sexta-feira, 27 de setembro de 2013

A escrever...

As duas velhas à janela. Cada uma no seu andar, uma por cima da outra. Quase que se consegue imaginar a de cima a babar-se para a debaixo. Talvez não seja imaginação. É o que nos espera no fim da vida, estar à janela, numa cidade grande. Podia ser à porta, sentadinhas lado a lado, conversando sem torcicolos, mas não, aqui a porta do prédio é pública, dá para passeios ocupados por carros estacionados e cagadas de cão. A vista é apenas o outro lado, um outro prédio, onde por azar, no caso destas duas velhas, não moram outras duas velhas para conversarem frente a frente. E talvez o grau de surdez não o permita mais, nem para a frente, nem para baixo ou para cima. Assim se olham apenas, a de cima mais que a debaixo. São as pessoas que passam o entretém do último sentido da vida, o olhar, isto se também este estiver em condições de alguma distinção. 

E às vezes, quando alguém passa e olha para cima e sorri, as velhas recolhem-se tímidas mas regressam com ar desconfiado. E se a mesma pessoa tomar por hábito o sorriso diário, depois de algum tempo, elas sorriem também. E mais algum tempo e até se conseguem ouvir algumas frases típicas de velhas "é a vida..lindo cãozinho, também tive um durante vinte anos..andamos sempre carregados e não levamos nada.." E se por acaso essa pessoa tiver disponibilidade de parar para dar mais conversa, ouvindo o que têm para contar, mesmo que seja a mesma história repetida e repetida...essa pessoa está a cometer um milagre, numa cidade, grande. 

E assim se tornam vizinhas, as vizinhas velhinhas, que à janela nos esperam todos os dias com mimos e sorrisos, em troca de outros mimos e outros sorrisos. 

Mas antes de tudo isto, estavam duas velhas à janela, uma por cima da outra...

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