ao armário da sala onde sabia estar o álbum dos retratos de família. Sentou-se no cadeirão e abriu-o. 
-A tua tia tem a casa tão bem cuidada, toda cheia de almofadas e naperons de renda. Parece uma casa de bonecas..
-É, a velha gosta de estar entretida com estas coisas, olha aqui nesta página..vê a data das outras fotografias..é a mesma. Falta aqui uma, deixa ver se pelo espaço aqui cabia a nossa...
E cabia, exactamente na medida certa. Não tinha legenda como as outras. As outras eram retratos de grupo, Maria identificou a sua avó e os seus tios avôs, todos muito jovens ainda, alguns crianças. Havia outra com um bebé ao colo de uma jovem...
-Olha deve ser a tia Bela bebé ainda...
-Mas a tua avó não teve irmãs..e aqui nesta foto não é ela a segurar na bebé..olha aqui está ela, ainda menina pequena...
-Ah pois é nunca te contei esta história..a tia Bela não é mesmo minha tia, toda a gente a trata por tia mas ela é filha de uma interna lá da casa dos meus bisavós, da casa onde estivemos ontem pois, aqui esta rapariga que a tem ao colo era essa criada, naquele tempo elas iam para casa dos senhores ainda muito jovens e por lá ficavam até serem velhas, casavam-se e tinham os filhos por lá, como se fossem parte da família, era assim..e a tia Bela ficou como se fosse da família..Tanto que é ela que tem este álbum..
-Não sabia..era uma grande casa cheia de gente..lembras te da quantidade de criadas que tinham quando éramos crianças? E já nesse tempo os teus bisavós estavam em decadência..
-Pois rebentaram com tudo os meus tios avôs. Que maçada ela não está em casa e agora sabe-se lá quando volta..ao ritmo que caminha deve estar em casa lá para o meio dia...
-E não haverá mais criadas ou filhos delas desse tempo que te possam ajudar? Lembras te de alguma?
-Assim de cabeça...perdeu-se o rasto à maioria, quando a minha avó morreu já só a tia Bela estava em casa com ela há muitos anos, eram só as duas juntas no final...naquela casa a cair aos bocados...Nem sei como é que a tia Bela conseguiu esta casita..deve ter sido herança da minha avó..coitadita, ainda lhe deixou um poiso decente para o final da vida, aquela casa está à venda há anos, o casarão, e ninguém lhe pega...Mas espera, a filha da costureira...talvez a mãe lhe tenha contado qualquer coisa..é aquela rapariga que está na peixaria do supermercado..sabes qual é?
-Humm..aquela empertigada que andava atrás do João na escola..nem penses, não me presto a esse papelinho..vai lá tu..mas com o mau feitio que ela tem duvido que te ajude..
-És tão pessimista às vezes, até pareces eu..está bem, não queres ir vou lá eu, ficas cá fora a fumar os teus cigarros que tanto gostas...

E seguiram para o supermercado. Estava precisamente a abrir e restava saber se a rapariga filha da costureira estava de turno. E estava. Maria fez-lhe sinal de que precisava de lhe falar e a outra saiu de trás do balcão e veio. Em vão. Prontificou-se a dizer que não falava com a mãe nos últimos anos da vida dela porque esta não concordou com o seu casamento e chamou-a de vadia porque teve muitos namorados antes do marido...Maria ficou desanimada. Quando saiu Ana ainda fumava..
-Bem, nem tive tempo de ir ao segundo cigarro..nem de acabar o primeiro..já vi pela tua cara que não deu em nada...e se desistisses dessa ideia maluca? Devias andar a planear a tua vida! Estás numa situação difícil e precisas de procurar por saídas para ti..emprego Maria, precisas de um emprego neste momento...
-Ana! És tão chata! Vamos voltar a casa da tia Bela, pode ser que já tenha regressado...não desisto não, isto agora é mais importante..

