sexta-feira, 29 de agosto de 2014

O guarda chuva


I


O homem que saía todos os dias de casa com um guarda chuva.
Vivia no 2º andar de um prédio velho da cidade e de companhia tinha um gato europeu malhado de nome Isósceles. De estatura média, cabelo grisalho, barba aparada, óculos, 52 anos, sempre de fato escuro e sapatos engraxados. De peso ligeiramente acima do desejado e ao pescoço sempre um laço. Não havia dia do ano que não saísse de casa acompanhado do seu guarda chuva preto de cabo curvo em madeira e de abertura manual. Longe de ser uma dessas peças baratas automáticas inventadas pelos orientais de esquina, era um guarda chuva pesado, comprado numa loja na baixa há mais de trinta anos, onde só se vendiam e reparavam guarda chuvas. E porque o guarda chuva era também uma bengala, o corpo de Afonso adaptou-se a ele como se fosse uma terceira perna, sempre usado na mão direita, a perna direita passou a encostar-se a essa bengala e por isso, Afonso coxeava.

Como a descrição não deixa margem, um homem de rotinas absolutas e por isso, Afonso da Silva todos os dias se levantava impreterivelmente antes das oito, fazia o seu café, barrava uma única metade de carcaça torrada com manteiga sem sal e alimentava o seu gato. Depois disso, lavava-se, vestia-se e saía, passando pelo quiosque para comprar o jornal. Ás nove em ponto entrava ao serviço nos escritórios da alfândega, depois de apanhar o autocarro das 8,45. Passava pela sala do chefe, cumprimentava-o, regava a planta do corredor do seu piso e sentava-se na sua secretária às 9,15. Tinha um relógio de bolso cujo acerto confirmava várias vezes ao dia e ainda um lenço de pano azul claro no bolso oposto sempre pronto para se assoar, caso necessário. Na sua secretária estava um objecto que o acompanhava desde o primeiro dia de trabalho quando era ainda um garoto marialva de bairro e o pai o colocou ao corrente "acabou-se a escola meu rapaz, está na altura de contribuíres para esta família, os teus irmãos há muito que saíram de casa e todos os meses deixam aqui nesta caixa de correio a nossa pensão", o pai queria dizer, a renda para pagar as bebedeiras diárias da tasca e os lenços de papel para secar as lágrimas da mãe deste triste fado. Como Afonso da Silva já sabia escrever e tinha alguma queda para os números não tardou em encontrar trabalho neste mesmo escritório. 

Mas a tara pela chuva vem desde muito tenra idade, era ainda bebé quando a mãe numa noite de tempestade o deixou em casa no berço enquanto os irmãos dormiam no quarto ao lado, para ir até à tasca saber do seu marido que até a altas horas da madrugada ainda não regressara a casa. Embrulhou-se no xaile e saiu. Afonso, que já gatinhava curioso, diz-se lá pelo bairro, tombou-se do berço e arrastou-se até à janela escancarada por desleixo da varanda da sala, ensimesmado com os clarões que vinham do céu tempestuoso. Diz-se que terá sido tomado nos braços de Santa Barbara Bendita e entregue a um raio e que desde esse dia, dias chuva e tempestade, lhe provocam um pânico que lhe embrulha toda a alma num sufoco. Não foi de estranhar que ao ir para a escola, além da sacola dos livros e da merenda levasse sempre consigo um guarda-chuva, nesse tempo, outro de dimensão mais reduzida e mais leve. 
É claro que os outros garotos o tomaram como motivo de chacota muito cedo e é claro também que Afonso da Silva se tornou numa criança estranha para os demais, estranha de poucas falas e absorvido numa extracção de pensamento permanente, "com a cabeça nas nuvens, não sei como aprende, mas lá vai aprendendo", dizia a professora. 
O outro objecto adquiriu-o mais tarde. O tal objecto que tinha sobre a sua secretária: um higrómetro. Numa loja de antiguidades lá para os lados de S. Bento. Poderíamos dizer que Afonso já era velho antes de o ser. Assim que começou a trabalhar fardou-se de fato escuro e o escasso convívio social foi-lhe moldando no rosto um envelhecer precoce mas adequado ao seu pensamento. O contacto com mulheres foi esporádico e pago, não tinha esse hábito, fizera-o por curiosidade algumas vezes mas algo de inóspito o afastara do desejo ou da necessidade de o satisfazer. Era demasiado tímido para convidar alguma colega de trabalho para ir ao cinema e fazia-o por isso frequentemente sozinho. Gostava também de caminhar a pé pela cidade aos fins de semana e mais tarde passou a ler o jornal religiosamente ao domingo de manhã no café onde se juntavam outros seres impares. Travou amizade com alguns deles mas longe de lhe preencher o vazio dos dias do lento passar do tempo. Conversas de ocasião, debates e às vezes até discussões filosóficas ou políticas. Afonso gostava de estar ao corrente da informação do mundo e lera já por esta altura grandes nomes da literatura. Em casa não faltavam livros que o ocupavam a maior parte do tempo. 
O tal objecto onde diariamente podia medir a humidade da atmosfera era o seu fiel medidor da vinda indesejada de chuva. Tinha uma plataforma de madeira em forma de ondas, onde assentava um barco à vela e um homem vestido com uma capa que o cobria até à cabeça. Quando a humidade estava no ponto de sugerir chuva, a vestimenta do homem mudava de cor, tomava os tons de roxo.  

Quando chovia Afonso da Silva recusava-se a ir trabalhar. Naquele tempo um emprego era para toda a vida e o patrão, um homem vivido e sereno, permitia-lhe compensar os dias de falta com fins de semana e férias não gozadas. Afonso vivia em função da chuva. Se por algum motivo começava a chover a meio do dia ou ao final do dia, dormia no escritório. Tinha na sala dos arquivos uma manta e uma almofada e acampava-se por lá até ser novo dia. Por alturas de um Inverno mais chuvoso, houve semanas em que permaneceu no escritório, sem ir a casa. Os colegas já não aguentavam a ausência de banho mas compadeciam-se trazendo-lhe comida de fora e algumas mudas de camisa e roupa interior. Com o tempo, o gozo foi dando lugar a uma familiaridade de pena. Afonso era assim, não havia nada a fazer. Se por acaso acordava em casa e o dia estava chuvoso, trancava as janelas, corria as persianas, desligava todos os aparelhos eléctricos e encerrava-se na cama a ler à luz de vela. Era um funcionário exemplar retirando a excentricidade, não tirou em trinta anos de ofício, um dia real de férias, não tinha para onde ir e não queria arriscar-se a encontrar-se desprevenido e desamparado noutro lugar qualquer. 



II


Estavamos no final de uma tarde solarenga de Junho. Afonso da Silva olhou para o tampo da sua secretária meticulosamente arrumada. Estava pronto para regressar a casa. Ajeitou a camisa dentro das calças, vestiu o casaco e compôs o laço. Encostado à secretária estava o seu fiel guarda chuva, pegou nele e dirigiu-se para a rua. Afonso gostava de sol, não ao ponto de ir à praia, mas de dar passeios deambulando e apreciando o calor da tranquilidade por oposição à chuva. Vários eram os dias de Verão em que regressava a casa a pé, dias de confortável céu. E hoje era um deles.

Subindo a rua mais íngreme da cidade, tinha por necessidade parar a meio para descansar. Lá em cima avistava-se a entrada do jardim municipal frente à entrada de um pequeno centro comercial quase deserto nos dias de hoje. Passando esse largo, mais duas extensas avenidas de comércio, capelas e quiosques e chegaria ao seu destino. Nesta altura do ano, a cidade começava a dar sinais de calmaria, a partida de férias aliviava o trânsito e os recantos tornavam-se num belo roteiro turístico mesmo para aqueles que todo o ano a habitavam.
Parado no passeio, apoiado no seu guarda chuva Afonso observava os pombos que nos beirais dos telhados se encontravam parecendo velhos no banco da praça jogando cartas. Estava um dia quente e retirou do bolso o lenço para limpar a testa. Porque parado lhe permitia repousar as pernas, passou o guarda chuva para a outra mão, descansando a outra perna. Nesse momento, porque ainda estava ocupado em dobrar o lenço num quadrado cumprindo as dobras do ferro, ao mover o guarda chuva não reparou que enfiara a ponta de ferro numa sarjeta ferrugenta lateral ao passeio. Quando procurou devolvê-lo à mão pertencente, percebeu que estava preso.
O drama. Tentou primeiro com delicadeza desentala-lo e de insucesso, com mais força, agarrado ao cabo de madeira, tal espada de Artur, numa atrapalhação de nervos que despertara já a atenção de quem subia a rua. Nada. O maldito parecia que estava cimentado às entranhas do submundo. Afonso começou a gritar de desespero "Acudam, acudam! Não sou capaz sozinho". Mas as pessoas passando, perante o ridículo da situação, riam-se e seguiam. Deitou-se então no passeio, com a cabeça colada ao evento para tentar perceber de mais perto se havia algum ângulo de escape. E foi então, que incrédulo viu, saindo de um dos veios da sarjeta, surgir um homenzinho de dimensão não maior do que um dedo indicador, vestido com uma capa até aos pés que lhe cobria também a cabeça deixando apenas visível o rosto. Uma capa azul.

Afonso afastou-se pasmado e voltou a aproximar-se piscando os olhos para desfazer a visão. Ajeitou os óculos na ponta do nariz e voltou a ver o homenzinho. Lá estava ele, de braços cruzados, batendo o calcanhar como se estivesse impaciente, olhando indignado para Afonso.  E falou "Não vais fazer nada? Vais ficar aí parado a olhar para mim?", não sabia o que fazer. Nada disto podia ser real, mas o homenzinho estava bem ali, diante dos seus olhos e falava porque aos seus ouvidos chegara a informação completa e clara. "Eu...não entendo...", "Como não entendes? Falei noutra língua por acaso?", tinha mau feitio aquela pequena criatura. "Não, quer dizer, eu entendi o que me disse, mas não entendo como posso estar a vê-lo...nada disto faz sentido...".
O homenzinho sentou-se na sarjeta como se viesse cansado de uma longa caminhada, cruzou as pernas com um ar solene e ao bolso da capa foi buscar um cachimbo, acendeu-o e começou a fumar. Depois voltou a falar. "Nós as criaturas da chuva, não nos deixamos ver a qualquer um...somos milenares entendes? Há muito tempo que nos escondemos dos humanos por receio...". "Criaturas da chuva...", Afonso estava absorto naquele cenário.  Do lado de fora, era ainda mais catatónico. Quem passava, via um homem deitado no chão, um guarda chuva numa sarjeta e uma conversa em monólogo. Um homem de idade, piedoso, aproximou-se de Afonso "Precisa de ajuda amigo?", Afonso ajoelhou-se "Está a vê-lo?". O homem preocupado, olhando para a sarjeta comum "Se calhar é melhor chamar alguém para ajudá-lo, tem alguma dor?", Afonso retorquiu "Não, deixe-me em paz...". Nesse momento já outro senhor se juntara e observava o acontecimento, perguntando ao outro se era preciso ajuda. Não demorou para que várias pessoas circundassem Afonso e alguém chamar a assistência médica sem saber porquê mas não fosse o caso de ser uma emergência. E o homenzinho falou novamente "Eles não me conseguem ver...", Afonso não teve tempo de reagir porque lá em baixo na rua ouvia-se já ruidosa uma ambulância. Quando parou ao lado da multidão, dois homens fardados aproximaram-se de Afonso e depois de tentarem saber se estava bem, não obtendo resposta, pegaram nele para o transportarem. "Não", gritou esbracejando, "O meu guarda chuva...não o deixem ficar aí, não por favor...". Mas ninguém quis saber do assunto, foi amarrado a uma maca e levado para dentro da viatura que desapareceu novamente rua abaixo num frenezim desgraçado. Afonso teve apenas tempo de ver o homenzinho da capa abanar a cabeça para ele, como se estivesse a reprova-lo, com um sorriso desastroso.


