quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Até ao fim..

Havia qualquer coisa de mágico nesse observar do cair da noite através do vidro da janela da sala de aula. Pela estradita em direcção a casa seguia, já a noite caída, todos os dias. Ocasionalmente, encontrava-o. E por um pedaço de estrada, conversavam, a casa dele era próxima. E conversavam sobre o dia de escola, sobre música ou filmes. Sobre namoricos e amigos. Quando se despediam havia sempre uma parte da história que não havia para contar. Ela baixava a cabeça e seguia. Pela linha do comboio, temendo sempre algum encontro não tão desejado pela escuridão que projectava o caminho. 


E num dia de Novembro, depois do toque de saída das seis e meia, quando passava o portão da escola, ele a esperava. O pai. Deu-lhe um beijo na face, estava gelada. Vamos dar uma volta querida? Tenho algumas coisas para falar contigo, que tal se fossemos ao salão de chá? 

Sobre a mesa torradas banhadas em margarina arrefeciam. O chá opacado com o leite fumava. Olhava o rosto dele. Estava envelhecido e olheirado. Falava devagar, parecia mesmo cansado. Sim filha, estou doente. Não me resta muito mais tempo. O drama instalava-se como roupa em fúria na corda abanada de ventania. Chorou primeiro, depois falou. Pai, o que vais fazer no tempo que te resta? O pai olhou para as torradas e deu uma dentada na mais periférica do prato. Mastigou. Vou fazer o mesmo que tu fazes todos os dias, viver. Viver como se fosse o último dia. Tenho tido muitas saudades tuas. E não creio que estar doente me valha um perdão pela minha ausência. Ela encerrou as mãos na frente da boca escondendo o lábio que mordia. Onde será que esta história vai terminar? Sim, ele vai morrer, sim eu já estou a sofrer, mais ainda do que estava antes. Mas..e então, no meio de tudo isso o quê? Como ele disse, viver?

Três dias passaram. Tocou na porta do prédio. Duas vezes. Sempre duas vezes. Que neste gesto se sentia mais motivada. O pai finalmente abriu. Chegando ao quarto andar, ofegante, entrou e alguma coisa naquela casa estava já diferente do dia anterior. Números, tudo na vida são números por onde o tempo se estende e se perde. Encontrou-o sentado no sofá olhando a janela. Hoje escreveste pai. Vejo que estão novas páginas escritas no teu caderno. Posso ler? Foi encomenda da editora? Mas as frases entalavam-se atrapalhadas sem nexo pela folha. Umas por cima das outras em desespero. Vamos passear? Talvez precises de inspiração lá de fora. Ele sorriu-lhe. Sim, vamos. Gostava de ver como progrediram as obras do novo jardim da Sé. Pelas ruelas andaram toda a tarde. Conversando sobre um pouco de tudo e olhando as paredes da cidade encontrando motivos curiosos. Já viste? Nesta rua viveu a tua avó há muitos anos atrás, hoje a porta dela dá entrada para uma gelataria. E ela odiava gelados, dizia que lhe davam dor de cabeça. Tenho pensado no teu futuro. Tu tens pensado nele? No futuro? O caminho de casa para a escola era o seu mundo agora, dentro da sua cabeça tantos outros habitavam, mas no presente. Não sabia não. Sem grande pressa de se projectar numa profissão gozou na resposta, acho que gostava de ser um pouco como tu, calão, e sorriu ocorrendo-lhe que poderia ter ficado ofendido. Recordou-se do acordo, doença não será nunca desculpa para não haver honestidade. Um acordo que depressa lhe foi contaminando a revolta, apaziguando-a. Revoltar-se contra quem? Havia que aproveitar o tempo, isso sim, e de forma honesta. Tão honesta que prometeu a si mesma não ir vê-lo quando não lhe apetecesse ou se aparecesse outra coisa mais interessante, como, aquele amigo convidá-la para irem ao moinho. Sim o moinho, todas as outras já lá tinham estado e a si, ninguém convidara até à data. Que futilidade de momento bom a ser vivido.

Com o passar dos dias o estado de saúde do pai foi na verdade agravado e pouco saíam de casa. Ela leva-lhe livros que por casa andavam que a mãe insistia serem dele. Dentro de cada livro havia sempre uma carta, uma fotografia ou um bilhete de qualquer evento vivido pelos dois, ela e ele. Ela sabia que a mãe o fazia mas não comentava, era um momento apenas deles. Perguntava sempre se queria acompanha-la à visita mas a mãe respondia amargamente que não, ele que fosse visitado pela outra. De noite ouvia-a chorar no seu quarto, queria abraça-la, encoraja-la a ir mas não sabia como. Quando se aproximava do quarto dela, recuava, não era capaz, sentia que se cedesse nesse apoio também em si cairiam todos os pilares de força que lhe seguravam o personagem. Voltava para o seu quarto e por horas perdia-se em pensamentos focados no seu amigo. Ele não sabia. Não falava com ele sobre isso, com ninguém. Esse era o principal fosso entre si e os outros. 

