quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Tudo de ensaio



Sabes que há momentos
como quartos de vento contagem
de uma folhagem seca que estala
dirigível que paira, que se descai
como o corpo se aperta de ensaio
encarando o lado contrário, vem
sentar-te a meu lado nessa ponte
onde os braços se ligam cidades
e os olhos se entendem ângulos
sem fidelidade a uma real pasta
corpo objecto, que importa isso?
vem, nesse cubismo cezannista
de volumetrias duras e sem riso
que a fronteira nos afasta de nós
seres analíticos de coração sem
voz.
Mas tu sabes que há momentos
nem bem dentro nem bem fora
que por vontade maior, colidir
só para saber a que sabe existir
Aurora. Se a luz nos penetrasse
agora. E nos projectasse milhar
melhor miopia misantropia, ia!
cada pedaço por aí, semeando
o que afinal se odeia por dentro
Talvez fosse mais fácil, talvez
tudo cais onde se chega início
onde se começa sem premissa
que permita uma brisa alcance
sem nome, como quartos sem
todo.
Mas tu sabes.
Que saberá, ainda assim,
sempre a pouco.








segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Made in U.S.A


Vamos ao fundo com figuras de estilo,
com figuras ou com estilo?
porta aviões de mentes com o cio
um tiro no navio de cano único
o truque alvo perícia de partícula
afunilando o monóculo
terra à vista meu capitão do ócio!
parece que alcançamos o fim
e que finamente deixamos o mim
parece
vejo aves, bivalves e talvez um coqueiro
sinto-lhe o cheiro, apalpo-lhe o traseiro
da maquete o empreiteiro mundo novo
um mensageiro o vendeu como o único ovo
rapidamente, fogo posto: que trágico este povo!
fico contente em contentar-te
daí que só podia, elogiar-te - Deus
e assim partiu deixando na sétima arte
uma versão meio rebuscada tipo pescada
de robinson cruzo e ego, maradona franco
misturado-se o pó com a cinza
do brilho das estrelas anfetaminas
representando a espécie extinta do génio.
De verdadeiras caveiras ficaram ideias.
Talvez Aquiles tivesse dito: é o pé inteiro
e do mundo tudo fosse a arca
tudo o que fosse escumalha
fosse afinal a primeira escolha
e nessa ilha longínqua,
afinal uma língua bífida,
colombo descobrindo américa proíbida








Veio


Invoquei-me
e tudo pensamento mágico
pé direito, figas e ferraduras
palas nos olhos, andas e ligaduras
que o corpo se dispa demoníaco exorcista
de retro o concreto e a preguiça do léxico
de certo sem tecto e a pesquisa do êxito
o que diz o Alf quando está apaixonado?
Alfama!
me inspiro de velhas cantigas severas
calçando tarefas tamanhas  tamancas
de metas alcanças de queixas te enterras
é pecado, é loucura, ter no punho a censura
a técnica do funil de vil braço bombardeio
separando o trigo do joio, o rico do saloio
e o tolo do juízo,
Alcança-me!
É o fado da raíz de baixo
da prova dos que correm sem pernas
da boca se cospem olímpicas pedras
Anda o sol na minha rima
e ele sabe que arde apaixonar te
mas se me tens a teu lado
nem sei se mereço a razão porque ardo
Ai deixa-me!
que eu sou fado marujo de porto sujo
meu pensamento anda perdido
nesta cantoria da hora da putaria
porque agora eu sei
onde a verdade mora! Ai sei
que grande sova me dei 
e tudo pensamento mágico
de oráculo fanático orgásmico
por isso,
despi-me de compromisso
invoquei-me e cuspi-me de espírito livre!




quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Publicar Título



A prosa do dia-a-dia, o diário do estagiário
areia nos olhos, como pintam a fé do otário
a veia seca de ideia, não pelo teu pé, a teia
hemisférios de lugares etéreos, o ir e voltar
da estrutura espremer a polpa da fruta
de embarcado empurrar a popa da luta
cataclismo lógico no peito liso do bizarro
faz buraco na hora de elevar-se o tecto ao raso
e do vão se rasgar a fisga, no peso da gente
tudo ira do esforço de engenharia de fosso
analógica pele de uma tartaruga extinta
que vive de língua, de nenúfar em lufar
mente giratória orgásmica simples
papagaio de fios de escrita de crina
carrossel de fascínio, curiosos filhos de linces
a paixão de um vivo coração sem alicerces
quando no espelho, um poeta te aponta o dedo
quem são teus mitos e mais íntimos companheiros?
Anda, empurra esse corpo doente de conceitos
aproxima-te da beira da mais alta das cataratas
e atira-te ao fundo para que nasças, ainda ontem
antes de seres quem és, antes de te roerem os pés
as ratazanas mundanas do vai-vem de nadas
Excitam-me aqueles dentes que se debruçam
na boca e na fruta a marca, de uma mente gulosa!





terça-feira, 16 de dezembro de 2014

A valsa do fecho



A valsa.
Quer o abatanado cheio? Sim, por favor. Estava perto da hora de fecho e o dono do café saiu detrás do balcão, apagou a televisão e ligou a aparelhagem donde uma valsa inundou a atenção dos poucos que ainda lá se demoravam. Atirou com o avental para uma mesa vazia e pegou na bacia da patroa e rodopiou-a por entre as mesas, como se fossem colunas de pedra. Ela ria e com mestria correspondia aos passos Manuel, como és louco! Louco por ti minha deusa.
Os clientes no encanto daquela cena, foram delicadamente saindo, deixando o valor da conta no balcão. Numa valsa de ternura, contagiados pela rua. Como são lindos os dois...Não foi ao acaso que ele dera o nome de Passos de Rainha ao café. E era assim há vinte anos. Nunca deixando que aquelas paredes tomassem conta deles. Lembrando todos os dias da verdadeira razão que os tinha levado a abrir o estabelecimento. A única que os mantinha unidos. Numa dança que só pode ser valsada a dois, em sintonia, conhecendo a dimensão de cada pegada, expectativa e medo, no encontro de um ritmo cadenciado por dois. Onde tantos outros falharam.