III

Estava num quarto com mais dois companheiros. A sua cama era a da ponta da janela que dava para um muro do lado oposto, donde só se conseguia ver céu. Afonso olhou através dos vidros. Céu limpo e pássaros esvoaçando em orbitas repetidas, estava ainda meio atordoado. Ao seu lado estava um senhor paquistanês que gritou e gemeu desalmadamente toda a noite, sem se perceber uma palavra e do lado da porta, outro senhor cuja idade e discurso desconexo apontava para senilidade. Afonso sentia-se ultrajado e despido da sua vida. Ainda amarrado à cama e certamente dopado, pensava no seu guarda chuva abandonado na sarjeta. A esta hora já teria sido levado pelos homens do lixo durante a noite, só a ideia desolava-o. Como se tivesse sido mutilado, uma parte do seu corpo desagregada de si. 

Uma enfermeira jovem de cabelo encaracolado ruivo entrou no quarto, trazendo um carrinho com bandejas com o que parecia ser o pequeno almoço e comprimidos, mais comprimidos para os três. "Não quero tomar nada disso, estou bem, quero falar com um médico..." e a enfermeira olhando com um ar de desprezo respondeu "Logo à tarde será visitado, agora seja um bom menino e tome a sua medicação, vai sentir-se mais calmo...". Afonso não teve outro remédio porque a menina ruiva não lhe largou a cabeceira enquanto não o viu ingerir o comprimido pela goela baixo empurrado por um chá insípido e uma torrada com compota sabe-se lá de quê. O senhor paquistanês continuava a gemer, conseguia até mastigar e gemer ao mesmo tempo. Afonso sentiu-se desesperado, nunca mais iria sair daquele lugar. A ausência de controlo sobre a sua vida e o efeito do sedativo trouxeram-lhe novamente sono. Quando despertou estava a ser transportado numa maca novamente.
"Para onde me levam?", "Vamos fazer-lhe alguns exames". Seguiu-se uma panóplia de intervenções a que Afonso apreciou com especial desagrado por considerar uma intrusão. Raramente ia ao médico, até porque, raramente se sujeitava a situações que o pudessem adoecer. De regresso ao quarto, o senhor do lado da porta encontrava-se ausente, ao ver Afonso intrigado a enfermeira, uma outra loura, disse-lhe "O senhor Alcides estava já muito mal, a idade coitado...". Afonso sentiu um arrepio na espinha, "deste lugar só se sai morto" pensou. O senhor paquistanês dormia agora e Afonso pediu à enfermeira se podia ir até à sala da televisão para se distrair um pouco, "Vai mas vai nesta cadeira, não sabemos ainda o diagnóstico e por isso recomenda-se esforços mínimos...pode ir". A ideia de Afonso era escapulir-se daquele inferno, não estava louco, não estava doente e queria por tudo recuperar o seu guarda chuva. Sentou-se na cadeira e com as mãos fez circular a cadeira pelo corredor fora "não fazer esforços, esta cadeira parece um pedregulho a ser puxado montanha a cima, inúteis, não querem saber de uma pessoa para nada aqui" pensou, realizando algum esforço para se levar devido ao peso do seu corpo. 

Ao contornar a esquina do balcão de atendimento do piso, viu a sinalética das escadas de incêndio, "darei menos nas vistas se for por aqui" e abandonando a cadeira no caminho, desceu ainda meio enfraquecido da medicação. Desceu até onde pôde ir, saindo por uma porta que dava para o parque de estacionamento. Não deveriam dar pela sua falta senão pela hora hora do jantar. Tinha tempo para fugir com a calma discreta de quem não está a fugir, mas o seu pijama hospitalar denunciava-o. Precisava de roupas com urgência. Mais à frente, no parque, estava uma senhora a descarregar malas acompanhada de uma outra de mais idade com um andarilho. Afonso aproximou-se escondendo-se nas colunas separadoras. Manteve-se à espreita. A senhora agarrou numa das malas e acompanhando a outra de idade dirigiram-se ao elevador deixando o carro aberto com a outra mala. Teria de ser rápido. Dirigiu-se ao carro e levou a mala, correndo coxeando aos saltos parque fora. A senhora só reparou quando passados alguns minutos regressou ao carro e sentindo-se roubada procurou um segurança. Neste entremeio, Afonso teve tempo de abrir a mala, "Raios, só roupa de mulher...isto deve servir...tem de servir", era uma camisa de dormir e umas calças de fato de treino as quais nele serviam como camisola e calças justas. Afonso estava ridículo, parecia um fugitivo de um hospício, e era-o na verdade. 

Só pensava no seu guarda chuva. Tudo o que desejava era estar de novo junto dele. Abraça-lo, beija-lo, acaricia-lo, carrega-lo junto ao peito. O seu fiel companheiro. Na rua, sem dinheiro, teria ainda uma longa caminhada a pé. O hospital ficava a alguns quarteirões de distância mas a força que o movia era sobrenatural, heróica e por isso as suas pernas não sentiram cansaço na caminhada. Quando se aproximou da rua do acontecido, olhou para cima na tentativa de o ver. Andou mais depressa, sôfrego e ao aproximar-se para seu grande desalento, não estava mais lá. 
Baixou-se então junto à sarjeta. "Estás aí criatura? Estás aí?" e esperou.  Viu então surgir da escuridão o homenzinho. Ergueu-se e sentou-se cruzando as pernas, "Ah, és tu novamente...", Afonso atropelando as palavras implorou-lhe "Por favor, viste para onde levaram ou quem levou o meu guarda chuva? Sabes de alguma coisa?". "Vi...mas preciso de um favor em troca dessa informação", Afonso irritou-se "Ah criatura maquiavélica, não entendes que preciso do meu guarda chuva?", o outro calmamente continuou "Eu sei...mas eu também preciso de algo...e só tu me podes ajudar". Afonso endireitou-se deixando assentar-se em desistência, não tinha como regatear, iria ouvir o pedido do homenzinho. 


IV

"Tu não sabes quem és pois não?", Afonso não compreendeu "Eu sou o Afonso da Silva, quem mais poderia ser?" e a criatura soltou um suspiro como se fosse de conhecimento geral e estivesse a explicar o óbvio "Tu és o guardião da chuva, foste entregue à mãe tempestade ainda bebé por nós criaturas da chuva. Mas desde então que tens evitado o teu destino e usado como escudo de contacto esse guarda chuva...não precisas mais dele...só há um guardião da chuva de cem em cem anos, tu tens de cumprir o teu papel, caso contrário uma grande desgraça poderá acontecer". 
Afonso estava incrédulo, como podia a criatura saber do episódio de infância? "Escuta, eu não sei que espécie de criatura ou de delírio és, mas eu sei quem sou e tudo isso são idiotices...desgraça? De que estás a falar?". O homenzinho levantou-se e afirmou com o dedo em riste "Chega, não há tempo a perder...todos os elementos da terra estão a perder-se pelo portal, a nossa urgência é encerrar esse portal para manter o equilíbrio e garantir que há chuva, vamos, leva-me ao grande lago do jardim da cidade". 

O homenzinho estava convicto e decidido a não ajudar Afonso a recuperar o guarda chuva enquanto este não o levasse ao lago, e por isso Afonso pegou nele, colocou-o no bolso das calças e dirigiu-se para o jardim. Ainda sobre a sua palma referiu-lhe "Espero que depois cumpras a tua promessa, não tenho nada a ver com as tuas demandas, quero apenas o meu guarda chuva" e o homenzinho levou as mãos à cabeça e respondeu "Tu não entendes pois não? Vamos...verás a dimensão". 

O caminho para o jardim coincidia com a passagem pela rua onde morava e ao aproximar-se viu um carro de polícia parado na porta do seu prédio. Estariam certamente à sua procura. Seguiu apressando o passo desajeitado. Mais à frente passou por duas mulheres que estavam na porta espreitando o acontecido, Afonso sabia que não o conheciam e lentificou-se para escutar o que diziam "Parece que o homem fugiu do hospital, estão à procura dele, está muito doente". "Estou muito doente" pensou, seria verdade? Ignorando prosseguiu, queria com toda a urgência resolver a situação e recuperar a sua vida. Tudo deveria permanecer como antes, seguro e controlado. 

O jardim da cidade era o maior parque verde das redondezas, antigo e conservado. Tinha um portão enorme de ferro trabalhado que encerrava às 9 horas da noite. Pela queda do dia, percebia-se que deveriam estar perto da hora de encerramento. Não havia guarda e por isso conseguiram entrar, o dia começava de facto a escurecer e o jardim estava já deserto. Alguns baloiços ainda badalavam como se fossem lençóis quentes de uma cama acabada de abrir. Passando uma clareira de árvores de corpos ancestrais entrelaçados, lá estava o grande lago. 
Afonso estava cansado e sentou-no no banco de madeira junto ao lago. De dentro do bolso saiu então o homenzinho. Afonso suspirou de cansaço mas depressa expirou de pânico, a capa, a capa do homenzinho estava roxa. Olhou o céu que se tomava de negro e a pouco e pouco em convergência, começaram a aproximar-se nuvens tapando as primeiras estrelas. "Não, vai chover! Eu preciso de regressar a casa imediatamente! Agora, estás a ouvir!". O homenzinho sentou-se no seu colo, puxou do cachimbo, acendeu-o e disse "É claro que vai chover, nós vamos abrir o portal, estamos muito próximo dele. É por isso que vai chover. E tu não vais a lado nenhum." Apagou o cachimbo depois de dois bafos e foi até à beira do lago levantando os braços ao céu. Afonso esfregava as mãos tremendo de medo, estava muito longe de casa e não tinha sequer o seu guarda chuva. Mal conseguia respirar de tanto pavor. E o homenzinho falou entoando a voz como se cantasse.
"Lánua Caeli, et emítte cáetilus, Lucis tuae rádium." E nesse momento um enorme raio caiu dos céus sobre o lago, deixando uma luz intermitente presente. O portal aberto. Afonso embrulhou-se atrás do banco chorando como uma criança assustada depois de levar uma sova sem razão. Doía-lhe todo o espírito e as entranhas queriam sair pela boca. O homem virou-se para Afonso ordenando "Anda, está na hora, vem". E como se uma força exterior o estivesse puxando, sentiu o corpo deslizar até ao portal, entrando dentro dele. 


V

O guarda que de manhã abriu o portão do jardim tinha por hábito fazer uma ronda para verificar a normalidade das condições do mesmo e foi ele que deu com Afonso da Silva chapinhando nu no lago, cantando e rindo como um louco.  Perante este cenário o guarda não hesitou em chamar as autoridades para levarem Afonso, que parecia embriagado perdido em alucínios, chapinhando como um pato. 
Afonso na realidade sentia uma alegria tremenda, como se uma libertação dentro de si tivesse ocorrido e cada parte do seu corpo, da sua mente, fizesse agora parte de um todo, onde tudo brilhava e reluzia como acabado de chover. E o odor que sentia, a terra molhada, a orvalho, era divino. Sentia vontade de mergulhar, de esfregar-se na relva, de abraçar as árvores e voar com os pássaros. 