E desta vez a tia Bela estava em casa. Baixinha anafada de movimentos escassos, preparou-lhes um chá enquanto reclamava dos preços do mercado estarem pela hora da morte. Bolinhos não tinha, faziam lhe mal à diabetes, dizia ela. E que elas eram novas e deviam cuidar da linha que os homens hoje em dia já não eram como antigamente.
-Hoje chegam aos quarenta anos e trocam-nas por miuditas de vinte..mais viçosas...
-Pois é tia, tem razão, mas olhe nós viemos cá por causa de outra coisa, a tia não se aborreça mas é muito importante a sua ajuda neste assunto..só a tia nos pode ajudar..
A velha senhora endireitou-se na poltrona. Abriu bem os olhos e curiosa de lambida pelas palavras bem escolhidas de Maria perguntou pelo assunto...
-Tia, eu encontrei um retrato no sótão da avó...preciso mesmo de saber a quem pertence, tenho sonhado com isto, sei que a tia não é muito crente mas talvez seja um sinal lá de cima para eu endireitar a minha vida..
-Deus..puff..essa ideia que os homens criaram para controlarem outros homens..que tolice rapariga...tu é que tens de endireitar a tua vida e ao que parece não está fácil, andas sempre a trocar tudo..por este andar vais ficar é sozinha como eu..olha que não é nada fácil estar sozinha, agora que a tua avó faleceu, agora..até me perco no tempo..já lá vão uns anos..ai a minha vida..que triste...parvas, estas raparigas são todas umas parvas..não têm nada na cabeça hoje em dia..se fosse no meu tempo..onde é que tu já ias..
-Tia tem toda a razão..quem me dera ser tão sábia quanto a tia..
-Deixa te disso..diz lá ao que vens..já te conheço desde criança..sabes muito...deve ser dinheiro..queres dinheiro não é..mas olha que eu não tenho nada..
-Não tia...como lhe estava a dizer...
E retirou da mala o retrato. 
Uma expressão de horror tomou-lhe o rosto. E as lágrimas correram. Incomodada procurou pelo lenço para se limpar. 
-Oh tia desculpe não queria nada perturba-la..
-Esse retrato não devia ter sido encontrado, foi o único..que grande lapso..fui eu que o levei para o sótão e depois esqueci-me de o guardar melhor..devia ter sido queimado enquanto era tempo..
-Mas porquê tia?
-Não..não posso, jurei levar esse assunto para a cova..jurei e serei sempre fiel à tua avó e a todos os teus familiares..não..
-Mas tia, é a minha família, eu tenho o direito de saber, isto tem-me incomodado, tenho sonhado com isso...
-Maria Antónia...essa criatura nunca devia ter nascido..esse Deus que tu falas..esse Deus..há certas criaturas que saíram das profundezas dos infernos..-e benze-se - só de falar nisso..não, queima isso e nunca mais penses no assunto...isso até traz mau agoiro..ainda foi pouco o que o teu bisavô lhe fez..ainda foi pouco...
-Tia conte..uma única vez..juro que queimo o retrato à sua frente e que nunca mais falo do assunto..
-Quando ela nasceu..assim da maneira que vês nesse retrato, uma mal formação, uma aberração da natureza..não havia nesse tempo nenhum recém nascido assim, até o padre veio benzer a casa, eu era criança e a tua avó também..era a quinta filha do casal, a segunda rapariga a nascer..a tua bisavó teve um desgosto muito grande..mas era crente em Deus e ficou com a menina..só que a menina desde bebé que parecia..sei lá..que trazia o demónio no corpo..berrava, chorava a toda a hora..nunca aprendeu a falar...recusava-se..e..
-E tia?
-E quando nasceu o sexto filho, Maria Antónia tinha uns seis anos..a tua bisa ficou aliviada de ser saudável, era um menino..uma grande alegria voltou àquela casa..e numa noite..essa maldita..abafou o menino com uma almofada..foi um horror..foi apanhada por uma das criadas mas já não se foi a tempo..o bebé era muito pequenino ainda..e uma vez mais..como assim era naquele tempo..tudo ficou nas mãos de Deus e no segredo do seio familiar..o bebé foi dado como acidentalmente morto ao dormir, sufocou-se, acontecia até com frequência..mas o teu bisavô não aguentou, contrariando a tua bisavó que tinha amor de mãe àquela maldita..pegou nela e encerrou-a no sótão..foi lá que foi criada..isolada de todos os outros..a tua bisavó nunca mais foi a mesma, era a única que ia lá..fazia-lhe companhia, lia-lhe histórias..tentou durante muito tempo que o amor pudesse tornar aquela menina boa..ainda teve mais três rapazes..e aos dezanove anos, Maria Antónia, olha foi pouco tempo depois desse retrato ter sido tirado, foi a tua bisavó que insistiu, queria porque queria um retrato da filha, mesmo assim, foi a única que a amou..como estava a dizer..aos dezanove anos..a criatura subiu ao telhado pela janela do sótão, aquela lá de cima e atirou-se..morreu logo..foi um alívio para o teu bisavô e para todos menos para a tua bisa..foi enterrada no quintal..o padre não permitiu o enterro no cemitério..dizia que não era criatura de Deus..foi o último grande desgosto que a tua bisa teve com essa filha..um enterro não cristão...

