E remexia desesperadamente nas fotografias, como já havia feito durante todo o dia anterior, em busca de uma específica...
-Não devias pensar assim..ainda no outro dia li um texto lindo não me lembro de quem que dizia que importante é olhar para a frente e procurar o que ainda não foi feito.
E estavam as duas sobre a cama debruçadas numa caixa cheia de papéis antigos e onde casualmente se distinguiam fotografias. Era uma tarde calma de Novembro, as chuvas ainda não tinham chegado e as pessoas pareciam ter sossegado da histeria deprimente do regresso pós férias pelo pouco transito que se escutava da rua. O gato deitava-se sobre a confusão derramada e logo era empurrado para fora da cama. Indignado procurava uma distracção para regressar astuto à participação daquele evento tão ao seu gosto, caótico. Lambia-se e deliciava-se com o barulho das folhas que se amarrotavam ao seu peso. Pela casa pairava um odor de bafio. O pó incomodava no nariz e a impaciência de Ana começava a despertar nela uma vontade de sair daquela busca que se revelava em vão...
-Há dois dias que procuras não percebo o quê, não me queres explicar? Começo a perder a paciência. Já tenho o nariz num frenesim..se me explicasses podia ser que eu compreendesse e me sentisse mais motivada a ajudar te..
-Não posso explicar porque na verdade não sei o que procuro, há três noites atrás sonhei com a casa da minha avó..sobre a cómoda onde se costumava pentear estava um porta retratos..vazio, e eu preciso de encontrar esse retrato que não sei de quem é...
-Pareces uma louca a falar assim, se me tivesses explicado não tinha vindo contigo...Maria...é preciso avançares com a tua vida, o passado não te vai trazer nada mais do que já trouxe até aqui, tens de olhar em frente, fazer um esforço, por ti...
-Não tenho nada à minha espera no futuro, eu preciso deste retrato...
A outra olhava-a compadecendo-se, dentro de si uma gigante impotência crescia e de dia para dia assistia ao crescer da loucura da outra. Que mais podia fazer, todos os dias lhe dedicava grande parte do seu tempo livre, levava-a a passear, procurava distraí-la, dar-lhe força e ideias para se projectar no futuro, mas tal como esta busca, começava ela a estar desesperada...Pensava ser talvez o tempo de Maria ter ajuda profissional. E isso seria uma verdadeira tragédia para ela. Nunca acreditou que pudesse ser ajudada por médicos, sempre lhe ouviu dizer que os profissionais da alma e do corpo só servem para drogá-lo, anestesiando assim a vida única que cada um é suposto viver e se a sua neste momento é esta, tem de vivê-la sem o auxílio de químicos. Sabia perfeitamente todos os argumentos da amiga. A própria conversa sobre tal assunto deixava-a perturbada.
-Talvez estejam mais caixas no sótão..vamos anda comigo...
E subiram as escadas em caracol que davam a uma porta pequena trancada. Metendo a mão ao bolso, Maria sentiu um peso que antes não estava lá, não tinha dado por ele.
-Uma chave? Onde foste buscar isso?
-Não faço ideia, não me lembro nada de ter guardado uma chave no bolso..nem sabia que esta porta se trancava, quando a minha avó era viva, nunca vi esta porta fechada...vamos experimentar se abre..
-Começo a ficar assustada...já estamos no campo do sinistro..e esta casa começa a parecer um cenário de terror, vamos embora Maria está a ficar de noite...estou a ficar com medo..
-Não sejas tola, medo de quê? dos ratos e das aranhas..só pode..
E a chave abriu a porta. Rangendo, a luz do interior da casa desvendou uma grande sala de tecto descendente e uma janela tapada no topo direito. Retiraram o cobertor e da janela o dia mostrou então o que antes eram contornos de coisas pouco claras. Uma arca, caixas de papelão, um armário de gavetas muitas, um cesto com bonecas de porcelana zarolhas, livros cobertos de pó e algumas roupas empilhadas sobre uma secretária encostada à parede. Nessa secretária Ana viu um molho de fotografias, aproximando-se uma particular chamou-lhe a atenção, pegou nela e trouxe-a para mais luz...