Foi levado novamente para o hospital. Estava deitado na sua cama olhando o infinito quando uma enfermeira se aproximou "O senhor teve um colapso cerebral, a extensão dos danos é grave, consegue perceber o que lhe estou a dizer?". Mas Afonso parecia perdido noutro mundo. Os dias passaram e foi mandado para uma casa de repouso, onde muitos outros estavam e da qual tinha licença para sair de dia, uma vez que manifestava estar na posse das qualidades necessárias para realizar o básico dentro de um quadro de realidade adaptada mas cuja comunicação com o exterior se encontrava encerrada sobre si mesma. Todos os dias, Afonso caminhava até ao jardim da cidade e sentava-se junto ao lago no banco de madeira. Ali ficava até ao entardecer. E todos os dias regressava à casa de repouso, pelos seus próprios pés. 

Um dia, uma criança que brincava com um balão veio sentar-se ao seu lado e perguntou-lhe " O que fazes aqui?" e Afonso da Silva respondeu "Eu sou o guardião da chuva, é aqui o meu lugar". A criança ficou pasmada a olhar para ele e tocou-lhe na mão sorrindo "A chuva é muito importante". E correu procurando a mãe deixando o balão libertar-se da sua mão.  Lentamente Afonso viu o balão ascender, como um guarda chuva planando no céu, até que apenas um minúsculo ponto no infinito, desaparecer entre as nuvens de branco. 





sábado, 23 de agosto de 2014

33



I



Nesse dia faria 33 anos.
Depois desse dia, o número colara-se a si como lapa. Para todo o lado, onde quer que fosse o número aparecia ao seu olhar. Das primeiras vezes riu-se achando curioso, depois começou a preocupa-la. Teria algum significado? Seria prenuncio de algum acontecimento? Ela não era nem particularmente religiosa nem particularmente ateia. Acreditava na natureza e num certo equilíbrio entre o bem e o mal. No entanto, desde criança, tinha longas conversas com Deus. Devido à sua educação, ou das crianças que a rodeavam, Deus tinha para si o rosto de Cristo, tal e qual aquelas imagens que se viam nas igrejas. 
Algumas vezes tinha ido à missa por companhia da sua melhor amiga, mas não com a sua própria família, o pai dissera-lhe "quando tiveres 18 anos escolhes a tua própria religião", por este motivo não era baptizada, coisa rara entre os seus colegas de escola. Por parte do pai, criado em colégio de padres, não seria de estranhar esta atitude, por parte da mãe que concordava plenamente, havia uma cultura de comunismo que via a religião como cegueira e entrave ao conhecimento e desenvolvimento humano. Mais tarde, quando o pai voltou a casar, os seus irmãos foram baptizados e a mãe, recorda-se de na sua adolescência ouvi-la dizer "não sei onde errei, talvez se tivessem tido uma educação mais religiosa, talvez fossem mais pacíficas e tivessem outros valores de família", isto numa época conturbada de discussões diárias em casa. As coisas mudam, as pessoas mudam de ideias. Mas em si, dentro de si, ainda hoje agradece esta liberdade. Talvez por este motivo, tenha criado na sua cabeça uma religião só sua, individual. 

Recorda-se dessas missas como se fossem hoje. Era ainda menina. Recorda-se de ter recebido de presente da mãe da amiga um missal com capa de couro bordado a ouro. O cheiro quando o abria trazia-lhe um conforto que só podia ser pacífico e pleno. Assim via a religião nessa altura. Pacífica e plena. A parte que mais gostava da missa era o sermão do padre. Aos seus ouvidos, histórias de embalar. Lembra ainda hoje a voz dele tão nitidamente como se de alguma estrela pop se tratasse. Mas era uma voz calma e monocórdica que a adormecia poeticamente, deambulava na missa como se estivesse numa casca de noz boiando num rio que lentamente se aproxima do mar. O mar mais abruptamente irado era a parte dos abraços, essa era a parte que lhe fazia confusão, os abraços e os beijos ao próximo. "Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: Acautelai-vos dos falsos profetas".  Não conhecia o próximo de lado nenhum e sentia vontade de abraçar a sua mãe, de estar em casa para o almoço de Domingo, mas não estava, raramente estava. Fora sempre uma criança do mundo, passeava de casa em casa, ora familiares seus ora amigas, semanas inteiras sem sentir qualquer saudade de casa. Aborrecia-lhe estar muito tempo no mesmo lugar. 

Também era estranha a parte em que todos iam à hóstia menos ela. Não tinha direito ao corpo de Cristo, ao corpo sem pecado. Nessa altura ainda não, mas hoje tem a certeza de preferir o sangue de Deus, com ou sem pecado, o vinho só pode ser um composto celestial de virtude. In vino veritas. De todo, verdade. 

Desde muito cedo, soube o que era estar e não estar, estar e não pertencer. Por esses tempos ouvia falar no pecado, mas sobre isso nada conhecia e por isso, nada lhe diziam as palavras de ameaça de castigo ou punição. Hoje reflectindo sobre isso considera um absurdo sem necessária uma entidade castradora exterior para controlar ou catalogar os seus actos, tem aquilo que se chama de consciência e reflexão. E se comete pecados, aos olhos de Deus, do seu Deus, não serão senão tentativas de ser feliz. É sobretudo humanista mas em momentos de desespero lá vai buscar a Deus, ao seu Deus, o conforto da palavra divina. 
Nos bons momentos, secretamente, agradece-lhe. Uma religião simplista, para complexa basta a vida. 

33. Nesse ano todas estas questões vieram-lhe ao pensamento. Possivelmente como uma procura de resposta que justificasse a presença constante do número. Provavelmente também porque assim que fez os 33 anos ouviu de seu pai "tens agora a idade de Cristo". João 3:3; Jesus respondeu e disse-lhe "Na verdade te digo que aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus". Jesus realizou 33 milagres. Morte, ressurreição e ascensão. Sabe também que foi a idade de Alexandre o Grande. O Rei David reinou durante 33 anos em Jerusalém e Jacob tinha 33 filhos. Para o profeta Al-Ghazali os habitantes do céu terão eternamente 33 anos. É a representação numérica da Estrela de David, na qual no hinduísmo, cada ângulo representa um Deus da Trindade: o criador, o preservador e o destruidor. O papa João Paulo I esteve apenas 33 dias como tal e a Virgem Maria é também conhecida como Nossa Senhora dos 33 no Uruguai, em memória dos 33 soldados da libertação do Brasil. 
É a morte do materialismo 3D para o espiritualismo, 4D.
É o número de vértebras que o ser humano tem na coluna. "A mente é como um cume de ouro que encima o corpo físico. Pela escadaria da coluna vertebral, a energia sobe e desce, circulando, unindo a mente celeste ao corpo físico. O corpo é de facto um templo. Quando o teu olho for bom, o teu corpo terá luz", Mateus 6:22.  É ainda o número de voltas completas na sequência do nosso DNA.
É à escala de Newton a temperatura à qual a água ferve
É o último grau da Maçonaria: Soberano Grande Inspector Geral. São 33 os símbolos da Maçonaria.  É a esfera de mais difícil acesso e cujo significado é revelado aos magos, "iluminados" e aos santos. 
Na literatura Dante na "Divina Comédia" dedica 33 cantos ao purgatório, 33 cantos ao inferno e 33 cantos ao paraíso. São ainda 33 os ciclos lunares da gestação.

Mas vamos ao lado negativo do número. É o símbolo do Ku Klux Klan (k é a 11ª letra do alfabeto, vezes 3, encontramos o 33). É o número atómico do Arsénio, letal. E, se o número 333 é a divindade e a ascensão ao conhecimento pleno espiritual de Deus, querer estar acima de Deus, é entendido como presunçoso e estamos perante o número 666, associando ao Anticristo. 

Se isolarmos o número 3 encontramos também os três poderes (jurídico, executivo e legislativo), a chave da democracia, sendo o número mínimo de pessoas para aprovar uma decisão. Freud fala-nos do complexo de Édipo, uma trilogia essencial para o crescimento humano pai-mãe-criança, no entanto, para outros autores como Frankl, Freud terá negligenciado a verdadeira terceira dimensão, a espiritual, completando a biológica e a psicológica. A pessoa só será pessoa quando deixar o binómio eu-mãe para assumir a tríade eu-mãe-mundo. Tal como na arte, só deve fazer sentido quando encontramos a tríade artista-obra-observador/receptor. O acesso à terceira dimensão é o acesso à profundidade ou distância com alto grau de confiança. 

Mas nada disto ajudava a esclarecer a presença do número 3 na forma de 33 na sua vida no presente momento. Podia ser tudo e podia ser nada. Dependendo do grau de importância que daria à simbologia. E mesmo não dando qualquer significado, ele estava lá, todos os dias. Numa porta, numa matrícula, num número de telefone, numa conta de supermercado, nos sonhos. Chegou a acordar às 3.30 da manhã várias noites, razão pela qual retirou todos os relógios do seu campo visual nocturno. E havia uma certa angústia de morte associada à presença constante do número. Talvez a principal razão para a busca obsessiva de respostas. 



II

13 de Junho, 2013
Alba acordou, levantou-se e fez café como em qualquer outra manhã da sua vida. Abriu a janela da sala para deixar entrar o sol. Este era um Verão tímido, pouco quente e ocasionalmente chuvoso. De fora escutavam-se já os pregões das varinas, o mercado hoje estava cheio de turistas, Alba podia ver da sua janela claramente as entradas e saídas do mercado. Pensou que talvez não fosse má ideia comprar peixe para assar no forno, iria receber nessa noite os seus convidados e não tinha ainda decidido o menu. Peixe assado, a receita era da sua avó, levava alecrim. Compraria também maçãs para uma tarte. 

Hoje era o dia do seu 33º aniversário. Casaria também os anos: dia 13 no ano 13. A última vez que casara os anos fizera 13 anos. Esta história do casamento dos anos era uma coisa de garotas. Não tinha qualquer outro significado a não ser ocorrer uma a duas vezes na vida. Por esse motivo tinha a sua significância na vida de uma pessoa. Aos 13 anos recebera da mãe um anel a que vulgarmente se chamava "um espera maridos". Todas as raparigas adolescentes recebiam um e nesse dia a mãe apeteceu-lhe ser um pouco convencional e dar-lhe uma nesga de vida comum. O anel era trabalhado a ouro e tinha em toda a volta pedras semi preciosas. A lógica do anel era que as pedras iam caindo ao longo do tempo e quando caísse a última pedra a rapariga casava-se. Havia já colegas suas que provocavam a queda das pedras, tinham pressa para casar. Mas Alba não, achou piada ao presente mas estava muito longe de qualquer contacto com rapazes. Ocupava ainda a sua cabeça com aventuras e livros de contos de fadas. Para uma mãe comunista este fora um presente excepcional, até porque não acreditava no casamento como necessidade institucionalizada. "As pessoas devem procurar a felicidade e não a convenção Alba". Mas ainda assim, o anel podia ser uma forma de integrar Alba no seio das suas colegas. 
Alba desde cedo fora muito pouco feminina. Preferia os livros às bonecas e o futebol na rua aos vestidos. A mãe estivera sempre demasiado ocupada com a sua carreira política para reflectir sobre o assunto e no fundo achava até preferível ter uma filha assim do que uma princesa. "Estarás mais bem preparada para a vida filha, a beleza chega a ser um veneno, o importante é cultivares a tua mente e o teu espírito". Claro que com anel veio um conjunto de livros que a mãe considerava essenciais para a educação de Alba. 

Alba ainda conservava o anel no dedo, ficara como parte do seu corpo, como se fosse uma cor de cabelo ou um sinal no canto da boca. Hoje olhava para ele e provocava-lhe saudade. Saudade de uma mãe que pouco estivera presente mas cuja presença não deixou de ser marcante para toda a sua vida. Fazia também hoje 13 anos que falecera. Quanto ao seu pai, voltara a casar e Alba não fazia intenções de aceitar este casamento nunca. O pai contrariara todas as normas da educação que lhe dera e por este motivo Alba achava que não o conhecia mais. Era uma outra pessoa transformada pelas mãos daquela sua madrasta desinteressante que ficara um pote depois de ter dois filhos. Alba raramente via os irmãos e pouco ligada a eles se sentia, embora gostasse particularmente do feitio do irmão mais novo, parecido consigo. Das poucas vezes que estavam juntos procurava transmitir-lhe algumas das ideias que a mãe lhe transmitira a ela e que ainda hoje pensava serem ideais de uma vida estóica.