E calou-se...rejeitando do olhar o retrato...

-Agora entendo...só não compreendo o porquê destes sonhos..será que ela quer alguma coisa de mim lá do além?
-Ai Maria que horror..tira isso da cabeça de vez..dessa criatura nada de bom pode vir..nem do além..
-Sim filha, ouve a tua tia..queima o retrato..o Manuel das fotografias sempre disse que a maneira de libertar uma alma que já foi e não quer partir é queimar o retrato dela..sabes que aquele homem tem aquelas teorias mas ele lá deve estar certo..eu devia ter queimado isso..era o que eu devia ter feito...
-Mas ela deve querer então alguma coisa, deve querer dizer alguma coisa..é isso que vemos sempre nos filmes acontecer..os fantasmas aparecem porque querem dizer alguma coisa aos vivos..no sótão..é lá que está a resposta..sim é lá..vamos lá..
-Estás louca? Depois então de saber esta história..nem penses..morro de medo dessa criatura..
-Se não vais comigo vou sozinha..eu tenho de saber!
-Ai filhas, por favor, queimem isso, tu prometeste Maria!
-Sim tia, no final do dia de hoje eu juro-lhe que este retrato estará queimado, não se preocupe, eu já estive antes naquela casa sozinha e nada de mal me aconteceu..a Ana fica cá fora, se acontecer alguma coisa eu grito..
-Gritas? E pensas que eu vou salvar te? Não me meto nessa loucura..
-Cala-te! -sussurrou lhe a outra - vamos descansar a tia e já resolvemos isso..

As duas seguiram caminho na direcção da grande casa. A velha senhora acabou por ficar mais descansada porque lhe mentiram dizendo que iam queimar o retrato no quintal da casa. E que a visitariam no final do dia para a descansarem. Da porta da entrada, Ana viu Maria a desaparecer pela escuridão. Subindo as escadas em caracol, Maria agarrava-se ao corrimão com um misto de medo e certeza de estar a fazer a coisa certa. Não temia pela sua vida, essa era a fase em que se encontrava, medo de nada porque nada havia para temer, mas no entanto, sentia medo. A porta do sótão estava aberta. Entrou e atrás de si, de rompante ruidosamente, fechou-se. Cá em baixo Ana ouvindo o barulho da porta tremeu. Gritou para a outra mas de lá nem resposta..correu a chamar alguém do outro lado da rua achando finalmente que a loucura de Maria tinha ido demasiado longe...
Maria estava no escuro, nada se ouvia para além da sua respiração ofegante. E chamou...
-Maria Antónia! Estou aqui..aqui me tens...
Então da janela do sótão um raio de luz iluminou um canto no chão ao lado da secretária. Maria correu atrás dele com os seus olhos e encontrou uma saliência nos tacos do chão de madeira. Com algum esforço retirou o taco e lá dentro embrulhado num pano bordado com as iniciais MA estava um livro. Sentou-se mais calma na cama com o objecto. Até aqui estava tudo bem, estava viva. Lá para baixo gritou para Ana..
-Está tudo bem!
A outra andava histérica de porta em porta a pedir ajuda. Não escutou. Maria abriu o livro. Era grosso encadernado a couro. Na primeira página estava escrito com uma letra ornamentada "Maria Antónia"..então ela sabia escrever pensou..e páginas e páginas de escrita estavam preenchidas...folheou até à última página onde se podia ler..