Um deslize.
Ela saiu também. Triste mas feliz. Nessa possibilidade de se ver num amanhã que deixou de parte, que tantas vezes deixou para mais tarde. No passado lá ficara o par, quantos pares? Quantas valsas dançara sem sequer olhar na cara? E deixou-se levar pelos pés. A passadeira nostálgica deixou-a distraída diante de uma montra de decorações de Natal. E se eu comprasse um enfeite, um pinheiro ou um presépio? Colocou de parte a ideia Não faz sentido, o Natal é um lugar onde se vive uma ideia familiar, não um enfeite para colocar numa parede para onde ninguém vai olhar. Continuou a caminhar pelas ruas atarefadas de pessoas, compras e cachecóis enrolados de pescoços esguios Porque será que nunca estamos confortáveis com o tempo?
E o telefone tocou dentro da mala, Ah és tu irmã, não, estás à vontade, tenho tempo, estou andando por aí. Que se passa pareces cansada? Como saíste de casa? Mas não estavam bem? Para a minha? Espero-te lá então. Não eram as melhores notícias, mas para os outros tudo tem sempre solução e nesta ideia apanhou o eléctrico subindo a encosta.
Está frio não é verdade? Só se vêm velhos por aí, pois os jovens andam a trabalhar. As vizinhas adoravam meter-se consigo, moendo como se soubessem da sua vida, concluindo que nada fazia por não ter um horário nem chegar ao fim do dia com o saco de plástico do supermercado. Sorriu e virou costas. Em casa ligou o aquecimento e meteu água ao lume para um chá. Esperou por ela acabando por adormecer no sofá. Quando acordou a casa estava mergulhada na escuridão, a noite chegara e vendo as horas ligou para a irmã e ninguém atendeu, ligou para o marido da irmã Mas onde está? O quê? No hospital...um acidente? Vou já para aí. Correu Se ao menos eu tivesse tentado perceber...Ainda há solução, para os outros há sempre solução. 

O sopro.
Anda sopra, ou sopras tu ou sopro eu, a cera está a estragar a cobertura! E vendo que a outra não se decidia, soprou ela sozinha. Afinal faziam as duas anos nesse dia. É preciso que se mude a estrutura. Que se removam as cascas já duras. E se recomece o que nunca se pode deixar como concluído. Foi o discurso do pai no dia em que faziam treze anos. Uma idade de tanto e coisa nenhuma. Onde tudo se sente e nada se entende. Onde o corpo se aperta para ser outro e a cabeça se encolhe para ser uma. Uma para fora e outra para dentro, assim eram. Nessa altura já ela vivia para a rua, para os rapazes, para as festas e as fracas notas. Sorria e fazia rir a todos. A outra, como que absorvida de todas as cores, era oculta, discreta, tímida e quieta. Se o tempo as trocou, isso foi a vida que as baralhou. Ou o excesso dela.
Vamos ver como passa a noite, amanhã saberemos como está a reagir. Por agora nada mais há a fazer, vá para casa e descanse. De regresso a casa passou pelo largo da infância despedindo-se. Naquela cama de hospital, a irmã dormia no lugar da vida. No lugar de duas, talvez só uma ficasse, ou talvez as duas ficassem dentro de si, alternando no espelho. A essa hora já não havia eléctricos e foi subindo a pé arrastando-se na fé. Alguém dormia no chão de uma porta enrolado em mantas sobre pedaços de cartão. Aproximou-se e sentou-se ao seu lado. Ele, dando pela presença dela, acordou.

A voz.
Aqui só há lugar para um. A rua não é nenhum albergue. O homem de barba e cabelo extensos parecia mais velho do que na verdade era. É só por um momento, deixe-me estar aqui por um momento. E ele calou-se. E depois voltou a falar-lhe encostando-se na almofada de mármore Resta-me uma voz para ninguém a escutar. De que me serve então falar? Ela retirou da mala o telefone e colocou uma música Era a música com que a nossa mãe nos acordava ao fim-de-semana. E uma voz esganiçada operada se ecoou pela rua deserta e sombria. Assim como a voz se escalava nos agudos dentro deles um absurdo se explodiu de riso e o homem comentou É um desastre mesmo. Fazia muito tempo que não se ria assim e quanto mais escutavam mais riam e quanto mais riam, mais riam. Numa histeria catártica abençoada.
Quando o silêncio chegou choraram os dois, e abraçaram-se. Eu moro lá em cima, porque não vem comigo? Posso fazer um chá e uma torradas, sempre tem menos frio. E o homem voltou a encolher-se nas mantas Eu escolhi assim, tudo me levou até aqui, é aqui que pertenço, vá-se embora, está a fazer-me perder o sono. Ela levantou-se e retirou-lhe a manta de cima Para os outros há sempre solução, vamos, agora. O homem levantou-se cambaleante, olhou para as suas tralhas e pensou se as levaria consigo, afinal o que tinha de seu? E embrulhado seguiu com ela rua acima.

A Inocência.
A porta se abriu. O aquecimento estava ainda ligado. Presumo que um banho lhe saberia bem, posso cortar-lhe o cabelo, que me diz? Era tudo demais para ele, como se ela o tivesse engolido na própria pele ou ele a tivesse agora dentro de si combatendo contra as paredes do corpo. Um chá seria bom. Foi tudo o que conseguiu dizer. Estou a ir muito depressa, bem vejo, desculpe, farei o chá então. Tinha no rosto uma expressão de abandono, os olhos caídos de um tom encardido e ela olhou então as mãos dele. Surpreendentemente delicadas. Trabalhava com as mãos antes? Ele levantou os olhos Antes? Eu esqueci-me de que houve um antes. Ela sorriu-lhe temos todo o tempo do mundo, dormirá aqui no sofá, vou buscar cobertores, amanhã estará ainda aqui? Diga-me que sim por favor. O homem perdido Pois se não tenho mais para onde ir, sim. E quando ela fechou a porta do quarto ele baixinho lhe disse Obrigado. 
Na manhã seguinte ela acordou com uma algazarra no chuveiro. Correu à casa de banho abrindo a porta esquecendo-se de bater. Foi quando o viu completamente despido. Magro, ossudo mas belo. O homem envergonhado cobriu-se com uma toalha Desculpe, não percebo como funciona isto. Está fria como gelo. Ela riu-se tímida Pois, é preciso ligar o esquentador, vou tratar disso, cubra-se para não arrefecer. Não sabia o que era um banho há meses, e quando saiu muito depois, parecia outro desculpe ter usado as suas coisas, aparei a barba. Ela não podia acha-lo mais atraente, como era bonito o rosto antes escondido. Fiz ovos e torradas, venha. Como se chama? Posso saber o seu nome? O homem encolhendo os ombros Escolha um que lhe agrade.