E o Inverno chegou. Havia esperança de chegar ao Natal e em si desenhou-se a fantasia de um último Natal em família, reunidos. E todos os dias foi plantando a ideia na cabeça da mãe, apenas o seu orgulho a detinha, mas acabou por aceitar na condição de não abordarem o assunto da doença. Onde está a outra agora? Ah, pois é, descobriu-lhe a morte e pirou-se, interesseira, homens, tão fracos, umas pernas bem feitas e pronto, é o fim de vinte anos de casamento, ele que venha mas não esperes que seja amorosa minha filha. E este discurso foi amolecendo, de dia para dia, ao ponto de lhe comprar presentes, de ter enfeitado toda a casa, coisa que já não fazia há muito tempo, de ter encomendado um pinheiro verdadeiro, sim, para depois plantar no quintal, e por aí fora. Assistiu com felicidade ao renascer do espírito de comunidade numa casa que antes transpirava solidão e vazio.
E a noite da consoada chegou.

Estavam as duas à mesa. Na mesa havia um centro de azevinho sobre uma toalha vermelha. Velas e aperitivos. Toda a casa era um conto de Natal. Havia uma certa inquietude dentro de si, consultara o relógio vezes sem conta e na mãe de forma pouco disfarçada, transpirava na voltas que dava da cozinha para a sala sempre lembrando de qualquer coisa por fazer para estar tudo impecável. Mas ele não sabe que horas são? Não era melhor ires buscá-lo? Não mãe. O pai não disse que quem o trazia era o rapaz? o enfermeiro que ia passar lá em casa para ajudá-lo? É com ele que o pai vem, o rapaz até é nosso vizinho, mora algures na rua de cima. Ele se calhar nem vem..era homem para isso, era..depois de tudo..ai deixa-ma estar calada ao menos hoje... E voltava à cozinha para torrar mais pão. E a campainha tocou.

Correram as duas à porta. Era ele. Abraçou-o e a mãe atrás sorriu corando. António! Luísa, estás linda! Entra..está a ficar tudo frio..vamos para a mesa, vão lavar as mãos...o rapaz não quis entrar? Muito prática mas visivelmente feliz, a mãe trouxe para a mesa as entradas quentes. A mesa era redonda, antes na outra casa era rectangular e o pai sentava-se sempre numa das pontas e a mãe na outra. Escolhe um lugar pai, eu costumo sentar-me aqui junto da janela. O pai trazia um embrulho  que ela colocou na árvore. É pesado! O que é? Sorriu no seu melhor sorriso de garota à espera da hora de abrir os presentes. Mais logo filha..mais logo..Estava completamente decadente, as mãos tremiam nos talheres mas muito bem disposto, agradecia a tudo agradando a mãe pela cordialidade. Mesmo antes quando eram casados, ela lembrava-se de ser sempre assim. Nunca compreendeu a atitude do pai porque aos seus olhos aquele casal era feliz, pelo menos terno um com o outro. A conversa foi se desenrolando timidamente. Pairava no ar uma felicidade com termo mas sendo desfrutada com tranquilidade. Isso trazia tristeza e ao mesmo tempo, alegria. A mãe serviu o bacalhau. E depois um desfilar infindável de sobremesas. Esteve durante dias a preparar tudo, pai, e piscou-lhe o olho. Enquanto ela trazia o vinho do porto da cozinha, uma lágrima escapou-lhe no rosto. Ela deu-lhe a mão. Não chores, senão vou chorar também e a mãe vem aí e choramos todos e isto é uma desgraça colectiva..E secando a lágrima com o guardanapo esperou que a mãe regressasse e falou para as duas..obrigado por tudo isto. A mãe correu à cozinha, o açúcar esqueci-me do açúcar! Vai lá pai.. e foi. Deixou que os dois se entendessem na cozinha, sabia que tinham vontade de se abraçar pelos olhares meigos que lançaram todo o tempo durante a ceia. Levantou-se e olhou pela janela. 