Seria peixe então. A casa era pequena, Alba vivia sozinha já desde que o pai voltara a casar. Não chegou a terminar os estudos porque perante a morte da mãe e o abandono do pai impôs-se a necessidade de se auto sustentar para se poder libertar. Nessa altura mudou para a aldeia, tinha esperança de num lugar mais pequeno encontrar menos solidão. Metade de si falecera com a mãe, a outra metade desaparecera com a radical mudança do pai. Estava desde esse tempo entregue a um si totalmente desenraizado. Os seus amigos eram três rapazes, todos irmãos, seus companheiros desde que chegara à aldeia. As pessoas comentavam uma rapariga andar sempre com três rapazes e não ser namorada de nenhum mas Alba não se importava com falatórios e eles  também não. Tinham tido em comum uma educação comunista e os seus serões eram ocupados com debates e leituras, um clube de idealistas isolados do mundo perverso que os rodeava, mas na verdade e Alba tinha consciência disso, não menos perverso que a relação dos quatro. Muitas noites, bebidos e fumados, acabavam por acampar na casa dela, pela cama ou pelo sofá. Não tinha qualquer relação sexual com nenhum deles mas tinha uma paixão pelos três. Como se fossem um só, Alba sentia que não podia escolher apenas um, por isso, conservara-os por perto como amigos ou qualquer coisa perto de serem a sua família. Nenhum deles manifestava interesse por outras raparigas e todos demonstravam um carinho por ela muito próximo do amor de homem-mulher. Ás vezes discutiam, como se disputassem entre si masculinidade: o mais forte, o mais inteligente, o mais belo, ficaria com ela. Mas essa escolha nunca aconteceu.
Hoje comeriam peixe assado e Alba sopraria as velas. 

Como era o dia do seu aniversário, Alba não trabalhava, a fábrica dera-lhe o dia. Alba era operadora numa das últimas fábricas de conserva do país. Sardinhas e atum em lata. O fabrico era ainda muito pouco industrial e não mais de quarenta pessoas trabalhavam ali, por isso, todos faziam um pouco de tudo e sentiam que parte da fábrica era também sua. Os proprietários eram os netos do fundador, um senhor muito rico dono de metade da aldeia, cuja fábrica era a menina dos seus olhos e os netos conservavam a mesma paixão pela mesma. Recentemente a capital tinha sido tomada pela febre das conservas e assim o negócio florescia, apesar das conservas importadas serem uma forte concorrência, parecia que a moda era precisamente consumir produto nacional. "Aquela gente da cidade teve alguma iluminação divina, é de aproveitar agora porque se são de modas também se devem fartar de latas muito em breve" disse o patrão mais novo um desses dias antes de contratar mais dez pessoas para ajudar nas encomendas que haviam triplicado. Alba vestiu-se e apressou-se para apanhar peixe de qualidade fresco no mercado.

Quando desceu as escadas da casa, a vizinha do rés-do-chão veio à porta chamando-a. Alba entrou. A senhora era viúva recente e recentemente uma pessoa por consequência totalmente diferente. Vivia agora a sorrir, pintara as unhas de vermelho e cozinhava compotas e biscoitos para a rua inteira. O marido já muito doente atazanava-lhe o juízo e era conhecida antes pelo seu mau feitio. Só muito agora Alba fizera amizade com a senhora, eram duas boas vizinhas. A senhora tinha feito um bolo de aniversário e depois de a convidar para mais tarde subir e soprar as velas com os seus amigos Alba voltou a subir as escadas para guardar o bolo e voltou a sair.

Na porta do mercado já se juntara um aglomerado de figuras habituais. O louco da terra, o rapaz afiador de facas, a cigana que lê a sina, a senhora dos bordados e estava também o senhor dos peões de madeira rodeado de miúdos que experimentavam proezas com habilidade. Ao lado do mercado a tasca já estava barulhenta e da porta vários homens bebiam e comentavam as novidades do dia.  Quando Alba tentou entrar foi abordada pelo louco "mas que menina mais doce, que vem hoje feirar? um rapazinho para o jantar?", ela riu-se e tentando contornar a conversa é apanhada pela cigana "uma moedinha pela sina, vamos menina, o futuro está na linha". Alba achou engraçada a cigana e deu-lhe a moeda e a mão. A cigana observou as linhas e a sua expressão mudou. Ficou séria e olhou para Alba dizendo gaguejando "33..este é o momento...33...tudo dependerá de si...33..." e afastou-se repetindo a frase como se estivesse hipnotizada. "A feira dos horrores" pensou Alba sem dar grande importância à cigana apesar de lhe ter ficado a pulga atrás da orelha no pormenor do número, "como saberia a cigana do meu aniversário?"
Na zona do peixe os pregões faziam eco pelas paredes do mercado. "Venha menina, este é fresquinho. Não encontra melhor qualidade". O peixe que a senhora tinha na mão tinha o comprimento aproximadamente da cintura de Alba e a boca aberta. Alba pediu para que a senhora o pesasse. "3 Kg e 300". Sairia um jantar caro mas gostava de mimar os seus rapazes como costumava dizer. A senhora embrulhou o peixe contente e ela seguiu para a zona das frutas e dos legumes. Passou por uma banca onde uma rapariga mais jovem embalava o bebé ao colo. Achou por bem comprar ali. O bebé tinha as maçãs do rosto vermelhas, como se fossem elas maçãs bebés muito redondinhas e reluzentes. Dormia tão serenamente com toda aquela confusão de fundo que Alba não resistiu em comentar "Parece um anjinho". A rapariga olhou para ele com um ar cansado e retorquiu "Parece parece, de noite não dá descanso a ninguém e depois de dia é isto, raio do bicho parece atravessado, só gosta de dormir na confusão". A expressão da rapariga surpreendeu-a mas não comentou mais sobre o assunto. Escolheu as maçãs para a tarte e tomate para colocar no forno com o peixe. Tudo tinha um ar de frescura e vitalidade nestas bancas. Perguntou quanto devia e obteve de resposta "3 euros e 30". 
Perto da saída Alba apanhou ainda um ramo de Alecrim na senhora dos cheiros. Uma senhora velhinha que enrolava os raminhos com laços coloridos como se fossem cabelos de bonecas. Na alcofa colocou tudo bem arrumado e seguiu. Queria ir tomar outro café na praça. Hoje era o seu dia e ainda faltavam muitas horas para o jantar apesar de gostar de preparar tudo com preceito e antecedência. Não tinha ainda planeado o restante dia e o café dar-lhe-ia ideias com certeza. Só teria companhia ao fim do dia, os manos trabalhavam na oficina de automóveis. 

Dentro do café o cenário era idêntico, gente e confusão. Alba pediu um café cheio e um "bom bocado". Na esplanada junto à praça sentou-se e retirou da alcofa o livro. Tinha tempo, podia aproveitar para ler, tinha a sombra de uma figueira mesmo por cima da sua mesa e ali tudo estava mais calmo porque quem passava ia de caminho para o trabalho ou afazeres de terceira idade. Havia tão poucas crianças na aldeia. Para além do bebé que vira no mercado tinha conhecimento de outros dois nascimentos. Este ano. "A taxa de natalidade é uma desgraça e eu, não contribuo para ela tão cedo". Estava nestes pensamentos tentando concentra-se no livro e no bolo quando alguém se sentou na sua mesa. Era o Zé. O filho do dono do café. Tinha mais ou menos a sua idade e para além de ajudar o pai de vez em quando, passava o dia na esplanada atrás de raparigas. Chamavam-lhe o "Zé sempre em pé" e de cada vez que Alba o via ria-se por dentro desta alcunha, tinha muita fama mas com certeza muito pouco proveito. As raparigas da aldeia tinham muito cuidado com a sua reputação, uma vez mal faladas dificilmente arranjavam casamento. Por este motivo fugiam dele a sete pés. Alba não se importava com mexericos porque também não tinha grande intenção de casório. Ele sentou-se ao lado dela e perguntou "Que estás a ler? Hoje não devias estar a trabalhar?", "Faço anos" afirmou Alba. Ele levantou-se e foi lá dentro. Quando voltou trazia um papo-seco com uma vela. "Para que nunca te falte o pão. Sopra." O Zé tinha destes pormenores. A sua família tinha a muito custo mantido o café da praça, era o café central e passava de geração em geração como tantos outros negócios por aqui. Apesar de galinha e convencido, ele tinha uns rasgos de vez em quando de inspiração. 
Alba achou a ideia deliciosa e soprou a vela agradecendo o gesto. Ele voltou à conversa "A minha mãe sempre que faço anos à meia noite traz-me o pão e a vela, desde miúdo, gosto da ideia, o pão por estes lados sempre teve uma importância muito grande". Alba pensou na sua mãe. Esta era uma ideia que encaixaria nas de sua mãe. "Não conhecia a tradição mas adoro tradições". Ele continuou "Não tens cara de tradicional, mas percebo que gostes destas ideias, quando arranjas marido? Eu estou solteiro e sou muito bom rapaz" riu-se com gozo chegando a perna dele à dela. Alba afastou-se um pouco sem querer ser indelicada "lá estás tu, estavas a ir bem Zezinho". Esperava que o diminutivo o colocasse no lugar dele mas não teve assim tanto impacto. Ele continuou "andas sempre com aqueles três, a malta comenta, devias ter cuidado com a tua reputação, és tão bonita". Alba enfiou a cabeça no livro tentando terminar a conversa "nada disso me importa, não tens o que fazer? o teu pai parece atrapalhado lá dentro". O rapaz levantou-se e despedindo-se "tem um bom dia minha princesa esquisita". E seguiu lá para dentro. Alba sentiu-se aliviada, era querido às vezes mas a maior parte, inconveniente e demasiado insistente. 
Estava novamente entretida com o livro e tentando decidir o resto do seu dia. Na aldeia muito pouco havia para fazer para além de estar no café, ir junto ao rio ou ir ao cabeleireiro. A ideia de mimar-se agradava-lhe. "E porque não? Podia cortar o meu cabelo, mudar qualquer coisa!". Ela tinha um longo cabelo louro que lhe dava abaixo da cintura. Fazia anos que não o cortava e usava sempre o mesmo penteado, uma trança apanhada no topo da cabeça. A ideia de cortar estremecera-lhe as entranhas. No entanto, ter alguém a cuidar de si, a dar-lhe alguma atenção feminina agradava-lhe. Sentia falta de companhia de raparigas mas nunca conseguiu amigar nenhuma por aqui. Eram todas demasiado preocupadas com as aparências, não se sabiam divertir e viviam para coisas que a Alba não interessavam nada. O cabeleireiro era uma delas, mas hoje, como estava disposta a fazer algo de diferente, iria lá. 