-Oh...será defeito do tempo..parece muito antiga..Vê no verso se tem alguma coisa escrita...
Lia-se numa letra corrida muito miudinha "Maria Antónia, 1932".
-Que estranho..mas já havia fotografias nesse tempo?
-Não sejas parva..cem anos antes foi inventada a máquina fotográfica..não reconheço este nome..e o retrato desta jovem..não se parece com ninguém que eu me lembre da família..quem será? é tão estranho..já viste, não tem mesmo nada no lugar dos olhos!
-Maria por favor, vamos descer, estou toda a tremer...não me sinto nada bem aqui..anda por favor, traz essa porcaria se quiseres mas anda.
E desceram em passo acelerado, deixando a porta lá de cima aberta. Mais depressa seguiram para a porta da saída e só do lado de fora da grande casa é que Ana conseguiu respirar menos sofregamente.
-Nunca mais me convides para estas palhaçadas, vou ter pesadelos com isto toda a noite..não me mostres mais esse retrato sinistro..Já ontem estiveste para aí sozinha..que maluquice! Ainda por cima a casa deve estar cheia de pulgas...já estou a senti-las pelas pernas a cima..
Mas Maria não escutava nada..olhava para o retrato procurando uma explicação.
-E se fossemos ao Manuel da fotografia, deve estar ainda na loja, talvez ele nos possa explicar se isto é um fenómeno de degradação do tempo..e sobre quem é..bem talvez a minha tia Bela possa ajudar, ela tem um álbum muito antigo em casa de parentes lá para trás do sol posto..vens comigo ou tens que fazer?
A outra resignada seguiu-a. Aliviada por se ver afastada daquela casa. Antes, habitada era um lugar confortável. Muito brincaram as duas quando eram pequenas no quintal das traseiras. A avó fazia queques de amora e bebiam leite, enquanto escutavam as histórias da costureira que tinha vindo de África. Muitas tardes passaram naquele lugar e as memórias eram felizes. Mas agora abandonada, deserta, coberta de pó e teias de aranha era tudo menos agradável e só Maria a visitava de tempos a tempos. Dizia que ainda conseguia sentir a presença da avó pelos corredores e que isso lhe transmitia calma. Mais um dos devaneios que já eram característicos dos seus últimos tempos.
O tilintar de presenças anunciou as duas visitas ao Manuel da fotografia. O único na cidade nesse ramo. E à porta aproximou-se um senhor de larga idade, de cabelo esbranquiçado e uma voz rouca. Trazia os óculos pendurados na ponta do nariz e vinha a comer uma maçã.
- Arre! Uma pessoa já nem consegue trincar uma maçã..a idade é uma grande cruz..
As duas seguiram-no depois de um cumprimento breve, o Manuel da fotografia era conhecido pela sua frieza, dizia-se que para ele as pessoas só existiam na película e a bem dizer, viveu uma vida muito solitária dedicando-se ao estudo da fotografia, um cientista curioso perdido nos confins de uma cidade do interior. Muito antes de aparecerem as fotografias a cores já ele conseguia colorir retratos com pormenores que os enchiam de vida. Teimoso e amargo, recusou-se sempre a partilhar os seus segredos e nem sequer gostava de ouvir falar em grandes progressos digitais dos dias de hoje, ainda tirava retratos com a sua velha "caixa de caça espíritos" como ele lhe chamava, umas das muitas da sua colecção de tesouros dignos de um museu. Não existiu outro fotógrafo retratista antes dele por estas bandas e por isso Maria tinha esperança deste retrato ter sido obra sua..
-Sim- olhando meio perturbado piscando muito os olhos- lembro-me deste retrato, a jovem Maria Antónia..- e atirou o retrato para as mãos de Maria como se lhe estivesse a queimar a palma - eu se fosse às meninas deixava esse assunto de lado, não têm namorados para se entreterem ou maridos já para cuidarem? Essa história deve ficar onde está..esquecida..e não sou eu que vou quebrar esse voto de silêncio..tenho muito que fazer no laboratório, vá ide à vossa vida...