Mãe:

Não creio que outra criatura de Deus tenha sido mais amada do que eu por ti. Não consegui de forma alguma exprimir esse amor que também eu te tenho, em vida, de volta. Sinto ainda e desde criança que o sinto, uma imensurável dor e revolta por ter nascido desta forma. Não posso mais viver, não quero mais viver. Não tenho olhos para ver a beleza que o mundo tem. E se os tivesse, não tenho coração nem alma que o veja como belo. Não tenho o que te perdoar mas ao pai sim, ao pai perdoo pela clausura a que me submeteu todos estes anos. Não tinha como explicar, porque não sabia ainda falar, que aquele acontecimento foi um trágico infortúnio para todos. Que de modo algum alguma vez tive intenção de abafar o meu irmão. Ele estava morto. Quando me aproximei dele para lhe tocar no rosto, não escutei a sua respiração, soube então que estava morto. Tudo o que fiz foi aconchega-lo para que partisse confortável. 
Obrigado pelo carinho com que me trataste ao longo de todos estes anos,
parto triste mas em alívio

da tua sempre 
M.A.

E Maria chorou. Chorou muito. Chorou até que a porta se abriu à martelada. Ana correu a abraça-la. 
-Que alívio, estás bem!
-Sim, anda..vamos, temos uma promessa a cumprir no quintal.









terça-feira, 10 de setembro de 2013

E
tinha tanto pra dizer
a boca que se cose 
nas linhas do crer
que agente é mole
depois que se fazer
a vida nos envolve
nesta corrida de ser
um valor mais nobre
agora e na hora
de mudar uma só
que se espelha 
e dá nó







Lá da Inha Ideia

-Então seguimos?
Estava na dúvida para que lado
Esta merda da política já chateia
Vou-me alistar na esquerda, chega!
Paraste, de novo! Que se passa agora?
Mais uma curva que sai torta
E se fossemos para fora?
Estou farto de pistas escorregadias
Vamos às pinhas e às bolotas
Tira me daqui essa espinha
Pronto, assim serei meiga
E daqui para a frente tenra
Estava tão dura que doía
Que loucura de ladainha
Gostava que viesses primeiro
Para me sentir mais perfeito
E então seguiste?
Estava à espera do teu lado direito...




Ónus

Sabes o que se passa lá dentro?
Não compreendo tanto movimento
Algures a meio me sinto agora devaneio
E se me penteio sinto um alinho de jeito
Demasiado de perto agente vê se
E depois o que acontece só a Deus pertence
Quero porque quero um brinquedo desses
E se partilhássemos o sobe-e-desce?
Não sei porque me pesa o pescoço
Deve ser uma cabeça feita de osso
Diz-se que serve de amuleto
Para repelir coisas do obsoleto
Andamos todos de pança cheia
Na vertical podias ser onomatopeia
De uma língua estrangeira
Ou uma história quadradinha
Serias..o retrato do medo
Toc Toc Toque está alguém lá dentro?





segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Um fruto de casca rija

Dei me conta
a cabeça é como uma noz
o melhor do seu sabor está lá dentro
e que ao parti-la se prova o seu prazer
mas se partimos demais fica esmigalhada
e se comprarmos nozes descascadas não tem piada
então o segredo está na dose de investimento
para extrair o melhor da forma mais inteira possível
e passamos toda a vida à procura desse invisível
porque afinal somos, um fruto de casca rija

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Indústria da cegueria

o tempo muda o amanhã
muda agora, muda a hora
muda a certeza e a dúvida
muda até o próprio tempo
como uma rajada de vento
e hoje agora já não mais o és
e depois quem sabe o que será
então para que são as pressas?
quicá quisera em vez de espera
de te obrigares a ser como te rodeia
de desespero de perder a teia
acabares perdido do sentido
que afinal valeria a pena ter nascido
e tudo isso é apenas o começo
de enleios entremeios e enganos
de tanto insistir em ser feliz
que o tempo de o ser passou
e acaso ninguém reparou
que foi como se diz:
que o tempo não esperou
e alguma coisa mudou?