Terminou o bolo e o café, arrumou o livro e seguiu pela rua procurando o cabeleireiro. Era o único que havia e estava preparada para os olhares e comentários de sussurro sobre a sua pessoa. "Não importa, hoje é o meu dia". Mal entrou um silêncio esquisito se instalou. A patroa olhou para a empregada que estava a pentear uma senhora e fez-lhe sinal. A rapariga deixou a senhora e dirigiu-se a Alba "Bom dia, é para cortar?" Alba hesitou. "Não, é apenas para lavar e pentear, hoje faço anos" e sorriu timidamente. A outra respondeu "Está bem, aguarde um pouco ali naquela cadeira que eu já vou ter consigo". A patroa que estava a limar as suas unhas disse "Deixa rapariga, eu trato da senhora". 
Agarrando na trança de Alba para a desfazer falou "Não costumo vê-la por aqui mas fez muito bem, nós merecemos um mimo especial não é verdade?". As palavras da patroa soaram bem aos ouvidos de Alba e sentou-se mais descontraída "sim, há muito tempo que não venho arranjar o cabelo mas hoje apeteceu-me". Não sabia bem o que dizer mas tinha a certeza que a cabeleireira tinha todo o tipo de assuntos debaixo da língua, não fosse essa a actividade secundária principal de um cabeleireiro. E a patroa lá continuou massajando agora o cabelo com shampoo, "está bem assim a temperatura da água? tem um cabelo lindo, não costumo ver cabelos tão longos e tão bem tratados, mas de vez em quando devia cortar-lhe as pontas, faz-lhe bem para fortificar". Alba sentiu como se um dedo mais afiado lhe fosse espetado no crânio, "pois acredito mas, não consigo, tenho-o assim há anos e dizem sempre que é só um bocadinho e depois é um pedação, sinto-me despida sem ele assim". 
A patroa decidiu então mudar de assunto, falando ao ouvido de Alba mais baixo "a senhora gosta de coisas diferentes?". Ela espantou-se com a questão e virou a cabeça olhando a outra de frente "como assim? o que quer dizer com isso?" sentiu as mãos da patroa passarem pelos seus ombros massajando e voltou a encostar-se aguardando curiosa. "Todas as sextas feiras à noite eu faço umas reuniões secretas em minha casa. Ninguém sabe de nada disto e eu estou a convida-la nem sei bem porquê, talvez sinta que é diferente e que pode vir a gostar de estar connosco. Somos só mulheres, de várias idades. O que fazemos lá, fica lá". Alba começou a sentir-se esquisita, como se estivesse a ser abusada no colo de um tio perverso, as mãos da patroa já iam no pescoço e no rosto, não estava habituada ao toque. "Mas que tipo de coisas?", a outra continuou, "O meu nome é Lucinda, lá acontecem todo o tipo de coisas que consiga imaginar, a ideia é partilharmos coisas que em casa ou com os outros não temos à vontade, já aconteceu de tudo...mas só estando um serão para ver, vá à experiência, sem compromisso, se não gostar não precisa de voltar". 
Ficou curiosa. A patroa chamou a rapariga que já terminara a outra senhora e deixou-a continuar piscando o olho a Alba. Entregou-lhe um cartão seu dizendo ao ouvido "sexta-feira". Depois foi lá para dentro. Olhou para o cartão, tinha o nome de Lucinda, o seu contacto e a morada..."porta 33, este número parece estar a perseguir-me". 
Ficou tão pensativa no assunto que ao novo penteado mal dedicou atenção, por isso a rapariga divagou como lhe apeteceu no cabelo de Alba e quando terminou e lhe passou o espelho redondo à volta da cabeça para que opinasse, assustou-se. Parecia outra pessoa. A rapariga tinha feito do seu cabelo canudos e apanhado como se fossem duas rosas, uma de cada lado, estava artístico, como se fosse para um casamento. Riu-se de si mesma mas agradeceu à rapariga o trabalho que dedicara. Tinha o cabelo solto e não estava habituada mas hoje era dia de festa. 

Era hora do almoço e achou que seria bom ir para casa para temperar o peixe e começar a tarte. Deixaria tudo pronto, bastaria depois ir ao forno e isso dava-lhe liberdade para receber os seus amigos. Enquanto cozinhava abriu uma garrafa de vinho verde e petiscou uns pedaços de queijo e pão. Sentia-se feliz. Colocou um vinil no gira-discos, a música que a sua mãe mais gostava, mornas,  fora uma grande apreciadora de música do mundo e Alba tinha herdado a sua colecção de discos. Discos e livros, foi tudo o que a mãe deixou. Isso e algumas jóias de família. Tinha-as guardado num cofre no quarto e interrompeu a culinária para ir ao quarto busca-las. Sentou-se na mesa da sala a observa-las na mão. Como eram bonitas. Algumas gargantilhas, brincos e pulseiras. Escolheu uma delas e colocou-a no pulso. "Hoje irei usa-la mãe, espero que não te importes". Foi até ao espelho e levantou o braço passando a mão pelo cabelo para que pudesse ver a pulseira. Foi quando de mais perto percebeu qualquer coisa inscrita no fecho. Foi buscar a lupa que era de um dos manos que tinha uma adoração por selos e que por lá por casa ficara como tantos outros objectos deles. Olhando através da lente..."não é possível! Outra vez este maldito número...33...mas porque haveria a minha mãe de ter uma pulseira com este número?"
Era um mistério que a própria já não podia responder, talvez fosse apenas uma coincidência que nem a mãe tivesse dado alguma vez conta, era de facto uma inscrição muito pequena. Alba deixou ficar a pulseira no pulso. 



III


13 de Junho, 2014
Alba acordou, levantou-se e fez café tal como mais uma manhã da sua vida. Todas as manhãs eram manhãs de vitória porque havia conseguido levantar-se e dar seguimento à sua vida, a uma vida qualquer, o importante era seguir em frente. Hoje terminaria o seu 33º aniversário e faria hoje um ano que aquela fatídica noite acontecera.
Alba olhava para o café no interior da chávena. A espuma amarelada desenhava formas indefinidas. Ás vezes era possível ver coisas. Sentia alívio dentro de si, tinha esperança de se ver livre daquele número no dia de hoje. Não mais o encontraria em todo o lado, não mais buscaria significados paranormais, religiosos ou relacionais nele. Passaria a ser um número qualquer, apenas mais um. Olhou pela janela e lá estava o vizinho a passear o cão. Sempre à mesma hora. Todos os dias sem excepção numa mecanização que apenas um reformado solitário seria capaz de cumprir. No prédio ouviam-se já as canalizações e vozes entre paredes de mais um início de dia. Alba não conhecia para além de reconhecer fisicamente, nenhum dos vizinhos. Aqui a impessoalidade permitia-lhe o espaço necessário para ser ninguém. Dez andares, a altura perfeita para uma Torre de Babel.

Durante 365 dias perguntara a si mesma se seria o último dia, todos os dias. Perguntava a Deus todos os dias pela razão da sua insistência em vida. Porque fora a única a sobreviver, porque tinham de morrer os três naquela noite? Porquê na noite do seu aniversário? Porquê daquela forma? Mas todos os dias Deus dava-lhe o silêncio e o castigo de continuar a viver sem respostas e pior, com um sentimento de culpa, sem na verdade a ter, por estar viva. Por sentir que não merecia, não mais que eles. Estas conversas com Ele revelavam-se absolutamente inúteis e em momentos de revolta, porque ainda a sentia a par com uma dor imensa, negava-o com todas as suas forças por ter permitido essa tragédia em seu redor. A negação trazia-lhe ainda mais solidão e um desamparo que a deixava dias de cama, olhando para o tecto, faltando ao trabalho, sendo despedida várias vezes ao longo desse ano. E a cada novo trabalho tudo recomeçava. Aquela angústia de estranheza, de ser necessário um esforço imenso de si para se integrar e de uma forma disfarçada mostrar estar apta para continuar e entusiasmada com as tarefas.
Alba não permitira amizade com mais ninguém desde aí. Como se estivesse dotada de uma maldição que só podia trazer destruição em seu redor. Já a morte da mãe acontecera em circunstâncias que podiam tê-la envolvido, foi por teimosia sua que não acompanhara a mãe naquela viagem. Na sua última viagem. Também lá, nesse acontecimento, Alba tinha sido poupada e a culpa juntava-se agora à recente, impulsionando dentro de si um abismo de completa aversão à vida. Se Deus a tinha poupado por alguma razão fora, tinha nas suas mãos o dever de dar um rumo ainda mais valorizado ao seu dia-a-dia, mas as coisas na prática são exactamente o oposto. E por não conseguir que a sua vida fosse especial, a gratidão não era a retribuição. Antes um vazio e um corpo em automatismo, que fazia um esforço tremendo para se levantar e realizar o básico, nada mais que o básico e já o básico era demasiado. "Não sou digna porque sou fraca, não consigo porque estou presa na culpa que não me deixa existir na graça de estar viva". Alba sabia-o bem, mas não conseguia libertar-se deste peso.Tinha esperança de que o tempo fosse uma ajuda amenizadora. Esperança, a única e talvez a causa de ainda estar viva. O suicídio passara-lhe várias vezes pela cabeça. Chegou a detalhar como, quando e onde. Mas não era capaz, acusava em si a cobardia de um fraco. Era assim que via a sua incapacidade de cometer esse acto.

Passados três meses mudou para a grande cidade. Mudou de penteado, mudou até de nome passando a usar apenas o apelido da mãe. Mudou tudo o que estava ao seu alcance com o íntimo desejo que as circunstâncias do passado se alterassem. Mas o passado já lá ia e dentro de si a verdadeira mudança ocorrera para pior, um buraco de tristeza e desgosto. A cidade era feia, barulhenta e hiper populacionada. O lugar ideal para não se encontrar com a beleza e o deslumbre da vida. Não se achava digna de absorver a beleza, de sorrir, de fazer-se feliz, de encontrar felicidade. Bebia demasiado e fumava cigarros contínuamente. Não procurara ajuda médica, sabia que seria medicada e não queria ficar dependente de narcóticos. Mas reconhecia que tinha momentos de desespero em que dava conta de não ser capaz de reagir sozinha. Mas a inactividade era de tal ordem que nem para se levantar e ir a uma consulta era capaz, ficava no escuro, no silêncio e quando conseguia melhorar, como o tinha feito sozinha, abandonava a necessidade de ajuda exterior.
À noite saía, sozinha, deambulava pelos bares das ruas apinhadas de gente, bebendo até atingir o estado de anestesia. Acordava sempre na sua cama sem saber bem como. Ás vezes brincava com a morte, colocava-se em situações que podiam tornar-se arriscadas mas sempre no momento antes da sua concretização, como se de um instinto de sobrevivência se tratasse, instinto que até esse repudiava, libertava-se e seguia a linha da vida. Sempre no último momento. A tal cobardia que via em si. Esse outro ser doente que lhe falava ao ouvido, criticando, amaldiçoando, corroendo a vida. 

Não tinha planos para hoje, não tinha intenção de comemorar o seu aniversário, apenas o desejo de que o dia se encerrasse e com ele a maldição do número. O número podia desaparecer, tudo o resto, não. Decidiu ir trabalhar para que as horas passassem mais depressa. Estava num escritório de consultoria, servia cafés, atendia telefones e tirava fotocópias. Pouco mais que isso. O escritório tinha gente suficiente para que passasse como anónima no seu dia-a-dia. Cumpria as suas tarefas sem aprumo a mais ou a menos. Manter-se numa linha contínua de mesmidade era o seu objectivo, uma linha que lhe desse alguma estabilidade, sem alterações ou mudanças que implicassem esforço de nova adaptação.