- Mas Senhor Manuel, eu sonhei com isto, é muito importante eu saber, diga-me por favor, ao menos quem foi esta jovem, só lhe peço isso..
-Pergunte à sua família..a mim não - e virou as costas seguindo pela loja a dentro.
Maria ficou irritada, a sua última esperança era a tia Bela. Embora essa fosse outra velha resmungona que raramente a recebia com boa disposição. Ana sentou-se na beira do passeio em frente à porta da loja consultando o relógio.
-São horas de jantar, queres vir jantar a minha casa Maria? Lá pensamos juntas numa forma de descobrires isso tudo, até podes lá dormir e conversamos até adormecer, como sempre fazíamos lembras-te? Vai-me saber bem a tua companhia, o João está fora há tantos dias, também me sinto só..
-Pois tu estás é com medinho do fantasma da Maria sem olhos..Ai para falar a verdade até eu estou um bocado incomodada com ele..talvez seja boa ideia..sim vamos, passamos no supermercado a buscar qualquer coisa rápida sim? quero pensar nisto..
Ao jantar comeram pizza feita no microondas e limonada de pacote, pouco conversaram porque estavam ambas pensativas. Atiraram tudo para o lava loiças e foram para o quarto. Novamente sobre a cama, Ana olhando o tecto pensava no seu namorado embarcado há quase um mês. Custava-lhe esta vida mas era a que tinham de momento. Falava para Maria sobre isso, mas a outra não comentava. Pouco faltava para as dez quando o telefone tocou. Foi para o sofá da sala, a esta hora era sempre ele que ligava para matarem saudades e partilharem qualquer novidade do dia. Maria ficou no quarto. E à luz do candeeiro voltou a contemplar o retrato que tinha guardado na mala. Uma jovem com um chapéu de palha e uma flor na fita, vestido longo branco e cabelo aos caracóis solto pelos ombros. Meias brancas e sapatos brancos. As suas mãos estavam juntas no colo e na ausência de olhos, a sua boca transmitia uma seriedade, como se não estivesse feliz no momento da fotografia. O cenário era uma parede atrás de si, um vaso de flores à sua direita e nada mais específico do que umas sombras meio esbatidas. Era um retrato a preto e branco e nos cantos o tempo já tinha comido um ou outro pedaço acastanhando o contorno. Maria imaginou se estivessem no lugar os olhos que estariam a olhar ligeiramente para a direita devido à inclinação subtil da cabeça. O peito saliente e as ancas redondas sugeriam não se tratar de uma criança, e as meias e os sapatos de fivela redondos diziam poder ser uma jovem rapariga, as senhoras já usariam certamente saltos e o cabelo não estaria solto e sim armado dentro do chapéu. Algumas vezes Maria tinha folheado o álbum da tia Bela e tinha verificado estes pormenores nos trajes e modos desses tempos. Retratos de família, da sua família. E nenhum com estas características. Esta jovem teria idade para ser sua avó. Mas a sua avó sabia que não era por comparação a outros retratos e por pouco ou nada se parecer de fisionomia. E tanto quanto sabia, a sua avó só teve irmãos, todos homens, seis. E nestes pensamentos, os seus olhos foram ficando pesados até cair no sono.
A escada. Estava no princípio da escada que conduzia ao sótão. A casa estava iluminada com a luz do dia e as cortinas do andar de baixo dançavam. As janelas estavam abertas e a casa arejada e perfumada. Olhou os seus pés. Tinha uns sapatos de fivela e nas pernas calçadas meias até ao joelho. As mãos tocaram o algodão suave do seu vestido. Branco e Longo. Estava a subir lentamente a escada em caracol. Brilhava de envernizada e tinha ainda a passadeira de cores vivas. Havia no seu olhar uma desfocagem meio sonâmbula, onde as imagens em seu redor pareciam mover-se desmaiando umas nas outras. Chegou ao andar de cima, junto à pequena porta, aberta. E ao olhar lá para dentro avistou um espelho redondo de pés de madeira. Aproximou-se e olhou-se. E nesse momento em sobressalto, acordou chorando.