Limpou o vidro com a camisola. Lá fora o céu estava negro. Olhou em redor. A praceta estava iluminada por um candeeiro que piscava. Oh, nunca mais arranjam isto. Focou melhor o olhar e pareceu-lhe ver um vulto. Sim, olhando melhor, era um homem, encasacado, de pé, olhando bem na sua direcção. Recuou. Daria para ver o interior da casa? Estaria ele a vê-la? Olhou novamente, o vulto acenou-lhe. Quem será? E não escutando nada de desagradável da cozinha, foi ao quarto, vestiu o casaco e desceu as escadas. Parou diante da porta..uma história? Nova? Mas esta estava a ser tão..sim, vou lá fora. Decidida pisou o chão molhado de humidade. Contornando o prédio encontrou a praceta. Lá estava ele. De costas agora para si. Aproximou-se devagar sem movimentos bruscos. Parou a uns centímetros dele. Entendeu a mão e ele voltou-se. Pai? Estava mais novo. Sorria. Tudo em si caiu ao chão. Mas..como é possível? O que se passa? Olhou para a janela da sala e ao lado, a janela da cozinha estava às escuras. Lá em cima. Não pai..tu estavas mesmo agora ali connosco..Não..e abraçou-o com tanta força que sentiu o casacão dele encolher e cair-lhe sobre os braços..vazio...

Correu com o casaco na mão para casa. Subiu as escadas, entrou em casa. Na cozinha, ninguém. No quarto a mãe deitada sobre a cama ao lado do pai, imóvel, de olhos fechados..vai até à sala..o teu pai deixou-te alguma coisa, está junto ao pinheiro..E deitou a sua cabeça sobre o peito dele..

O pinheiro, reluzindo e piscando tons de brancas estrelas. No topo de vários embrulhos estava o dele. Pegou e sentou-se no sofá. No seu colo foi rasgando o papel de embrulho castanho. Era um caderno pesado. Um livro, ele deixou-me um livro? O seu último livro? Até eu teria originalidade para pensar noutra coisa..em fúria atirou com ele à parede. Caiu no tapete machucado. Ele escreveu tantos livros durante a vida dele..e agora no fim..mais um livro..um só livro..um estúpido livro..é isso? 

E o caderno no tapete permaneceu por dias sem que lhe fosse dada qualquer importância. O enterro foi na capela da Sé, a mãe estava destroçada. E ela, como um bloco de gelo, impenetrável. Por dentro, doía-lhe tanto que falar parecia ser uma tarefa impossível, por isso não o fez durante alguns dias. Vieram umas tias, irmãs do pai, a que a mãe envolvida em dores, resolveu dar guarida. E elas apoiaram-na e ajudaram em tudo o que foi necessário. E arrumaram e limparam a casa. E o caderno, foi posto na prateleira do quarto da mãe. E por muitos e longos tempos, esquecido. Não tinha curiosidade em lê-lo? Não queria saber do que se tratava? Sabia que era a letra do pai porque aberto escancarado no chão naquela noite a reconhecera..mas de resto..


Quando a mãe faleceu, bem mais tarde, a idade em si era outra. Não menos doloroso mas focada nos seus próprios filhos, sentiu uma vez mais que era preciso ser forte e tratar de tudo com muita prática. Foi ela mesma que desfez a casa da mãe. E nos dias em que andou a empacotar coisas, deparou-se diante da prateleira do quarto. Lá estava o caderno. Terá a mãe lido? Não seria publicável? Sentou-se na cama com o caderno, uma vez mais, ao colo. E abriu e começou a ler. Durante um par de horas ou duas, não deu pelo tempo passar e a noite chegou. Levantou-se e foi à sala para fechar as portadas da janela. E distraidamente, espreitando para a praceta, lá estava o vulto. Era ele? Voou pelas escadas e de encontro a ele, abraçou-o. Abraçou-o e pediu-lhe perdão. Sentaram-se no único banco à luz do mesmo candeeiro.  Embalando-se no ombro dele, voltou a pedir-lhe perdão. Era o teu último desejo...e eu não..E olhando ao fundo meio turvo, outro vulto apareceu. Aproximando-se deles, caminhando pairando. Mãe! O pai levantou-se e deram as mãos, desaparecendo pela escuridão...Estava só..sentindo uma paz de encaixe eterno suave..tudo estava por fim no seu lugar. 

No quarto sobre a cama, não havia mais caderno nenhum. Procurou, vasculhou, olhou debaixo da cama e nada. Havia desaparecido. Mas dentro de si, cada palavra veio como história encadeada do princípio ao fim..todas elas, de rompante, tal e qual como ele as havia escrito..todas na sua cabeça, agora ..então...foi isso!..esta é a história. E pela primeira vez saboreou o futuro na certeza de o conhecer até ao fim.



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