À hora do almoço, estava na copa a tentar engolir uma salada, quando foi chamada. Era o telefone para si. "Pai? Como sabias deste número? Ah, não me recordava de te ter dado...hoje? Jantar? Não leves a mal mas não tenho vontade nenhuma..sim eu sei são só duas horas de comboio até aí...mas pai...não me sinto assim tão bem para comemorar...tu sabes...pronto está bem...não insistas mais...irei". O pai ficara a saber da situação porque era o seu familiar mais próximo vivo e foi ele que foi chamado na noite do acidente. Depois disso, tinha tentado estar mais próximo mas Alba pusera sempre limites nessa aproximação. Se não esteve presente durante tantos anos para nada, porque haveria de lhe dar esse gosto agora?
Ás cinco da tarde saiu e foi para a estação de comboios. O próximo era às 18.30. Não havia alternativa. Iria esperar. Para que a espera não fosse tão penosa, isto num dia em que aguardava que as horas o anulassem e a todo o segundo olhava para o relógio com esperança de passar mais depressa, foi até à banca de revistas. Passou os olhos pelas capas. Nada lhe interessava. Perguntou então à senhora que a olhava apática detrás do balcão se havia livros, às vezes alguns jornais têm colecções. Antigamente Alba lia muito. No último ano não abrira um único livro. Culpava também os livros de uma certa despreparação que via em si para a vida. Lera demais e a vida longe de ser uma aventura ou um conto de fadas, revelara-se um pesadelo. Nos livros havia uma segurança, uma rede de trapézio que a vida não tinha. Eram tão falsos como tectos de pladur carunchosos retocados apenas do lado de fora para que parecessem estáveis. Acreditava que as pessoas que liam muito nunca encontrariam a felicidade. Porque a felicidade não é um capítulo final que se encerra com um "feliz para sempre". Mas duas horas de viagem seria a desculpa perfeita para regressar à leitura. Talvez não fosse má ideia. O vazio que acompanhava o momento podia ser preenchido por outras vidas, lugares e acontecimentos de personagens que viviam, ao contrário de si. 
A senhora apontou-lhe para uma prateleira que tinha alguns livros. A maior parte lixo gramatical. "Como ser feliz", "As aventuras eróticas de uma mulher solitária", "História de Portugal em BD"...e foi quando viu um que lhe chamou a atenção. Tinha capa de tecido azul escuro e uma faixa onde se lia "Autores Prémio Nobel". E o título era nem mais: "33". Alba comprou o livro, seria o seu último contacto com o número, assim o esperava. Uma certa saudável curiosidade tomou conta de si. Há muito tempo que não se sentia curiosa com nada. Há muito tempo que não sentia nada em si de ascendente.
Procurou um banco mais sossegado, longe dos viajantes que se atropelavam pela estação de malas e mochilas às costas. Quando se preparava para o abrir uma voz fez levantar a sua cabeça e ao seu olhar apareceu um rosto familiar mas remoto. "Como se chamava ela" pensou para si mesma, "Ah, Lucinda." A patroa do cabeleireiro da aldeia. "Ah quanto tempo? Desculpe incomodá-la, queria apenas dizer-lhe olá, depois de toda aquela tragédia...não tive nunca oportunidade de a conhecer melhor. Queria apenas dizer-lhe olá. Vim à cidade tratar de assuntos". Alba olhou para ela com uma sensação de náusea. A mulher nunca lhe fizera mal nenhum mas representava um lugar que desejava nunca ter conhecido e onde não queria nunca mais voltar tal viva estava lá a sua dor. Não sabia o que dizer por isso sorriu apenas. "Bem deixo-a com o seu livro, prazer em vê-la, desejo-lhe felicidades" e seguiu pela estação com um ar afoito e modos tão extravagantes como os que antes lhe conhecera. Se tudo tivesse sido diferente provavelmente teriam sido amigas, aquelas reuniões de que lhe falou teriam sido épicas mas tudo foi como foi, um rasgão violento que lhe impeliu à separação entre vida e morte e, Alba, ficara do lado da morte. E não é assim a vida? Uma corda onde permanentemente saltamos escolhendo ora para cima ora para baixo, ora para os lados até ao dia em que damos um salto final que nos coloca fora do jogo. Mas a corda permanece lá em movimento, nós é que não saltamos mais.
Alba não estava morta, só não tinha vontade de jogar. Via-se no recreio, olhando os outros saltarem à corda, querendo apenas estar olhando. Por não se sentir digna de jogar ou achar não saber saltar. Como se nunca tivesse sido ensinada a saltar e de todas as vezes que tentara, tropeçara na própria corda. "Jogo mais estúpido, pensou, que monotonia de canseira". E afastou o pensamento da corda abrindo então o livro.



IV

Os actos heróicos são ascendências do ser humano, que depois de abandonar a preocupação primeira de si mesmo, transcende à intenção de salvar um segundo. O herói não é senão um super homem, próximo de um Deus, cujo altruísmo provém da libertação do seu egoísmo e cuja acção é dotada de uma coragem absoluta, donde a sua vida é uma formiga e a vida do outro, um gigante indefeso, que aguarda por auxílio. Nesta inversão e da completa desconexão do antes fora, nasce enfim, o potencial, nunca antes pensado, do virei a ser muito mais que eu mesmo. Todos nós podemos ser heróis em vez de sermos cobardes. E muitos de nós precisam em primeira instância de uma salvação da própria vida. Ser herói da própria vida. Ser um super homem de coragem e mão erguida. A luta pela felicidade e o abandono do egoísmo da estagnação e do conformismo. Auto comiseração é o primeiro inimigo do heroísmo. O realismo precisa de pés assentes na terra e vontade voltada ao sonho. De ser mais e melhor. De se superar a si mesmo. De vencer a dor. De escolher o caminho da vida. 

Este epílogo, que vos deixo já de início, é na verdade uma advertência. Quem não está disposto a seguir este caminho não é digno das minhas palavras e nesse sentido será melhor encerrar desde já a sua leitura.

              J.S.

Começava assim. 
Alba parou a leitura por momentos. Pensou "empertigada esta escritora". Olhou para o relógio. Não tinha ainda passado nem meia hora. Por esta hora as pessoas apanhavam os comboios de regresso a casa depois de um dia de trabalho. Não carregavam malas e sim pastas e lancheiras. Tinham na sua maioria um ar cansado e um desalento que lhes embrulhava a expressão fechando-a como carapaça autista num automatismo triste. Respirou fundo olhando para a capa do livro. "Não serei digna dele, mas talvez seja uma provocação da autora, uma espécie de advertência daquelas que as mães fazem sabendo que se a criança não cumprir estará a fazer o correcto, e as crianças gostam de não cumprir, de desafiar as leis". Deu por isso a recordar-se da sua infância. Há quanto tempo não se sentia criança? Procurou na memória o momento em que se quebrou o encanto, o momento em que o dedo picou a roca e caiu num entorpecimento muito longe de se poder chamar de vida, não conseguia defini-lo ao certo. Talvez desde sempre, talvez nunca tivesse tido espaço para ser verdadeiramente criança. Talvez...desde que aprendera a ler e começou a escolher ficar sozinha em vez de brincar com os outros.
"Quando estava com eles, sentia-me criança...não havia leis que nos limitassem o comportamento, quando estavamos juntos não havia toque de censura numa pele que era conjunta. Eramos felizes à nossa maneira". Pensava nos manos e na saudade que sentia, não podia mais voltar a vê-los. Não podiam mais rir juntos. A morte era eterna e decidida, não havia como desfazer esse feitiço de distância que não pedira. Não houvera acto de heroísmo que os salvara, não havia sequer uma palavra que justificasse ou acalorasse essa dor. Apenas a solidão e o peso de estar viva. Não queria que a vissem a chorar e engoliu lágrima a lágrima, voltando a abrir o livro.

Capítulo I
Das vidraças da janela escorriam linhas de água aglomeradas durante a noite pelo calor que os corpos produziam no quarto. Ainda dormindo profundamente, o rosto coberto pelos seus longos cabelos encaracolados, escutava-se a sua respiração coronária e jovem. De pé, apertando o roupão ao peito, ele olhava-a com uma paixão inquieta. Todas as manhãs eram momentos de queda. De não saber em que estado ela acordaria. Se viria doce aos seus braços, se amarga aos pedaços. 

Alba levantou a cabeça do livro. "Então mas isto afinal é uma história de amor e drama? Que desilusão!" Esperava tudo menos isso. Não tinha cabeça nenhuma para romances neste momento, muito menos angustiantes. Arrependida de ter comprado o livro, colocou-o de parte dentro da mala e procurou por um café para comprar algo, tinha uma certa fome, desde a salada do almoço que não tocara em alimento algum. Apetite era coisa de que não padecia desde que acontecera tudo. Sentou-se numa mesa junto à janela do café que dava para a zona central da estação. Pediu um galão e um pão com queijo. Enquanto aguardava que a rapariga trouxesse o seu pedido olhou desinteressada lá para fora. Mais gente que passava, gente previsível, gente aborrecida com vidas aborrecidas e no entanto, provavelmente, feliz. Diante desta pasmaceira repensou o interesse pelo livro. A rapariga regressava, o galão estava demasiado quente "nunca escutam os clientes" e como uma vez mais tinha de esperar, voltou ao livro. Mas por rebeldia à autora, passou várias páginas à frente no sentido de perceber se afinal havia algo, queria saber do número e sobre isso a autora ainda nada tinha dito. Ao folhear bateu com os olhos no dito.

Hoje ela faria 33 anos. Antes que acordasse ele levantou-se em pés de lã para que nenhum barulho o denunciasse. Foi até à cozinha e preparou-lhe com requinte um pequeno-almoço digno de princesa. Tinha comprado o seu bolo preferido, Bom Bocado, e escondido no creme havia deixado um anel. Tinha esperança que a ideia de casamento a entusiasmasse. Nos últimos tempos parecia que nos seus olhos grandes e redondos morrera algo, não tinham mais o brilho da vida. Ele sabia que ela ainda o amava mas não tinha a certeza de que ela amasse ainda viver. Havia momentos em que sim, que ela sorria e o encantava com pensamentos alados, como antes fora, mas outros, que caída, murmurava menos que palavras durante um dia inteiro. Sentia-se muitas vezes impotente. Que o seu amor não tinha força para puxa-la à superfície. Escolhera-a a ela e por isso era seu fardo, ama-la, e agora mais do que nunca, proferir a frase "na saúde e na doença". Queria que ela o soubesse e o anel seria o presente perfeito. Queria vê-la vestida de branco tal um anjo que na terra não encontra mais descanso. Queria tê-la em seus braços hoje mais do que nunca e carrega-la para os jardins da paz eterna. A sua menina, queria mais do que tudo, cura-la com amor. 

Alba perdeu-se nos seus próprios pensamentos. "Como seria bom ter alguém assim, que cuidasse de mim, com um amor incondicional" mas depressa a censura do outro lado lhe tomou as ideias, "Disparates, essas coisas só existem nos livros ou nos filmes, lá estás tu...a vida não é senão a morte em permanente prenúncio". O desalento. Esta ideia romântica de encontrar um par, um amor de Pedro e Inês nunca lhe tocara, tanto que o seu único e grande amor até aos dias de hoje tinha sido "os manos". Amara-os sim, de uma forma terna, quente e doce. Aos três, ao mesmo tempo, como se partes de um todo indissociável fossem. Porque se completavam e definiam, juntos, a perfeição. Não conhecera até hoje outro amor. E tristemente sentenciava-se: não voltaria a conhecer.
O galão já estava morno, podia toma-lo. Deu uma trinca no pão e percebeu que o queijo estava duro. "Estes cafés de estação são uma miséria, caros e maus". Olhou novamente para o relógio, comprometera-se a ir e não queria perder o comboio. 17 e 33. Lá estava o maldito número. Ao morder novamente o pão, mordeu a própria língua tingindo de vermelho o miolo. "Está certo, queres que repense a minha relação com este número meu Deus, mas explica-me então Tu, por palavras honestas e concretas o que me queres dizer com o 33, explica-me por favor, que sou muito cega para o ver e até agora não tenho visto senão o número e nada mais que desgraças à volta dele, explica-me se não é a morte que queres que veja? Explica!" e a última palavra saiu de si como um grito de desespero que até a si espantou. Como se não tivesse sido a sua voz a grita-lo. Um silêncio embaraçoso virou-se para si, todos olharam com expressões de "deve ser maluquinha coitada". Alba queria um buraco para se esconder, tudo o que queria era passar despercebida e o grito denunciara o seu pensamento. Foi então que um rapaz se aproximou.