-Não tinha olhos, não tinha olhos! Ana!
Ana correu da sala acudindo e tentando segura-la. Esbracejava e gritava histérica. Chamando por ela, conseguiu que se acalmasse e percebesse onde estava. Levantou-se e correu ao espelho, olhando-se em pânico. Sim, tinha olhos, podia respirar fundo. Chorou abraçada à outra.
-Calma, já passou, foi só um pesadelo. Estas parvoíces, metemo-nos com estas parvoíces e é no que dá..não devias ter lá ido a casa..nem devias ter encontrado esse retrato macabro...
-Ele é que chamou por mim, primeiro era um porta retratos vazio e agora isto..não entendo..a tia Bela, ela tem de me ajudar! Vamos lá agora...
-Maria, são onze da noite, a tua tia está a dormir, amanhã vamos lá de manhã sim?
-Sim, talvez seja melhor, a tia de manhã parece estar sempre menos azeda, mas porquê? porquê a mim?
Deitaram-se as duas de luz acesa e conversando adormeceram por fim. De manhã Maria já estava a pé antes das oito. Fazia café e cantarolava.
-Que horas são? Estás muito bem disposta...
-Sim, acordei cheia de energia. Aquilo ontem foi um disparate. Isto tudo deve ter uma explicação muito mais científica do que macabra...vais ver que a tia Bela nos vai esclarecer este assunto e fica arrumado..anda apressa-te para lá irmos..
Não passava das oito e meia e já estavam as duas na rua. De manhã tão cedo ainda nem as lojas estavam abertas. Passaram pelo mercado onde carrinhas descarregavam fruta e outras coisas frescas. Era Sábado.
-Podemos entrar tia?
A porta estava aberta e da tia nem sinal. Se calhar havia saído para ir ao mercado. Não era estranho deixar-se a porta aberta, aqui toda a gente se conhecia e não havia ladroagem. Maria seguiu até ao armário da sala onde sabia estar o álbum dos retratos de família. Sentou-se no cadeirão e abriu-o.
-A tua tia tem a casa tão bem cuidada, toda cheia de almofadas e naperons de renda. Parece uma casa de bonecas..
-É, a velha gosta de estar entretida com estas coisas, olha aqui nesta página..vê a data das outras fotografias..é a mesma. Falta aqui uma, deixa ver se pelo espaço aqui cabia a nossa...
E cabia, exactamente na medida certa. Não tinha legenda como as outras. As outras eram retratos de grupo, Maria identificou a sua avó e os seus tios avôs, todos muito jovens ainda, alguns crianças. Havia outra com um bebé ao colo de uma jovem...
-Olha deve ser a tia Bela bebé ainda...
-Mas a tua avó não teve irmãs..e aqui nesta foto não é ela a segurar na bebé..olha aqui está ela, ainda menina pequena...
-Ah pois é nunca te contei esta história..a tia Bela não é mesmo minha tia, toda a gente a trata por tia mas ela é filha de uma interna lá da casa dos meus bisavós, da casa onde estivemos ontem pois, aqui esta rapariga que a tem ao colo era essa criada, naquele tempo elas iam para casa dos senhores ainda muito jovens e por lá ficavam até serem velhas, casavam-se e tinham os filhos por lá, como se fossem parte da família, era assim..e a tia Bela ficou como se fosse da família..Tanto que é ela que tem este álbum..
-Não sabia..era uma grande casa cheia de gente..lembras te da quantidade de criadas que tinham quando éramos crianças? E já nesse tempo os teus bisavós estavam em decadência..
-Pois rebentaram com tudo os meus tios avôs. Que maçada ela não está em casa e agora sabe-se lá quando volta..ao ritmo que caminha deve estar em casa lá para o meio dia...