Slow Dancing Lovers

Estende a tua mão
-deixa te cair

cá em baixo estão todos
aqueles que não te querem
que te servirão de força
para na última aproximação
te ergueres ao chão

e pé ante pé
caminhando Deus
sobre a única fé
um último adeus

porque choras?
a vida é uma dança
de duas amantes
a esperança e a queda
e nas suas voltas
devagar e depressa
vão nascendo poemas


Avalokitesvara

perdida no tempo e no espaço
caindo um floco de neve
no manto que cobre um abraço
de tudo ser tão breve
do horizonte que se afasta
a utopia que o atrai
da ousadia um não basta
porque de dentro de nós sai
uma outra máscara
há muito escondida, nostálgica

que divergem caminhos tristes
é assim, não de outra forma
como a hora do acender das luzes
de uma cidade à beira da morte

acolher numa redoma a única
flor de lótus cardíaca
e cuida la
como se fosse a última
réstia de sorte



quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Ser

como é ser criança?
como é olhar para as coisas pela primeira vez?
não ter o certo e o errado, não se sentir pesado
aprender a ler, juntar os ás com os bês
nadar, andar de bicicleta, fugir do escuro
fazer de contas um futuro
pedir um colo, chorar sem saber porquê
fazer um amigo, cumprir um recado
comer um bom bocado e um xadrez
sonhar com um beijo especial
ou um poema dentro do livro do Cunhal
cantar, aprender de cor uma letra
corar quando o corpo sai da gaveta
olhar a lua e as estrelas
vestir uma saia rodada amarela
cuidar de um animal que adoece
regressar a casa quando anoitece
andar descalço pela calçada
levar uma ou duas palmadas
esperar um irmão na barriga
ter ciúmes e fazer birra
dizer disparates, rir de parvoíces
ler as aventuras de Ulisses
ou Alice no País das Maravilhas
fumar um cigarro às escondidas
divagar pelos carris dos comboios
catar piolhos nas cabeças dos outros
deixar que as mãos conduzam o desejo
de algo que começa lá no meio
ter medo, sentir-se rejeitado
procurar um grupo ou uma identidade
e sem sabermos como, aos poucos
perdemos a nossa liberdade
crescendo para uma sociedade
querendo ser parte dela, tolos
e depois recomeça esta viagem
de voltar atrás, será essa a recompensa
de ter um dia sabido: como é ser criança!






quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Uma e Outra

Uma escalada chamada casa
montada no topo da árvore
de onde se vê o oceano
e campo semeado
de sonho

Uma escada por onde se chega
o topo da montanha da vida
de onde se avista extensa
a idade adquirida
de velha

Uma frase da boca cuspida
nódoa em roupa despida
de rompante acordar
e, desacreditar
dorida

Se caída assim machucou-Se
não estava segura só doce
varejada de si mesma
dessa moleza
dormida

Se complexa se torna a deixa
virá por aí de surpresa
deixa Te de tristeza
anda que inventa
a barriga

Uma forma de ser comida




A fotografia

- Oh dona, chame a polícia, ninguém consegue dormir aqui dentro, chame lá dona que eu não tenho bateria no telefone..sabe o número?

- O Sr Agente: Vá, vá lá tentar ir descansar, agora as coisas já estão mais calmas, ninguém o vai incomodar e se o fizerem volte a chamar-nos. Não percebeu? Pode ir descansado! Nós ainda andamos por aqui, vamos fazer ronda toda a noite pelo bairro...vá lá.