O simples.
Os dois entraram pelo café apertando-se para caberem juntos na porta estreita. Ela pediu um abatanado e ele um galão Preciso de arranjar um trabalho, não quero depender de ti, quero que te orgulhes de mim, agora que sou teu. Ela sorriu pensativa O que gostarias de fazer? Ele olhou para a porta da cozinha Antes, naquele antes, eu era cozinheiro. Veio-lhe à memória o rosto da irmã, que dormia ainda num sono suspenso. Conservava-a viva ao espelho. Como ela, arranjara o cabelo, vestia-lhe as roupas e alguns modos tão seus apareciam assim de mansinho como se falassem consigo. Ela levantou-se e procurou pelo proprietário do café Por acaso não está a precisar de ajuda por aqui? O meu marido foi cozinheiro e está à procura de trabalho. O senhor olhou bem para ele e no fundo dos seus olhos encontrou o homem a quem tantas vezes entregara os restos do dia, não comentou, virou costas e entrou pela cozinha procurando a patroa.
Quando voltou de lá vinha satisfeito Eu e a Maria estamos a caminhar para velhos, já nos vai pesando o trabalho e por isso concordámos em aceitá-lo, bem à experiência, a ver vamos se tem paciência para as exigências dela e aproximando-se deles Tem cá um feitio, mas é boa pessoa. Pode começar amanhã mesmo, o ordenado é o mínimo que podemos oferecer mas para começar não deve ser mau. Ele abraçou o homem de felicidade Nem imagina como é importante para mim.

A notícia.
Credo o jornal é só desgraças, já viste o que vem na última página? Tratava-se da notícia de uma mulher encontrada morta enterrada no próprio quintal, o vestido de noiva ainda se mantém quase intacto, como pode ser? Ele correu arrancando-lhe das mãos a folha de papel áspero Não...O desespero enervou-lhe os olhos e as mãos à boca roendo os dedos de medo. O que se passa? Sabes alguma coisa sobre isto? O silêncio dele era desesperante Por favor fala comigo, explica o que se está a passar? Vestiu o casaco e saiu apressado.
Algo dentro dela falou, uma curiosidade perigosa pedindo para abrir uma caixa de pandora. Pegou no jornal e dirigiu-se à sede do mesmo. Na portaria indicaram-lhe que o jornalista em causa estaria em campo a cobrir uma outra morte que ocorrera num parque na zona sul da cidade. Apanhou um autocarro e saiu na entrada. Caminhou por entre o arvoredo chegando a uma clareia onde um corpo coberto com um lençol era zelado por três homens, um vestido com um casaco de cabedal sisudo, um agente fardado e outro de câmara em punho. Devia ser ele, aproximou-se Desculpe incomodar, pretendia saber mais sobre a noiva enterrada, a notícia do Diário de ontem. O homem afastou-a com desprezo Estou ocupado, não vê? Agora não posso falar-lhe. O de casaco de cabedal escutou a conversa e aproximou-se dela fumando Desculpe, não pude deixar de ouvir a conversa, chamo-me Luís Carlos, sou inspector da polícia judiciária, pareceu-me que tinha informações sobre a noiva enterrada, podemos falar?
Afastaram-se uns metros e ela falou a medo Não sei bem o que lhe dizer, gostava de saber mais sobre o assunto. O homem atirou a ponta do cigarro para o chão Como deve calcular nós não negociamos informação, procuramos pelo noivo da dita mulher, desconhece-se o paradeiro dele desde a morte que estimamos ter ocorrido há três anos. A fotografia não foi divulgada porque ao que parece o homem não tem identidade. Na casa da noiva não havia um só retrato e os familiares confessaram não terem sequer conhecido o homem. O casamento estava marcado para o dia 28 de Dezembro, em nome de alguém que não corresponde ao noivo, porque nem sequer se encontrava no país à data. O nome era falso portanto. Calcula-se que ela terá sido morta provavelmente nesse mesmo dia. Nada mais temos. Ela encolheu os ombros disfarçando Nesse caso penso que não tenho mesmo mais a acrescentar para o ajudar, lamento. O inspector entregou-lhe um cartão Se se lembrar de algo, estarei ao seu dispor. 

A carta.
Quando regressou a casa as janelas encontravam-se ainda encerradas e nas gavetas dele um adeus numa carta, notoriamente escrita na pressa da fuga. Ela leu e releu. Ana perdoa-me, não te posso explicar um passado que em mim não tem ele mesmo uma explicação, garanto-te que não a matei, peço-te que acredites em mim, partirei para não te arranjar complicações, parto com o coração despedaçado, por favor que me perdoes.
Correu ao café e o proprietário confirmou que ele não viera trabalhar nesse dia. Não havia como saber para onde fora. Retirou do bolso do casaco o cartão do inspector e ligou-lhe combinando um encontro. Se ele estava inocente, era preciso ajuda-lo para que pudesse regressar. O inspector chegou, pedindo ao balcão um bagaço e um café. Sentou-se na mesa dela e aguardou que ela falasse. Desculpe, hoje de manhã não me ocorreu perguntar-lhe a causa da morte da noiva. Ele tossiu e suspirou de impaciência Hoje foi um dia muito complicado, nem imagina, não lhe disse sobre isso porque pouco sabemos, dá-nos a entender que a causa terá sido álcool. Ela entusiasmou-se Álcool? Quer dizer que o noivo pode estar inocente? O inspector despejou o copo do bagaço abruptamente Pode e não pode, o que quero dizer é que de facto a mulher apresentava indícios de alcoolismo mas e embora ainda estejamos a aguardar resultados de análises, há probabilidade de ela ter sido obrigada a ingerir uma dose fatal. Mas se foi ou não assim, ajudava encontrar o dito noivo. Sabe alguma coisa sobre ele? Ela pensou que seria melhor confessar a situação, até porque neste momento também ela não sabia do paradeiro dele Sim, tenho desconfiança de ter estado a viver com ele nos últimos três meses. Quando lhe li a notícia o pânico tomou conta dele e hoje quando regressei a casa, encontrei esta carta, leia. O inspector pegou no papel amarrotado Poderá ajudar-nos a fazer um retrato robot, se vier comigo à esquadra trataremos disso. Ela assustou-se Não, isso não, poderá ser mal entendido por ele e nunca mais volta. O inspector endireitou-se na cadeira Não, garanto-lhe que o meu empenho está na defesa deste homem, quero apenas apurar a verdade.