De cabelos negros, nariz fino, rosto magro escondido por uma barba desalinhada. Sorriu para Alba e entre uma trinca no bolo que tinha na mão disse com um ar descontraído "Eu às vezes também não percebo o que Ele quer de mim". Alba corou. E na sua boca o resto do pão estava às voltas sem o conseguir engolir, bem como as palavras que não saíam nem entravam. O rapaz não esperou por palavras suas. Continuou olhando para o livro de Alba "33, foi a idade de Cristo, vais apanhar o comboio das 18,30? Eu também. Podemos ir juntos". Estas palavras soaram como intrusivas a Alba, não conhecia o rapaz de lado nenhum e estava próxima de o considerar petulante quando ele o confirmou sentando-se na sua mesa, "Tens familiares lá? É uma grande terra, não se faz grande coisa por lá mas fui lá criado e gosto do descanso...a cidade é um inferno não é? O gato comeu-te a língua? A tua voz até é bem forte" e deu uma gargalhada de gozo. Alba não gostou nada da atitude, "mas quem é que ele pensa que é? Não lhe mostrei já que não estou interessada em conhece-lo? Que insistência". E resolveu ver-se livre do rapaz "Escuta, não quero ser indelicada mas prefiro estar sozinha".
O rapaz ficou sério mas depressa voltou a sorrir. "Eu já percebi que estás agoniada com alguma coisa, eu também estou, vou ao funeral do meu pai" e o seu sorriso desfez-se num olhar triste que pousou no tampo da mesa. Alba sentiu um aperto no coração. Sentiu-se mal por ter sido indelicada, afinal o rapaz estava a sofrer, provavelmente até mais do que ela. Era uma morte muito recente e de um familiar demasiado próximo. Gaguejando de vergonha disse "lamento muito em saber". O rapaz voltou o olhar para os olhos dela e calmamente disse "33, eu já li esse livro, é lindo, acho que todos devíamos lê-lo, é uma história de coragem e vida". "Sim? Até agora não estava a acha-lo muito cativante, parece-me um romance barato", Alba procurou estender um pouco mais o seu discurso tentado aliviar a situação.
"Lê e depois falamos sobre isso". Esta frase transmitiu-lhe uma sensação agradável. Como se ao seu pescoço tivessem vindo borboletas bailar mimos de paz. Havia um sentido de continuidade nas suas palavras que lhe agradaram, não sabia bem porquê. "Eu chamo-me António, tratam-me por Tino, não me perguntes porquê e tu?", "Alba", "Que nome bonito, é como tu, alva". Ela voltou a corar. Seria o rapaz um lobo em pele de cordeiro? Um D. Juan de falas verborreicas? "Obrigado", disse Alba não o olhando nos olhos para não piorar o seu embaraço. Não estava habituada a este tipo de contacto tão directo.
"Ainda falta tempo para o nosso comboio, o que me dizes de irmos até ao rio para fumar um cigarro?", "Eu não fumo...", "Lá estás tu, és torcida não és rapariga? Gosto disso, não fumas mas fumo eu por ti e por mim...vamos?" E estendeu-lhe a mão. Alba não sabe porquê mas confiou, podia ser um louco que a ia assaltar, mas aquele colocar-se em risco vindo de um profundo desprezo pela sua própria vida estava aqui do lado do rapaz. Deu-lhe a mão e saíram os dois da estação.




V



Junto ao rio, sentados no cais ao longe a outra margem caía agora com o por do sol. Foi então, depois de um momento de silêncio, enquanto ele fumava que lhe disse a ela "Abre o livro na última página e lê o último parágrafo". Alba meio dispersa na paisagem, tirou o livro da mala e leu.

Que um número é apenas um número, pelo homem criado para matematicamente compreender o mundo das coisas. No mundo de Deus as palavras têm muitos significados, mas os números permanecem, números. A angústia de morte que ele sentia e que associava ao número, era não mais nem menos que medo de a perder. Talvez porque Cristo tenha partido do mundo material com 33 anos e da sua partida ficara uma terrível angústia de morte, de nos (nós todos) perdermos da sua alma, um medo medonho de que não encontrasse de volta o caminho dos homens e que estes ficassem abandonados numa fé sem profeta. Terá sido assim na realidade? Para ele, o medo quebrou-se no dia em que ela escolhera o caminho da vida, o caminho da paz de espírito. Juntos, no cais olhando o rio que serenamente se despedia do dia, olharam o futuro. Tinha o rosto de uma gaivota que trapalhadamente tentava voar, em círculos, no limbo da água prateada. Ora rasante, ora tocante no céu. Sem nunca desistir de voar mais alto. 









terça-feira, 12 de agosto de 2014

Rostos de uma Revolução, Parte III

III


Quando sentiu nos pés terreno estava finalmente a chegar à outra margem, Lisboa. Lisa abandonou o barco e procurou à sua volta por algo que a pudesse cobrir. Tinha frio, muito tempo dentro de água deixara-lhe a pele encarquilhada e apesar de se sentir quente do esforço do movimento precisava agora de roupa para se deslocar.
Chegar à baixa do cais era relativamente perto, mas chegar sem ser vista não seria tão fácil. Cautelosa avançou pela rua que subia, o cenário era caótico. Carros abandonados, alguns escancarados dando a ideia de terem sido largados no meio do transito num momento de pânico, lojas com vidros partidos e tudo vandalizado. Lisa viu um armazém de roupa e entrou. Procurou roupa escura parecida com o uniforme dos revolucionários para que passasse como um deles, uma vez mais. Calçada e vestida sentia-se mais confortável. Estava esfomeada e procurou algum café ou mercearia nas mesmas condições. E um pouco mais à frente, lá estava o seu café favorito da baixa. Não avistando também aqui ninguém entrou.
Tantas foram as vezes que estivera sentada nesta mesma mesa donde observava quem passava lá fora. Tantos livros e cafés cheios passaram por esta mesa. Tantos encontros e agora…tudo desencontrado do seu lugar habitual. Era como se estivesse a olhar para a sua própria vida do lado de fora. Este café era também ela. Desalinhado, arrombado, partido. Assim via o seu passado, antes de conhecer João. Mas agora também isso era incerto.

Na cozinha havia pão e queijo, fez uma sandes e procurou por café. A máquina estava inutilizável mas encontrou saquetas de café solúvel. Havia ainda chocolates, que guardou no bolso para mais tarde.  Comeu e sossegou o espírito. Pensava agora num novo plano. Sabia que descendo até ao terreiro do passo iria encontrar militares. Não tinha arma consigo mas tinha um gorro. João estaria lá ainda? Talvez o melhor plano fosse não ter plano, iria directamente procura-lo.

Quando se aproximou do terreiro começou a ouvir tiros. Mais depressa correu para chegar às arcadas. Numa delas uma grande porta do edifício estava aberta e não havia guarda. Ao subir a escadaria de pedra encontrou uma mochila perdida. Lá dentro havia metralhadoras e granadas. Lisa acautelando-se levou às costas uma das armas. No topo das escadas havia um corredor que dava para várias salas. Lisa escutou vozes do fundo e aproximou-se.

Atrás da porta escutou a conversa. Dizia um para o outro:
-Andorinha, eles avançam pela ponte do sul. Temos algumas horas apenas. É preciso estratégia, lá em baixo os homens estão a morrer. Eles têm gente mais preparada.
-Meu primeiro chefe, estamos perdidos. Não sei quem os lidera. Não recebemos qualquer comunicado deles. Nada disto estava previsto. Vamos enviar um carro com dois homens para entrar em negociação.
- É arriscado Andorinha, eles atiram sem piedade.
-Não temos alternativa. Segue com a ordem.
-Sim Andorinha, acima e na frente, a vida!

Lisa escutou o homem dirigir-se à porta e escondeu-se na sala do lado. O homem desceu e Lisa puxando da arma dirigiu-se à porta. Era ele, João. Estava sozinho sentado numa grande secretária olhando da janela o ataque do terreiro. Lisa falou, apontando-lhe a arma.
-João?
De cabelos desalinhados, virando a cabeça, olha-a espantado. Levanta-se e Lisa recua reforçando a arma na sua direcção.
-Lisa! Que fazes aqui? E essa arma, apontada a mim porquê?
-Não sei mais quem és. Diz-me naquela noite drogaste-me?
-Lisa, tudo o que fiz foi para te proteger. Não queria que estivesses na rua naquele dia. Muita gente foi apanhada no meio do tiroteio. Lisa, eu amo-te.
-Mas porque estás envolvido nisto? És tu a cabeça deste ataque?
-Lisa, senta-te e poisa a arma, não te vou fazer mal nenhum. Se alguém entra e vê essa arma apontada a mim é capaz de atirar em ti. Por favor faz o que te digo. Estava à tua espera, mas pensei o pior quando soube que o carro foi apanhado.
Lisa pousou a arma e sentou-se na frente dele.
-Foram eles. Levaram-me para fora de Lisboa mas consegui fugir.
-E conseguiste saber alguma coisa?
-Apenas que o chefe deles tem um anel com uma cobra. Eles andam todos encapuçados e o uniforme é igual ao vosso, é uma confusão.
-Pois, eles eram nossos. Ele…só pode ser ele…o anel…agora percebo.
-Percebes o quê? Tu sabes quem é ele? Mas explica qual é a vossa intenção? Tanta violência era necessária? Estão a morrer civis nas ruas.

João olhou novamente pela janela com um olhar de tremenda desilusão.
-Ele era o meu melhor amigo.
-O Fernando? Não pode ser…
-Não. Toda uma vida minha que não conhecias para te proteger. Tive sempre receio de que não concordasses. O Elias sim era o meu melhor amigo desde miúdos. Esse anel pertencia ao pai dele. Foi um grande activista, esteve preso várias vezes no antigo regime. Mas porquê Elias?
-Sim…porquê esta traição?
-A nossa intenção era um golpe militar. Estamos há anos a prepara-lo. E se não fosse este contratempo, estávamos agora com o país nas mãos. Era nosso Lisa, entendes? – e os seus olhos brilharam deixando cair uma lágrima.
-Sim, nosso, do povo queres dizer João? Diz-me que é do lado do povo que estás?
-De quem mais podia ser Lisa?
-…do poder…
-Do poder? Onde ouviste isso?
-Da boca deles…
-Ah, agora faz sentido…ele queria governar. Enganou-me todo este tempo. Sabia que não tinha meios nem financeiros nem humanos para iniciar este movimento, aliou-se a mim e depois…
-E agora?
-Agora tudo muda de figura, eles têm um rosto e eu conheço bem o ponto fraco dele.
-Conheces?
-Ele tem uma filha.
-Mas João tu não te atreverias? É uma criança?
-Lisa, os meus homens estão a morrer. Esta era a única chance que o país tinha para darmos a volta…eu não lhe quero fazer mal…quero usa-la. Todas as guerras têm danos colaterais…
-A quem o dizes…E onde está ela? Tens ideia?
-Tenho quase a certeza que estará com a avó…rápido, temos de agir rapidamente, ele sabe que fugiste e por precaução pode ter mandado buscar a miúda. Vens comigo? – e estendeu-lhe a mão.
Lisa sorriu  - já que não há mais nada de interessante para fazer nesta cidade… - riram-se ambos.

Cá fora seguiram num tanque, estariam mais seguros e João foi dando as indicações. Lisa olhava-o com desejo e orgulho. Estava feliz porque as suas intenções eram boas. Um pouco agressivas mas com bom fundo. Também ela tinha em mente que uma revolução deste calibre não se faria com cravos e que desta vez, se não fosse a sério, não seria de todo uma revolução. O país caíra nas mãos de governantes absolutos, o povo não era senão escravo.