-E não haverá mais criadas ou filhos delas desse tempo que te possam ajudar? Lembras te de alguma?
-Assim de cabeça...perdeu-se o rasto à maioria, quando a minha avó morreu já só a tia Bela estava em casa com ela há muitos anos, eram só as duas juntas no final...naquela casa a cair aos bocados...Nem sei como é que a tia Bela conseguiu esta casita..deve ter sido herança da minha avó..coitadita, ainda lhe deixou um poiso decente para o final da vida, aquela casa está à venda há anos, o casarão, e ninguém lhe pega...Mas espera, a filha da costureira...talvez a mãe lhe tenha contado qualquer coisa..é aquela rapariga que está na peixaria do supermercado..sabes qual é?
-Humm..aquela empertigada que andava atrás do João na escola..nem penses, não me presto a esse papelinho..vai lá tu..mas com o mau feitio que ela tem duvido que te ajude..
-És tão pessimista às vezes, até pareces eu..está bem, não queres ir vou lá eu, ficas cá fora a fumar os teus cigarros que tanto gostas...
E seguiram para o supermercado. Estava precisamente a abrir e restava saber se a rapariga filha da costureira estava de turno. E estava. Maria fez-lhe sinal de que precisava de lhe falar e a outra saiu de trás do balcão e veio. Em vão. Prontificou-se a dizer que não falava com a mãe nos últimos anos da vida dela porque esta não concordou com o seu casamento e chamou-a de vadia porque teve muitos namorados antes do marido...Maria ficou desanimada. Quando saiu Ana ainda fumava..
-Bem, nem tive tempo de ir ao segundo cigarro..nem de acabar o primeiro..já vi pela tua cara que não deu em nada...e se desistisses dessa ideia maluca? Devias andar a planear a tua vida! Estás numa situação difícil e precisas de procurar por saídas para ti..emprego Maria, precisas de um emprego neste momento...
-Ana! És tão chata! Vamos voltar a casa da tia Bela, pode ser que já tenha regressado...não desisto não, isto agora é mais importante..
E desta vez a tia Bela estava em casa. Baixinha anafada de movimentos escassos, preparou-lhes um chá enquanto reclamava dos preços do mercado estarem pela hora da morte. Bolinhos não tinha, faziam lhe mal à diabetes, dizia ela. E que elas eram novas e deviam cuidar da linha que os homens hoje em dia já não eram como antigamente.
-Hoje chegam aos quarenta anos e trocam-nas por miuditas de vinte..mais viçosas...
-Pois é tia, tem razão, mas olhe nós viemos cá por causa de outra coisa, a tia não se aborreça mas é muito importante a sua ajuda neste assunto..só a tia nos pode ajudar..
A velha senhora endireitou-se na poltrona. Abriu bem os olhos e curiosa de lambida pelas palavras bem escolhidas de Maria perguntou pelo assunto...
-Tia, eu encontrei um retrato no sótão da avó...preciso mesmo de saber a quem pertence, tenho sonhado com isto, sei que a tia não é muito crente mas talvez seja um sinal lá de cima para eu endireitar a minha vida..
-Deus..puff..essa ideia que os homens criaram para controlarem outros homens..que tolice rapariga...tu é que tens de endireitar a tua vida e ao que parece não está fácil, andas sempre a trocar tudo..por este andar vais ficar é sozinha como eu..olha que não é nada fácil estar sozinha, agora que a tua avó faleceu, agora..até me perco no tempo..já lá vão uns anos..ai a minha vida..que triste...parvas, estas raparigas são todas umas parvas..não têm nada na cabeça hoje em dia..se fosse no meu tempo..onde é que tu já ias..
-Tia tem toda a razão..quem me dera ser tão sábia quanto a tia..
-Deixa te disso..diz lá ao que vens..já te conheço desde criança..sabes muito...deve ser dinheiro..queres dinheiro não é..mas olha que eu não tenho nada..
-Não tia...como lhe estava a dizer...
E retirou da mala o retrato.