A traição.
Dentro de dias o retrato dele pairava assombrando estações de comboio, paragens de autocarro e vitrines de supermercado. Ana sentia uma terrível angústia, como se o tivesse traído e imaginava-o escondido num beco frio. Tudo nessa imagem tomava a cor de uma saudade surda, de uma ausência insuportável. Não havia como puxar o fio condutor. Era como se aquele homem tivesse nascido no dia em que o conheceu. Todos os dias regressava à rua onde o encontrara pela primeira vez, esperando qualquer coisa que a levasse até ele. E tudo o que encontrava era o rosto da irmã. E a culpa fora dela, agora ele tinha uma identidade e em cada lugar, o olhar perseguindo-o na cidade tomado como cativo. Estaria ele ainda por ali? Estaria ele vivo?
Não sabia se por isso ou por tudo o que não foi dito. Não sabia o motivo. Não sabia bem ao certo o momento em que deixou de ser. Mas de noite para noite, as horas se depositaram naquele passeio e desaparecendo da sua vida, a rua a tomou por casa, também ela, sem paredes nem janelas. Como se ali, estivesse mais perto dele e de uma verdade inevitável. O seu pensamento deixou-se em devaneio, vago, e o seu olhar baço, apenas mais um pedaço de pormenor de retrato. Pormenor de calçada, detalhe de passeio, pena de asa sem corpo. Pedaço de corpo de cidade, mais um, entre tantos outros anónimos. Adormecendo a dor no propósito da invisibilidade.

A verdade.
O inspector parecia agitado ao telefone quando marcou novo encontro passadas duas semanas. Encontrou-a esfregando as mãos rasgadas de noites ao relento, nervosa Parece abatida, pior, parece envelhecida. Como tem passado? Ela não respondeu distraída apaticamente com quem entrava pela porta do café. Tenho novidades e receio não serem as melhores, prepare-se para o pior. Os olhos dela abriram-se e um enorme suspiro a encurvou ainda mais. Parece inacreditável que esta mulher tenha passado pelo que passou nas últimas semanas de vida. Não sei se tem conhecimento da prática de engorda de gansos? Bárbaro, confesso que perdi a vontade de tocar em foie gras. Recordo que nos referiu que ele fora cozinheiro, pois bem, tudo aponta para que ela tenha sido forçada com comida e bebida, provocando-lhe a morte por enfartamento. Ora, porque alguém haveria de cometer tal crime? Nós conseguimos obter informação do local onde este homem foi criado, parece que o negócio da família era precisamente o foie gras. A minha teoria é que este homem tendo uma perturbação grave, terá conseguido sublima-la com a profissão de cozinheiro, veja, também ele alimentava e engordava assim os outros, mas por alguma razão, alguma situação terá despoletado nele a patologia adormecida e a mulher terá sido vítima. Ela gritou Não, não foi com esse homem que eu vivi durante três meses, disso posso ter a certeza, não. O inspector pediu-lhe que se acalmasse Escute, estas situações são absolutamente surpresas para os que convivem com eles diariamente, a maior parte, tem sucesso em esconder-se e outros ainda, não têm sequer consciência, como se dentro deles habitassem vários. Há casos em que não há sequer recordação do momento do crime, como se fosse amnésico. Mas a história não acaba aqui...Ela escondeu os olhos nas mãos chorando de pavor Como sabe não havia explicação para a não decomposição do vestido, mais ou menos cinco meses é o tempo que demora, estamos a falar de três anos, donde concluí que ele terá regressado ao local e terá trocado o vestido. Investiguei e encontrei uma loja de vestidos de noiva que fora assaltada algum tempo depois da morte, consta que pelo menos dez vestidos terão desaparecido. Tudo isto é profundamente mórbido. 

O fecho.
Ana levantou-se e como que levada por uma força exterior encaminhou-se para a rua onde nos últimos tempos havia dormido. No canto que antes fora dele, procurou por antigos pertences. E lá estavam, tapados por pedaços de cartão amontoados, dois sacos de plástico fechados. O inspector seguiu-a. Ajoelhou-se e procurando com as mãos encontrar verdade para as palavras dele rasgou os sacos donde se espalharam pelo passeio vestidos de um branco dolorosamente imaculado. Ergueu-se como que possuída e enfiou um dos vestidos. O inspector impotente deixou-se apenas como observador. Vestida de noiva catatónica, entrou pelo café e desfilou deixando um véu de pânico calado atrás de si.  Procurou pela aparelhagem, colocou a valsa do fecho e pelas mesas rodopiando passo a passo de mão estendida, voltou a sair. Na entrada, na rua, o inspector a aguardava como quem espera pela noiva no altar depois de se saber abandonado. Ela pediu-lhe a dança e cantarolando a mais triste das valsas, na passagem de um eléctrico, atirou-se de mansinho deixando-lhe as palavras para os outros há sempre solução, para os outros. 

O Encore.
O inspector tinha agendadas para esse dia duas das visitas mais difíceis da sua carreira. Uma ao estabelecimento prisional onde o homem estava detido, outra ao hospital onde a irmã estava ainda em coma. Depois da morte trágica de Ana, parecia-lhe que a cidade se tornara mais perversa, que as ruas se haviam vestido de um negro sempre noite. Talvez porque ele mesmo se tenha refugiado no gabinete e saísse apenas a altas horas da madrugada para caminhar fumando. Talvez, porque nas últimas palavras dela não encontrara mais a esperança. Talvez porque nem ele soubesse mais porque fazia o que fazia.
Procurou pelo homem e mandou-o chamar à sala de interrogatório. Tal como esperava, encontrou-o com uma calma enervante. O homem não esperou por nada, falando profundamente Não estou inocente, matei-a, sei-o, dentro de mim habita um monstro. Mas a Ana, com o seu jeito de amar, conseguiu que eu fosse outro, pelo menos até...O inspector queria apenas ter mais uma informação, tudo o resto lhe era demasiado próximo e doloroso Outras houve? O homem curvou-se na vergonha de si mesmo Não, foi o meu único caso humano. E se me perguntar porque o fiz, respondo apenas que é assim a minha natureza e se me perguntar se voltaria a fazê-lo, posso apenas garantir-lhe que não tocaria num só cabelo dela..Ana...O inspector virou costas dirigindo-se à porta A Ana está morta e saiu.
Na porta do quarto deteve-se. As pernas claudicavam de um momento de indecisão. Ela dormia, de que lhe adiantaria vê-la. Era apenas mais um fantasma que lhe atormentava as noites de insónia.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Que me extrañas con tus ojos




Que me extrañas con tus ojos
Te creo

I

Pousou o copo sobre a mesa de tudo o que poderia dizer-te, neste momento só sei que o meu corpo te deseja. E meteu o garfo à boca com o último pedaço de rosbife apanhando uma batata assada. Os três olharam para si atentos na esperança de terem licença para se levantarem da mesa. Ele voltou a olha-la pensando o meu corpo te deseja. Ela devolveu-lhe o pensamento Tu és infinito nos teus beijos, nos teus braços. E os três pequenos aproveitando o momento de ausência, levantaram-se e em pés de lã se retiraram. Ele levantou-se pegou na mão dela e levou-a ao gira-discos, pousou a agulha e tocou pela sala a melodia de sempre. Lo tuyo es puro teatro segredou-lhe ao ouvido. 

