Não vale a pena vivê-lo em partes, pela metade, tentar fugir dele, controla-lo, nega-lo ou sequer tentar que ele mude, que ele cresça, que ele seja. Não vale a pena contentarmo-nos com um sucedâneo daquilo que é a única forma conhecida e original dele mesmo. Não porque estamos sós, não porque não encontramos nada melhor, não porque o tempo passa e nada acontece, não porque o passado já não volta ou aquela pessoa está longe ou não nos quer. Não vale a pena se a razão é essa. Para isso mais vale estarmos sós. Porque quando ele aparece nós sabemos, nem todos passaram ainda por essa experiência, porque não acreditam nela ou porque acham-na uma fantasia idiota, ou porque lhes passou ao lado e confundiram os sintomas com outra coisa, ou ainda não tiveram essa sorte.
Na verdade, quando ele aparece, de facto parece que estamos mais doentes que saudáveis. De repente tudo o que conhecíamos como nosso, como familiar, tranquilo e seguro, desaparece. O nosso mundo perde o chão. O nosso estômago embrulha-se e o nosso apetite vai-se. A ansiedade e a angústia dentro do peito são tão grandes que mal conseguimos respirar e nada mais tem importância na nossa vida senão o momento em que estamos com o outro. Já não nos conhecemos e nem sabemos bem como nos mostrarmos ao outro. Já não estamos seguros nem confiantes e por isso tudo o que fazemos são disparates género ridículos. Deixamos de ser um só para sermos dois, dentro de dois, simultaneamente. Abdicamos da nossa estrutura e dos nossos hábitos anteriores na necessidade do outro, ao encontro dele. E fazemo-lo com o maior dos prazeres, porque fazer o outro feliz é fazermo-nos felizes. Nada disto é cor-de-rosa a tempo inteiro, precisamente porque é um mergulho no escuro, sem asas para mudar a meio do percurso de direcção, sem discernimento que ilumine a certeza do caminho, sem garantias de nada que nos traga de volta da mesma forma, inteiros. E porque tudo isto é doloroso, nem todos sabemos que o estamos a viver é amor e muitas vezes viramos as costas àquela que pode ser talvez a única oportunidade de o viver na sua real plenitude. Há quem o encontre cedo e o reconheça e há quem tarde ainda o procure. Mas a maior parte contenta-se com o chamado amor de conveniência. Há quem já o tenha vivido e pense não voltar a vivê-lo. Ninguém disse que só o sentimos uma vez na vida. Não é assim tão milagroso mas também não é vulgar.
Dizem que ele pode ter muitas formas, é mentira. Ele tem uma só veste e uma só cara. Tudo o resto são afectos coloridos que apenas se aproximam dele. Dizem que ele é tranquilo e doce e fofo, é mentira, ele tem tanto de amargo, de destrutivo, como de incondicional aprisionando-nos numa cela onde já não pode estar só um. Dizem que a isso se chama paixão. É mentira, a paixão é um estado de ilusão, passageiro, que arde até ser extinto. Ele é luta uma vida inteira, mas é uma luta dentro do próprio, de não querer deixar de ser para passar a dar e receber. Uma luta para conciliar todos os tais sintomas doentios com o apaziguamento entre os dois. Uma luta para que os nossos defeitos e os defeitos do outro não passem a ser a única imagem ao espelho.
Todos amamos de forma diferente? Não, a forma é a mesma, mas na verdade nem todos amamos de facto.
Todos procuramos o mesmo? Não, nem todos queremos vivê-lo, dá trabalho e como disse é incómodo e portanto, chateia. O amor é uma chatice, é. Quando o nosso umbigo nos chega e dedicamos uma vida inteira a retirar-lhe a teia de aranha de dentro, polindo-o e enfeitando-o para cá ficar emoldurado no museu das vedetas egocêntricas.
O amor tem na verdade um pequeno grande defeito, é que nem sempre é correspondido e aqui é que roça a imperfeição divina. Sim, é um afecto que transcende o próprio homem mas que tal como ele, não é perfeito. E não devemos aqui confundir com engano. Não há engano, há desencaixe. Ás vezes a nossa chave não bate com a fechadura do outro, o que não quer dizer que o que sentimos por ele não seja amor. Lidar com essa desilusão é desastroso e ao contrário também. E depois de uma vez vivido, fica o trauma do regresso, de voltar a acontecer, e é isto que muitas vezes faz com que a fuga nos seja mais confortável ou seguir por variantes de conotação afectiva mais leve e tolerável.
Dizem que antes de mais é preciso amarmo-nos e só depois procurar o amor no outro. Errado. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. E o amor não se procura, encontra-se e bem que o sabemos quando lá está. Muitas vezes é o amor no outro que vem então compensar o amor ao próprio que provavelmente até veio de uma infância de amor defeituoso e que quanto a isso meus amigos, bem podem fazer terapia que nada há a fazer, senão amar um outro, podendo aqui ser si mesmo, mas um novo si e para criar novos sis, é preciso que muitos outros o amem. O amor partilha-se, não se faz crescer sozinho dentro de si a partir da não matéria. Amar o próximo pode ser mais elevador do que passar a vida a tentar amar-se a si próprio. Não é um pensamento cristão, é um princípio da natureza, nada no mundo está sozinho e isolado, portanto, não faz sentido essa procura desenfreada pelo amor próprio ao próprio, isso é um produto das sociedades modernas individualistas, onde todos temos de ser pessoas de sucesso, capazes e autónomas e...lá está, independentes. Mas independentes de quem? De quê? Formam-se as famílias unipessoais, onde um T1 é até espaço demais e é nos animais onde vamos acabar por compensar esta ausência caindo no ridículo de passearmos coelhos de trela.
Da teoria à prática estão dois passos: acreditar que ele existe e deixar que aconteça.
:O
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