Uma expressão de horror tomou-lhe o rosto. E as lágrimas correram. Incomodada procurou pelo lenço para se limpar.
-Oh tia desculpe não queria nada perturba-la..
-Esse retrato não devia ter sido encontrado, foi o único..que grande lapso..fui eu que o levei para o sótão e depois esqueci-me de o guardar melhor..devia ter sido queimado enquanto era tempo..
-Mas porquê tia?
-Não..não posso, jurei levar esse assunto para a cova..jurei e serei sempre fiel à tua avó e a todos os teus familiares..não..
-Mas tia, é a minha família, eu tenho o direito de saber, isto tem-me incomodado, tenho sonhado com isso...
-Maria Antónia...essa criatura nunca devia ter nascido..esse Deus que tu falas..esse Deus..há certas criaturas que saíram das profundezas dos infernos..-e benze-se - só de falar nisso..não, queima isso e nunca mais penses no assunto...isso até traz mau agoiro..ainda foi pouco o que o teu bisavô lhe fez..ainda foi pouco...
-Tia conte..uma única vez..juro que queimo o retrato à sua frente e que nunca mais falo do assunto..
-Quando ela nasceu..assim da maneira que vês nesse retrato, uma mal formação, uma aberração da natureza..não havia nesse tempo nenhum recém nascido assim, até o padre veio benzer a casa, eu era criança e a tua avó também..era a quinta filha do casal, a segunda rapariga a nascer..a tua bisavó teve um desgosto muito grande..mas era crente em Deus e ficou com a menina..só que a menina desde bebé que parecia..sei lá..que trazia o demónio no corpo..berrava, chorava a toda a hora..nunca aprendeu a falar...recusava-se..e..
-E tia?
-E quando nasceu o sexto filho, Maria Antónia tinha uns seis anos..a tua bisa ficou aliviada de ser saudável, era um menino..uma grande alegria voltou àquela casa..e numa noite..essa maldita..abafou o menino com uma almofada..foi um horror..foi apanhada por uma das criadas mas já não se foi a tempo..o bebé era muito pequenino ainda..e uma vez mais..como assim era naquele tempo..tudo ficou nas mãos de Deus e no segredo do seio familiar..o bebé foi dado como acidentalmente morto ao dormir, sufocou-se, acontecia até com frequência..mas o teu bisavô não aguentou, contrariando a tua bisavó que tinha amor de mãe àquela maldita..pegou nela e encerrou-a no sótão..foi lá que foi criada..isolada de todos os outros..a tua bisavó nunca mais foi a mesma, era a única que ia lá..fazia-lhe companhia, lia-lhe histórias..tentou durante muito tempo que o amor pudesse tornar aquela menina boa..ainda teve mais três rapazes..e aos dezanove anos, Maria Antónia, olha foi pouco tempo depois desse retrato ter sido tirado, foi a tua bisavó que insistiu, queria porque queria um retrato da filha, mesmo assim, foi a única que a amou..como estava a dizer..aos dezanove anos..a criatura subiu ao telhado pela janela do sótão, aquela lá de cima e atirou-se..morreu logo..foi um alívio para o teu bisavô e para todos menos para a tua bisa..foi enterrada no quintal..o padre não permitiu o enterro no cemitério..dizia que não era criatura de Deus..foi o último grande desgosto que a tua bisa teve com essa filha..um enterro não cristão...
E calou-se...rejeitando do olhar o retrato...
-Agora entendo...só não compreendo o porquê destes sonhos..será que ela quer alguma coisa de mim lá do além?
-Ai Maria que horror..tira isso da cabeça de vez..dessa criatura nada de bom pode vir..nem do além..
-Sim filha, ouve a tua tia..queima o retrato..o Manuel das fotografias sempre disse que a maneira de libertar uma alma que já foi e não quer partir é queimar o retrato dela..sabes que aquele homem tem aquelas teorias mas ele lá deve estar certo..eu devia ter queimado isso..era o que eu devia ter feito...