Depois ficaram por ali, abraçados pelos espíritos da casa e a tarde de domingo se foi instalando. Os pequenos regressaram com uma cassete pedindo ao pai para que a colocasse e sentaram-se no sofá empurrando os cotovelos para o melhor lugar. A mãe regressou à cozinha e o pai seguiu para o quarto, procurava nas gavetas por algo. Terminando a loiça ela foi ter com ele Que procuras Rico? Ele voltou-se para ela pensativo, Não sei. Aproximou-se tocando-lhe no rosto Como não sabes? E olhando-o nos olhos por um momento ele acenou com a cabeça Sim. Sentando-se na cama ela chorou Já? Mas estavas tão bem aqui...Porquê já? 


Saiu do quarto limpando as lágrimas no lenço guardado no avental e compondo-se sentou-se ao lado dos filhos olhando a televisão que passava um filme de animação. Hoje é domingo. O mais velho olhou para a mãe e abraçou-se a ela Que saudades dele. Os outros dois perceberam e correram aos braços da mãe também Pronto, chega, vamos animar, vou fazer pipocas para todos. Na cozinha procurou pela panela e deitando à mão o milho sentiu um aperto no coração Como pudeste? Já faz um ano, como pudeste? E o milho batia agora de zanga contra as paredes de aço não querendo abrir. 


II

Ás vezes conto os dedos dos pés para ver se tenho algum a mais, é assim há sessenta anos. E pincelava de vermelho sangue cada unha. Cruzou as pernas esperando que secasse bebendo da caneca o café ainda quente. Ainda assim, depois de tudo, a minha boa notícia vinda da perícia de Deus é que estou por aqui, ainda, mas será essa uma boa notícia? E dançava pela sala sozinha, os braços querendo abraçar um outro ausente no conforto da melodia que a seduzia. Cantarolava You told me love was to plebeian. A máquina da roupa dava sinal de ter terminado, abriu a porta e retirou de lá de dentro as peças ainda húmidas Como pode ser? Que faz isto aqui? Era a camisola preferida dele, aquela que usava sempre por casa, no conforto dos dias em que não trabalhava. Há anos que não lhe punha a vista em cima, tempos depois de tudo havia guardado todas as coisas dele numa caixa no sótão. E nunca mais lhe tocara. Como se a distância dos objectos ajudasse no esquecimento nunca conseguido, bastava olhar para os filhos, que lhes via algo muito dele, uma palavra, uma disposição, uma posição, uma história. Afinal eles eram e seriam sempre metade ele. 

Há um silencio estranho nesta casa, como se todos os espíritos se tivessem sossegado e nesse silêncio há a escolha de não mais falar contigo. E atirou a camisola para o fundo de uma gaveta onde guardava roupa que raramente usava Não quero mais a tua ausência por perto.  

Quando era pequena, a varanda do meu quarto tocava a copa de uma árvore gigante e eu achava que podia saltar agarrando-me a ela e descer por aí. Mas eram apenas as folhas que chegavam até mim, demasiado frágeis para o peso do meu corpo. Tocava-lhes sentindo o veludo do seu respirar desejando saltar. Avistava assim a lua, o castelo iluminado lá no alto, os pátios da frente onde esperavam as bolas e os telhados onde se roubavam beijos numa brinca de esconde apanha. Depois, um dia, alguém cortou todas essas madres gigantes da avenida para plantar laranjeiras, dizendo que as raízes estavam levantando o soalho do alcatrão. Nesse dia, toquei-lhe pela última vez, respirei da sua pele viva um último adeus. E ela caiu, adivinhado a queda dos meus dias futuros. 
Mãe, o que faz aí na janela há tanto tempo? Venha sentar-se connosco à mesa, já estamos todos. Todos os três e as suas esposas e os seus filhos, que por sua vez haviam chegado dando lugar ao novo. Olhava o tempo, filho, que se mede pelo nosso envelhecimento. As laranjeiras adoeceram e hoje não há senão lugares de estacionamento. Eu nasci nesta casa, tal como vocês nasceram, no quarto que já da minha avó fora. Esta casa é demasiado grande só para mim, creio que é hora de me mudar para uma mais pequena e algum de vós venha para aqui. O filho mais velho indignou-se Nem pensar nisso, se a mãe precisa de alguém que venha tomar conta de si nós providenciamos mas retira-la desta casa nem pensar. Aqui nasceu, aqui repousará mãezinha. Olhando uma última vez pela janela caminhou para a sala de jantar Porque não saltei?...