O tanque parou à porta do prédio. Lisa e João saíram encapuçados e um homem armado seguiu-os. A porta abriu-se e uma senhora de xaile apareceu. Lisa ao ver quem era deteve o braço de João em pânico.
-João é má ideia, vamos embora por favor.
-Mas como dizes? Estás-te a passar?
Os dois entraram, a senhora vendo-os de uniforme igual aos outros pensou serem homens de Elias. Sem tirarem em momento algum o gorro, entraram no quarto da miúda encaminhados pela senhora.
-Pai? – João tirou então o gorro.
-Não sou o teu pai mas tenho ordens para levar-te até ele.
Elisa nunca se revelou e sem proferir palavra levaram a miúda com eles.

 De volta ao terreiro, das batalhas resultara um tanque a arder no centro da praça e vários homens de volta dele tentando apagar o fogo. Na sala João falou para o outro que os seguia.
-Levem a miúda para a sala das reuniões, deixem-lhe comida e água – e aos ouvidos do outro - Fechem-na.

Lisa estava aterrorizada. A situação estava absolutamente descontrolada, um beco sem saída mas desta vez não só a vida dela estava em perigo. Não sabia se havia de dizer a verdade para proteger a criança. Não sabia qual seria a reacção de João.
-João, por favor é uma criança.
-Mas o que é eu te deu quando lá entraste? Tu concordaste com o plano.
-Eu sei mas quando a vi o meu coração disparou.
-Mais parece cenas de coração de mãe. Tu não és mãe dela para quê tanta pena da criança, nem a conheces.
-Infelizmente…- Lisa começou a chorar – Há também uma parte da minha vida que não conheces…
-O que queres dizer? Que conheces a miúda? Como?
-É uma história longa…e triste…
-Agora não temos tempo. Mais tarde. Vou enviar um homem com mensagem a Elias. Tenho a filha dele e exijo a retirada dos homens dele ou mato-a. Ele vai ceder.
-E se não ceder? Levas a tua avante?
-Achas? Não sou nenhum assassino…
-Todos nós podemos ser assassinos se a nossa vida estiver em causa.
-Mas o que é que tu percebes disso?
-Eu sei do que estou a falar.
-A minha vida não está em perigo. Se não queres compactuar com isto não atrapalhes. Tenho de ir lá abaixo falar com os homens. Ficas por aí?
-Fico.

Lisa pensou imediatamente em proteger a menina. Depois dele sair correu ao quarto dela. Pediu ao guarda para entrar.
-Maria!
-Mãe! – a menina correu aos braços dela – mãe! Porque estás aqui? Onde está o pai? Mãe não apareces lá em casa há anos! Nem ao meu aniversário foste! - a menina chorava agarrada a Lisa.
-Minha querida, por favor escuta com atenção. Nós duas temos de partir. Não estamos seguras aqui – o rosto de Maria mudou afastando-se dos braços da mãe.
-Não…não confio em ti, quero o meu pai, onde está ele? Quero o meu pai – gritou.
-Maria por favor não faças barulho, lá fora está um guarda. Escuta o que eu te digo, tens de vir comigo, não estás segura aqui – e segurando-a pelo braço passou pela porta informando que tinha ordens do Andorinha para levar a menina.

Saiu com a menina e o primeiro carro que apanhou com chave meteu-se lá dentro e seguiu viagem. Lisa só queria sair da cidade, não importava para onde mas tratava-se agora da segurança da filha e isso seria a sua prioridade. Há anos que decidira não ter capacidade de cuidar dela e entregara-a a Elias, que na altura dava pelo nome de Filipe. Durante o caminho rezou para não serem abordadas por ninguém. Procurou fugir de ruas principais até conseguir avistar placas que indicavam Norte. A sul sabia estar Elias.

No terreiro quando João regressou e procurou por Lisa, percebendo ter sido traído também por ela e sem nenhuma explicação ficou furioso e deu ordem de morte às duas se fossem encontradas. Quanto a Elias decidiu manter a fachada de que tinha na sua posse a menina. Pretendia também matá-lo assim que lhe tivesse a vista em cima. Sem Elias os seus antigos homens regressariam a si e a revolução manter-se-ia nos trilhos planeados.

Lisa andou horas de carro com Maria até sentir que estava tão profundamente perdida por aldeias que nem João nem Elias seriam capazes de a encontrar. Tinha intenção de sair do país com ela e não mais regressar, pelo menos enquanto não tivesse notícias de segurança. Foi conversando com Maria, recuperando ou tentando reparar o tempo perdido…
-Maria, a minha vida foi tão complexa até há bem pouco tempo... eu e o teu pai conhecemo-nos quando eu estava numa fase muito complicada…nem eu me conseguia erguer quanto mais cuidar de uma criança. Perdoa-me por favor, agora estou aqui e não vou nunca mais perder-te. Temos todo o tempo do mundo… - E olhando para o relógio do carro e depois para Maria pensou – sinto-me em paz.






Rostos de uma Revolução, Parte II


II



Já a tarde ia a meio quando Lisa avistou a ponte e Lisboa do outro lado do rio. De quem vem de sul, Lisboa tem duas pontes de entrada. Seria provável cada uma delas estar controlada por cada uma das frentes. Aproximou-se das portagens da ponte, escondida avistou tanques e homens armados vestidos de preto e encapuçados - mas como é que esta gente sabe quem é quem? E aí começou a ocorrer-lhe a ideia de serem um só ou alguém de dentro a meio do golpe ter começado a agir contra a revolução em revolução - pelo poder, foi isso que o homem disse na casa...Uma traição dentro da própria revolução. Seria assim?  - Não queria correr o risco de ser novamente apanhada pelas mãos erradas e pensou que o único ponto seguro que tinha era na baixa, era lá que estava o João - irei de barco. 

Desceu até ao rio contornando a entrada da ponte, tinha esperança de encontrar barcos de pescadores abandonados no cais. Pelos extensos areais do rio havia muitas embarcações. A grande maioria estava aos pedaços. Os bons estavam em água. Olhou ao horizonte. Havia ainda alguns barcos à deriva lá para o meio. Estariam mortos? Estava perdida nos contornos da cidade do outro lado quando se aproximou um homem de chinelos e boné na cabeça. 

- Se está a pensar em atravessar de barco é arriscado. Eles têm atiradores da ponte. Atiram a qualquer um, acho que até por diversão.
- Mas eu preciso de chegar ao outro lado...
-Sabe nadar?
-Sei...desenrascar-me...
-E é uma questão de vida ou de morte?
-Sim, completamente...
-Há uma solução...mas não sei se terá forças para isso...
-Não me diga que é atravessar o rio a nado? 
-Foi assim que o meu pai...a história agora não importa...a ideia é ir debaixo de água empurrando o barco...estas canas...que acompanham o areal...há muitos anos que servem para respiradores...a malta aqui tem outros métodos entende?
-Quer dizer que irei debaixo de água respirando com uma cana empurrando eu o barco?
-Exato...o barco serve-lhe de apoio e descanso e esconde-a...lá de cima não se vê...não é nada fácil...é uma técnica que se treina desde garoto...
-Desde garoto? Mas para quê?
-Agora não importa...não tem urgência? Irei prepara-la...

Lisa achou a tarefa impossível mas não tinha outra alternativa...Observou o homem a puxar um dos barcos, dos mais pequenos e a ir aos caniçais apanhar uma cana, cortou-a e limou-a com uma pedra. Experimentou-a para ver se o ar corria sem obstáculos.
-Vamos experimente primeiro em terra. É uma travessia que lhe pode levar horas. Nadar e empurrar...nadar e empurrar...Não ao contrário...para enganar o desespero entende?
-Nem por isso mas se afirma...nadar e empurrar...assim farei...
-É melhor livrar-se das roupas...só lhe vão criar resistência...vou-me embora...deixo-a à vontade...que seja bem sucedida...
Lisa olhou para a cana na mão...
-Qual é a percentagem de sucesso? A outra margem parece tão distante...
-É melhor não saber...se tem mesmo de fazer isto, o seu principal inimigo será a sua cabeça...respirar...nadar e empurrar...limpe a sua mente de tudo o resto...
-Sim...
-Outra coisa...a corrente está a puxar para o seu lado esquerdo...mas mais ao menos a meio vai encontrar correntes diversas e depois ela a empurrará para a direita...deve seguir sempre em frente...veja o desenho do seu desvio...
O homem desenhou com o dedo na areia aquilo que no final lhe pareceu um "s" mas ao contrário.
-Pela corrente vai avançar em curva primeiro para este lado...depois no centro corrente e contra corrente vão deixa-la seguir mais ou menos ao centro e por fim sentirá sem puxada para o outro lado. 
-Como vou saber isso tudo...
-Não vai...siga em frente e reze. 
-Minha mãe do céu...estou perdida...
-Não é assim tão complicado...a corrente só vai cansa-la um pouco mais...este rio não tem temperamento para graves desvios...mas mói...lembre-se...
-Nadar e empurrar...
-Isso...irei...espero que corra tudo bem
-Obrigado por tudo.

Lisa levou os pés à água segurando no pequeno barco e na cana. Esperou o homem partir e despiu-se deixando as roupas flutuarem. A água estava fria mas o dia estava quente - se fosse Inverno seria pior - continuou a empurrar o barco caminhando até sentir a água pelo pescoço. Levou então a cana à boca e mergulhou ajeitando-se na popa. Os olhos abertos debaixo de água não lhe permitiam ver grande coisa, a turbidez de cor acastanhada dava a ideia de estar a nadar numa gigante piscina de lama.  De fora o barco sem guia dava a sensação de estar à deriva sendo transportado pela corrente. Lentamente, nadando Lisa foi seguindo. A sensação de fundão debaixo dos seus pés era o seu maior abismo. A pequenez de si pareceu gigantesca aos olhos de uma escuridão que sumia, Lisa só podia olhar em frente. Nadar e empurrar o barco, eram as palavras que deviam preencher todo o seu pensamento, se se desviasse, estaria perdida. Passado algum tempo a temperatura da água mudou, Lisa pensou estar a chegar ao centro do rio e que aqui seria a parte das contra correntes. Não tinha a certeza disso mas continuou, lentamente nadando. A cana magoava-lhe a boca, longe de ser um respirador anatomicamente adaptado. Pensou em vir à superfície do lado direito do barco, pelas suas contas, a ponte estaria do outro lado e o barco dava-lhe proteção dos atiradores. Poderia descansar um pouco e dado que estava em corrente contra corrente não sairia do mesmo lugar. 
Assim fez e lá estava a ponte do seu lado esquerdo. Estava de facto a meio do rio. Ficou aliviada. Cansada mas com uma nova energia, cedo chegaria à outra margem. Parou assim um pouco para descansar os braços e as pernas, sentindo um ligeiro embalo ora para a esquerda ora para a direita. Era confortável este embalo. O céu estava limpo e algumas gaivotas passavam rasantes. 
Havia em tudo isto uma certa beleza. Pelos campos que passara e agora o céu e o rio, este azul de tranquilidade como se o mundo estivesse suspenso naquele momento. Como se ali, estando na verdade em perigo, estivesse segura. Tranquila e retida numa pausa de profunda beleza. 

A observação permitiu-lhe também perceber os movimentos da ponte. Alguns tanques atravessavam para Lisboa em marcha lenta. Lisa pensou em como podemos acordar e tudo o que conhecíamos à nossa volta estar virado ao contrário. A mudança chegara e ela nem ninguém se conseguia entender no meio dela porque ninguém explicava nada. Ninguém sabia se era uma mudança boa ou má. Era mudança, quanto ao resto só restavam dúvidas.