-Mas ela deve querer então alguma coisa, deve querer dizer alguma coisa..é isso que vemos sempre nos filmes acontecer..os fantasmas aparecem porque querem dizer alguma coisa aos vivos..no sótão..é lá que está a resposta..sim é lá..vamos lá..
-Estás louca? Depois então de saber esta história..nem penses..morro de medo dessa criatura..
-Se não vais comigo vou sozinha..eu tenho de saber!
-Ai filhas, por favor, queimem isso, tu prometeste Maria!
-Sim tia, no final do dia de hoje eu juro-lhe que este retrato estará queimado, não se preocupe, eu já estive antes naquela casa sozinha e nada de mal me aconteceu..a Ana fica cá fora, se acontecer alguma coisa eu grito..
-Gritas? E pensas que eu vou salvar te? Não me meto nessa loucura..
-Cala-te! -sussurrou lhe a outra - vamos descansar a tia e já resolvemos isso..
As duas seguiram caminho na direcção da grande casa. A velha senhora acabou por ficar mais descansada porque lhe mentiram dizendo que iam queimar o retrato no quintal da casa. E que a visitariam no final do dia para a descansarem. Da porta da entrada, Ana viu Maria a desaparecer pela escuridão. Subindo as escadas em caracol, Maria agarrava-se ao corrimão com um misto de medo e certeza de estar a fazer a coisa certa. Não temia pela sua vida, essa era a fase em que se encontrava, medo de nada porque nada havia para temer, mas no entanto, sentia medo. A porta do sótão estava aberta. Entrou e atrás de si, de rompante ruidosamente, fechou-se. Cá em baixo Ana ouvindo o barulho da porta tremeu. Gritou para a outra mas de lá nem resposta..correu a chamar alguém do outro lado da rua achando finalmente que a loucura de Maria tinha ido demasiado longe...
Maria estava no escuro, nada se ouvia para além da sua respiração ofegante. E chamou...
-Maria Antónia! Estou aqui..aqui me tens...
Então da janela do sótão um raio de luz iluminou um canto no chão ao lado da secretária. Maria correu atrás dele com os seus olhos e encontrou uma saliência nos tacos do chão de madeira. Com algum esforço retirou o taco e lá dentro embrulhado num pano bordado com as iniciais MA estava um livro. Sentou-se mais calma na cama com o objecto. Até aqui estava tudo bem, estava viva. Lá para baixo gritou para Ana..
-Está tudo bem!
A outra andava histérica de porta em porta a pedir ajuda. Não escutou. Maria abriu o livro. Era grosso encadernado a couro. Na primeira página estava escrito com uma letra ornamentada "Maria Antónia"..então ela sabia escrever pensou..e páginas e páginas de escrita estavam preenchidas...folheou até à última página onde se podia ler..
Mãe:
Não creio que outra criatura de Deus tenha sido mais amada do que eu por ti. Não consegui de forma alguma exprimir esse amor que também eu te tenho, em vida, de volta. Sinto ainda e desde criança que o sinto, uma imensurável dor e revolta por ter nascido desta forma. Não posso mais viver, não quero mais viver. Não tenho olhos para ver a beleza que o mundo tem. E se os tivesse, não tenho coração nem alma que o veja como belo. Não tenho o que te perdoar mas ao pai sim, ao pai perdoo pela clausura a que me submeteu todos estes anos. Não tinha como explicar, porque não sabia ainda falar, que aquele acontecimento foi um trágico infortúnio para todos. Que de modo algum alguma vez tive intenção de abafar o meu irmão. Ele estava morto. Quando me aproximei dele para lhe tocar no rosto, não escutei a sua respiração, soube então que estava morto. Tudo o que fiz foi aconchega-lo para que partisse confortável.
Obrigado pelo carinho com que me trataste ao longo de todos estes anos,
parto triste mas em alívio
da tua sempre
M.A.
E Maria chorou. Chorou muito. Chorou até que a porta se abriu à martelada. Ana correu a abraça-la.
-Que alívio, estás bem!
-Sim, anda..vamos, temos uma promessa a cumprir no quintal.
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