III

Ao canto da sala o pinheiro de natal iluminado, Mãe este ano sou eu quem leva a estrela ao topo, não é assim? Todos os anos as tradições se mantinham por teimosia dos filhos e um certo alento lhe combatia ou adiava a morte por dentro. O filho que leva a estrela ao topo tem direito a pedir um desejo aos outros para o ano seguinte. Já lá ia o tempo das trocas e empréstimos dos carrinhos e dos soldadinhos, agora pedia-se saúde, amor ou por brincadeira uma máquina de cortar a relva. E o mais novo pegou então na estrela branca pontiaguda e empoleirou-se no grande pinheiro, colocando-a solenemente. E assim como subiu, desceu encolhendo-se apertando o peito de dor. Todos se levantaram Depressa chamem ajuda. Ele estendeu o braço contendo-os Não, é só um pressentimento muito forte, já vai passar. De todos, ele fora o único a herdar a visão do avô, o pai da mãe. Dizia-se que saltava de geração em geração, este dom ou castigo de ver para além do vivo. E num sopro de nevão de fora, a janela da sala se abre e o filho olha para lá atormentado Pai!
Os outros nada viram e por isso, o mais velho correu à janela fechando-a do frio, Mãe tenha calma, a mãe já sabe como ele é, não é ninguém, tenha calma. Ela chorava alucinada pelo desejo. Mas o filho mais novo continuava a vê-lo, entrara, sentara-se à mesa no seu lugar habitual e sorria com pesar de saudade. O pai ergueu o copo e fez o brinde que lhe era habitual, depois levantou-se e saiu subindo as escadas ao quarto dele. Estava procurando algo numa gaveta quando o filho mais novo entrou Pai, o que procura? Ele olhou-o parado e acenou com a cabeça com o olhar mais triste de sempre abocanhando as roupas que se espalhavam no chão Todo este tempo eu quis regressar e não podia, não podia, como podia? E do fundo da gaveta, retirou então um retrato, uma criança menina mostrando-o ao filho Era a tua mãe em pequena. Não compreendendo Mas que importância tem isso agora pai? Desesperado atirou-se de joelhos ao chão Perdoa-me por favor, que me perdoem todos pela insanidade que cometi, que me perdoem por favor. Eu sou...vosso pai e vosso avô...quando vos vi crescer percebi que um dia a verdade se saberia e não podia mais continuar aqui, embarquei-me nesse mesmo dia e desapareci. Faleci hoje de manhã, sozinho e amargurado de culpa. 
O filho virou costas e desceu a correr voltando à sala Mãe, tu sabias, porquê? O horror da verdade instalou-se no rosto dela É tudo um teatro, um teatro...e caiu redonda no chão. 

IV

 Depois desse dia, os filhos não mais visitaram a mãe e pela casa perfumava-se um odor de loucura e desespero. Ela não o podia ver mas sabia que ele lá estava, retido na culpa do não perdão dos vivos. Mas voltara a falar-lhe e passou à rotina de dois, dois pratos na mesa, dois travesseiros na cama, dois copos na lareira. Consciente do dano que causara esse amor proibido, de dia para dia definhava na escuridão. Não abria as janelas e uma vida fictícia tomava o lugar do suplício de continuar viva. Começou então a imaginar formas de colocar fim a tudo, já nem pelos filhos era digna. Ninguém podia entender, ela mesma desencarnara o papel de filha para ser esposa, no dia em que a mãe falecera era ainda uma menina de colo. Começando a cuidar do pai, filha única, e o pai rejuvenescendo de dia para dia, como que por um milagre, até que bateram os dois na mesma idade e nesse dia, sucedeu-se a tragédia da concepção. 
Há muita coisa Rico que não consigo explicar-lhes, sei que o tempo para ti funcionou ao contrário e que nos apanhou nas teias do imaginário, donde me vias minha mãe e eu não mais meu pai. Algo de muito perverso se sucedeu aqui, mas tenho a certeza de não ter sido obra só nossa. Mas quem poderia entender tal? Continuo a odiar-te, desesperadamente a amar-te nesse ódio, porque tinhas de partir? Porque me deixaste a mim com todo este peso de continuar esta mentira? Não tinhas esse direito, não tinhas. 

Minha mãe contava-me histórias ao luar, histórias de encantar e arrepiar. Depois caminhavamos pelos bosques no relento da noite escura, apanhando plantas para preparados mágicos. Minha mãe era feiticeira, talvez nem tenha partido, talvez eu tenha partido no lugar dela e ela encarnado meu corpo para voltar a amar meu pai. Um amor assim não tem fronteiras, não cumpre os requisitos da realidade mundana. Um amor assim não tem fim. 

E num dia mais para a frente no tempo, o filho mais novo, apareceu visitando-a Mãezinha, como me têm batido os remorsos, ninguém tem o direito de julgar nada, mas abandona-la não posso. Porque o amor que sinto por si está acima de qualquer perdão. Ainda na beira da porta, ela abraçou-o de contentamento Tu voltaste Rico, como podias não voltar? Rico, amor mio. O filho não voltou a sair daquela casa e o tempo passou-lhe pelo rosto com a velocidade de uma estrela cadente, em pouco tempo, tinha a face do pai, tal como no dia em que partira. 


V

O menino pendurava-se no avental da mãe pedindo colo. E ela repousando as lágrimas no lugar de dentro por ele, pegava-lhe Meu pequeno tesouro, o teu pai vai voltar um dia, eu sei que vai, não te preocupes. Ele partira numa manhã dizendo que ia apenas à praça e não mais voltara. Para trás deixara-lhe uma dor imensa e um pedido para que contasse ao menino nessa mesma tarde, e em todas as tardes, a história do velho marinheiro sem alma. E todas as tardes ela sentava-o no alpendre e enquanto cozinhava, assim contava, na esperança de que isso o fizesse retornar. 

Estava um velho marinheiro embarcado numa noite de ventos e mar agitado. Ocorre que nessa noite, o velho solitário terá vendido a alma ao diabo na troca da vida eterna. Que desse modo fora salvo e ao chegar a terra uma família terá procurado. Que pela sua casa terá entrado, na sua mesa ter-se-ia sentado e a partir desse dia, o lugar do pai terá tomado. E assim por diante, o velho solitário presenteando ao diabo, almas que possuindo o corpo, seriam suas. Que muitas foram as formas e as gerações que se lhe seguiram, sempre o mesmo rosto, chegando no ponto perfeito de se continuar. Mas o diabo, mestre nas ratoeiras da ambição do homem condenou-o à partida na idade dos trinta, para que mais depressa, outra alma fosse possuída ou concebida, para nas suas mãos acabar colhida. 

E o menino cresceu, mais depressa que a contagem das luas e das marés, cresceu tomando o rosto do pai. E um dia, aproximou-se dela por trás e sussurrou-lhe ao ouvido Lo tuyo es puro teatro, puro teatro. 

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Gambling


mikados de dedos
se revela o medo por dentro
se retiram dos nós do vento
e da boca uma água sem lei
rock me baby, tiger sensei
tal roleta roseta cometa
que Deus a guarde na gaveta!
a alma amarra encarna
entorna e dispara a bala de prata
e diz pára, a valsa que é falsa
que antes era morna e chora
e é isso que nos pula e avança
e nos puxa a alavanca, suga
umas por cima das outras
voltas nódoas de roupa suja
tudo fazendo batota
e piscas o olho, tal judas
hush hush
if you don't stop talking
farei queixa gueixa deixa
que me ferve na orelha
a picareta de uma frase oca
de uma fase pouca, treta
a balada da praia das cadelas
que se fodam as trelas
tudo noites sem estrelas
e silêncios sem maneiras
com efeito,
que ninguém corra
o risco de se ser perfeito
so baby, damn your eyes
gambling my soul
nos abismos do cais






sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Mind Grind


Roubei-te da imagem como se roubam as garças do estuário e a um saco de múltiplos fundos te atirei. Para que fosses único, infinitamente uno. Qual é a tua cor preferida? Quanto medes, o que pensas quando comes, o que sonhas, o que te move quando acordas? 