- O Sr Luís: Sr. Agente, eu consegui escapar de casa pela janela, estavam-me a partir a casa toda para levarem tudo, eu já não tenho ali nada, eles já levaram tudo das outras vezes, querem me matar, eu não encaixo aqui, tenho outra idade e não alinho nas coisas deles e por isso sou um incómodo...acha que eu mereço isto agora com esta idade? 

- O puto: Ó surdo! Podes vir para a tua casa, ninguém te vai fazer mal! Anda, vai lá ver que a porta está trancada! Ninguém te queria roubar, aqui somos todos vizinhos. Anda pá, foi um engano, ele não percebeu que eras tu...

- O Sr Luís: é Luís o meu nome, Luís! Foi um engano nada, então ele estava a partir a parede toda ao lado do meu quarto, já tenho a casa toda esburacada...tenho medo, ele quer me matar!

- Outro Puto: Pá vamos a fazer pouco barulho...Tenho a mulher grávida de três meses, são três da manhã..ninguém consegue dormir aqui...

- O puto: Tá calado, isto foi o outro que estava com os copos, enganou-se, viu o surdo ali a espreitar e pensou que o ia assaltar...ali ao fundo da escada..enganou-se...mas oh surdo ele não te vai fazer nada, eu protejo te, tu és um de nós, já alguma vez te fiz mal, confia em mim surdo, anda vem para casa, eu levo te, confia em mim...

- O Sr Luís: eu chamo me Luís!

- O puto: Sim, Sr. Luís venha lá, aqui toda a gente gosta de si. Então está sempre a ajudar-nos, já nos emprestou talheres e pratos..venha, venha lá para a sua casa.

- O Sr Luís: levam me tudo, já me roubaram tudo o que tinha lá dentro...se eu mereço isto! Agora com esta idade passar por isto..

- O puto: aqui ninguém lhe roubou nada..oh tu, deixa isto que eu resolvo..ele está maluco..anda surdo vá confia em mim...

- A vizinha do outro lado da rua: Era advogado, diz que a mulher lhe derreteu o dinheiro todo, agora vive ali, mas anda bem apresentado, ele tinha camisas e roupa de marca muito cara, roubam lhe tudo os putos, coitado, tenho tanta pena dele, queria ajuda-lo mas não tenho onde o por... este País está uma miséria, não sei onde é que se gasta o dinheiro, deviam mete-lo numa instituição ou numa casa com condições...coitado...já esteve aí a câmara diz que vão mandar isso tudo abaixo mas e depois, metem-nos onde?

- A outra vizinha: vai para ali uma grande desgraça, as casas estavam entaipadas como esta da frente, eles têm esburacado tudo para abrirem portas e janelas...cada vez são mais...este bairro vai de mal a pior..andam para aí a assaltar tudo o que encontram...a velhota ali do rés do chão que está sempre à janela, no outro dia entraram-lhe pela casa a dentro e foram não sei quantas coisas, coitada da velhota...

há uns meses atrás...

- Ela: olha os teus ténis! Bem, isto merecia uma fotografia! Um cota de fatinho old school e nike air force nos pés, estão lhe grandes coitado, só rir..mas viste deu lhes uso! Se tivesse aqui uma máquina fotográfica!!!

- Ele: Opá que cena! Deixei os ao lado do caixote do lixo...o lixo de uns é o tesouro de outros..olha lá o cota todo contente a olhar para os pés..deve estar confortável..


terça-feira, 3 de setembro de 2013

um pouco de mim

ela sabe
que a partir daqui
no compromisso do peito
por um longo tempo
pedala na subida do templo
e o sol vai nascendo
vermelho

ela aceita
avança no gesto
de querer ser a eito
cada vez mais de perto
que as pernas de mamute
e o caminho não mude
de incerto

é o belo
aparecendo lógico
sonhado melancólico
agarrado dependente
lá dentro cadente
nos dedos frenéticos
de gritos

é assim
chovendo granito
rasgando esculpindo
unindo-se dois
aos céus veloz
sem haver depois
de nós

tão frágil
do sorriso à lágrima
tangível véu de hóstia
que na boca se afunda
um final de história
que na última palavra
lábil