I



Nesse volteio da rédea de alvoradas fantasmas. O homem de cascos nos pés caminha pelo arvoredo alumiado pelo terceiro olho. Corpos rígidos de madeira, a barreira vertical, paralelismos que contorna sentindo a presença de espíritos ancestrais. Longa noite desde que partira de parte certa para lugar na floresta. Sentindo perto a presença da cabana acelera para chegar de madrugada e bate na porta três vezes. O bater das panelas cessa e escutam-se passos que se aproximam. O homem com cabeça de boi lhe indica o caminho. Entra, a cabana caótica no clarão da lenha que arde parece mais pequena que antes. Senta-se na poltrona e pega numa manta aquecendo as mãos na chama Vejo que tens estado ocupado Malaquias. O outro A que se deve a tua visita? sentando-se a seu lado. Os faunos não precisam de motivos para visitas, eles são o motivo, espreita o que te trouxe no saco. Pegando no pesado saco que se alimentava de movimentos internos Quantos nós deste no saco? Pensativo respondeu Não sei, já somos tantos.
De dentro do saco saltaram pequenos girinos dragões de variadas cores vibrantes que logo se espalharam pela cabana animando a calmaria de antes. Os dois levantaram-se e dançaram à sua volta rindo de contentamento Há quanto tempo que não via dragões, onde os arranjaste fauno? Pegando num deles ao colo, a pequena criatura arfava já espirros de fogo de não querer dono Nos castelos do oeste, uma bruxa que dá pelo nome de Nefrite. Pousando-o no chão São um perigo, sabes disso, roubaste-os! E vens ter comigo com um problema! Os dragões deram pela panela gulosos se encavalitaram engolindo pedaços de tudo ainda fervendo. Malaquias, preciso que os treines, que os comandes, se avistam tempos de batalha e eles serão necessários aos humanos. O outro bateu com o punho no braço da poltrona Não tinhas esse direito, estou velho e pretendo nada mais que retiro. O fauno levantou-se e dirigiu-se à porta É a tua missão, cumpre-a. E partiu novamente em direcção à floresta agora raiada pela manhã, transparecendo à medida que caminhava, desaparecendo detrás de um abeto.
Malaquias ficou embrulhado num dilema sobre o qual nem conseguia cogitar tal era a agitação no interior da cabana. Não havia o que decidir, o fauno falara. Ergueu-se e mugiu batendo no peito e apontando o dedo, onde logo os doze pequenos se alinharam junto à parede Quietos, a vossa primeira lição, parar ao meu comando. E a porta voltou a bater três vezes. Imóveis, as criaturas olhavam para lá expectantes. Abriu Só me faltava agora esta, Uriel que fazes aqui, até estou com receio de perguntar. Ela riu-se e entrou chegando-se aos dragões Senti-lhes o cheiro, tens aqui um pequeno tesouro, o pai deve estar desesperado para vos dar à mão tal brinquedo. É melhor que os leve comigo. Malaquias ergueu o braço e na força da fúria encostou-a à parede entalando-lhe as asas que agonizavam agora as costas Não, tu não passas de uma alma penada corrompida, que se esconde atrás do pai como uma criança fazendo pela calada o que te dá na real gana, não tens responsabilidade para tal, sai. E esticando o braço à porta, atirou-a para fora da cabana violentamente Temos de partir, aqui não estamos seguros. Colectou o necessário e seguido pelas criaturas partiu pela floresta em direcção a norte. Lá estariam outros que o acolheriam e em paz poderia cria-los para a hora certa Não vai ser uma viagem fácil, o mundo estará de olhos postos em nós, para dentro do saco, vamos. 

II

Acordou com vontade de ir à casa de banho Não agora não, aguenta, preciso de lá voltar para continuar.

E fechou os olhos caindo no exacto momento em que Malaquias se debatia com Uriel, que no encalço de um precalço voava em sua volta procurando alcançar o saco das pequenas criaturas assustadas. Uriel estás fora de ti, o pai vai-te castigar severamente, deixa-nos em paz. E sem outra alternativa, na esperança de em tão pouco tempo ter conseguido um vínculo, abriu o saco e deixou-os em liberdade. Sentindo Malaquias em perigo, as doze criaturas formaram um círculo e para fora cuspiram fogo, queimando de imediato as asas agora negras de Uriel, que caindo à terra, chorou de fraqueza e vergonha. Ele correu para longe e os dragões levantaram pela primeira vez, voo atrás dele. Esta havia sido a segunda lição Seguirás o teu guia como quem segue a água num dia de sede. 

Toma esta garrafa, quero ver a que sabe o teu paladar, a que sabe esquecer me na tua boca. Neste último golo, bebe-me de um só trago sem engasgo, sem receios, sem depósito, nos vamos ser Paris que deus fiz. Ne me quitte pas. A interferência de um outro sonho instalou-se e acordou. Foi então à casa de banho. Procurou por água e uma bolachas. Que horas seriam? Não importava, voltaria a adormecer. 

Levando os bagos vermelhos à boca, na esperança de saciar a fome, continuou deixando cair a noite no corpo exausto. As criaturas sentindo o esforço, elevaram-no e carregaram-no até junto de um velho abandonado cemitério, depositando-o sobre uma campa Não meus filhos, aqui não, jaz um homem mau. Levantou-se e procurou pela campa uma outra, mais calma Ficaremos aqui até ser manhã. E adormeceram aconchegando-se, as criaturas de tempos a tempos respiravam e o bafo quase humano era calor. Os espíritos levantaram-se conspirando formas de possessão. Olhos verdes na escuridão. 

Acorda, acorda agora. Não estás seguro Malaquias, acorda. Preciso de algo, algo daqui para levar até aí. Talvez - Olhando em volta pelo quarto iluminado por duas linhas de persiana lá estava o objecto necessário - Uma pequena caixa de cartão.

Despertou com o peso da caixa no seu peito, confuso, abriu-a a medo Um pequeno anjo! deitado num berço de azul mar iluminura, conchas, rabos de peixe e âncoras A minha cor favorita! Já tinha ouvido falar nestas dádivas, feitas por uma artesã humana no vale dos despenteados. Talvez fosse um sinal, do lugar donde se buscam amuletos, talvez lá estivesse até mais seguro que junto dos seus. As criaturas arfavam de ciúme do pequeno anjo que dormia sereno do tamanho de uma mão. Pegou nele e deixou-o planando diante dos seus olhos tocou-lhe. Um rasgo de luz se levantou então como um véu e todos os espíritos se cessaram à terra. Malaquias com delicadeza voltou a coloca-lo na caixa e avançou pelo cemitério fora seguido dos doze. O caminho não levaria agora mais de um resto de noite e um pedaço de manhã. 


III

Era exactamente aí que eu queria chegar, a esse vale, a essa artesã. Já lá havia estado antes e as pequenas caixas enfeitadas da nossa cor preferida, de requinte toque de pequenos pormenores decoradas, onde se deitam pequenos anjos que respiram e aguardam por alguém, anjos da guarda. Pois se já as fazia em criança, só não sabia o propósito. Conseguiu então a ligação necessária, a artesã era ele. Procurou pela única que guardada no fundo de um armário estava. A única dessas caixas que guardara desse tempo, como protótipo molde de algo que viria a ser importante ainda sem o saber. Aqui estás tu, pressinto que te roubei da imagem e que ao abrir esta caixa, não estejas mais aqui, que tenhas seguido pelos sonhos, por outros sonhos que não os meus. E abriu a caixa que se revelou enfim vazia. Mas eu consegui levar a caixa ao Malaquias, talvez consiga lá voltar e trazer uma outra para cá. E nesse intuito voltou a adormecer acompanhando Malaquias para se encontrar consigo mesmo, na pele dela. 

 O vale descia por uma encosta de onde no topo tudo parecia indefinido. Cá em baixo, num balcão a artesã discutia com um cliente que regateava o preço da caixa Não posso baixar o preço, mas é para oferta não é? Qual é a cor preferida dele? De que gosta ele? Malaquias aproximou-se e aguardou a sua vez de ser atendido num cenário que parecia um acampamento de gente nómada. A artesã interrompeu então a conversa Não são permitidos acordados aqui, o que faz aqui? Malaquias não compreendeu a questão e ele percebeu que ela não estava a falar com Malaquias e sim consigo. O chão tremeu então e água começou a surgir-lhe nos pés. 

Não pode ser, não pode ser. Não consigo acordar. São as vozes do inferno que me estão a puxar, mas porquê? Que crime cometi? E um calor medonho tomou conta da sua cabeça transpirando agora em apneia. Malaquias não o havia visto porque antes era ele, e agora em vez de passar a ser ela, havia sido retido pelos infortúnios do subsolo, sem um rosto onírico por onde pudesse fluir. Os acordados não podem lá estar. Mas então como sair dali? O calor expandia-se e sentia já os cabelos a arder, fumando turvando-lhe a vista. Conseguia agora ver todos os outros em sofrimento no flagelo do castigo. E foi assim que Uriel voltou a aparecer, voando sarada. Pegou nele e ascendeu depositando-o novamente no vale dos despenteados. Uriel, que redenção esta? Ela riu-se Meu caro, nada é de graça, para te tirar de lá prometi-lhe mais tarde a tua alma, apenas te ganhei tempo, entretanto como agradecimento e se não quiseres para lá voltar terás de me entregar o saco dos dragões e para isso serás Malaquias. Nesse momento sentiu então a mão pousar no balcão sobre a dele Como é? O que vai ser? A artesã falava com Malaquias. Olhou para o saco e para Uriel que aguardava serena. Encalhado. Aceita trocas? A artesã fitou-o e apontou-lhe para uma placa com o preçario convicta. Ele insistiu Não é uma troca qualquer, o que diz da possibilidade de ser humana acordada, viver a minha vida nessa outra vida e em troca, transformar este saco de dragões em mil caixas de mágicos pequenos anjos, mais poderosos que os outros, mas para sempre, pequenos. Pequenos soldados que nas mãos de Malaquias serão o futuro de todos. A artesã desconfiou Parece-me uma oferta irrecusável mas, com certeza deve ter rasteira. Ele uniu as mãos implorando-lhe de confiança Acredite em mim, quem paga a fatura sou eu. Ela pegou então no saco de dragões e com múltiplos braços trabalhando a todo o vapor transformou-o em mil caixas. Uriel enfureceu-se Tu escolheste. Ficarás para sempre no Inferno. E retirando-o do corpo de Malaquias atirou-o ao subsolo, às entranhas das mãos do demónio.

IV

A artesã acordou na pele dele, na cama dele, na vida dele. Tinha em si o condão de compor as caixas para os acordados. Malaquias do outro lado, levara o exército semeando-o e deixando-o ao cuidado de cada criatura sobrenatural para que fossem protegidas e ele, retido nas entranhas, sofrendo, soube, que nunca mais dali sairia mas que todos os outros poderiam continuar a sonhar. Restava-lhe como consolo, recordar pequenos excertos de outros momentos congelados no tempo do sonho já sonhado. Nesse volteio da rédea de alvoradas fantasmas.

Toma esta garrafa, quero ver a que sabe o teu paladar, a que sabe esquecer me na tua boca. Neste último golo, bebe-me de um só trago sem engasgo, sem receios, sem depósito, nos vamos ser Paris que deus fiz. Ne me quitte pas.

E a pergunta do porquê fê-la um dia ao demónio donde lhe respondeu satisfeito Porque interferiste com o meu plano. O homem que não sonha, não está perto de Deus, logo, é meu. 

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Compendium de Ser



I


O vaso onde aterra e à semente deposita o gesto de uma alma, que cresce e se deixa fluir. Mecânica a floresta urbana onde as flores não são flores, ao invés, pedaços de árvore, incompletas ou uma parte. É a geometria desta mestria que acorda e se perdoa. Porque tinha de ser assim não é? E mais um braço, e mais uma porta e mais uma boca e mais uma corda. E se move alimento. Como seria sem nós? Os gaios e as gazelas, as girafas e as aguarelas. Sem voz, no vazio de um rugido surdo. Ecos de uma presença ausente mas que está lá, por toda a parte. 


Voou por cima dos telhados, trepando, saltando, correndo mais depressa que a própria voz. Não sinto nada e ao mesmo tempo sinto tudo dentro de mim como se de mim não viesse. A corda de um violino gemendo de elevação, ergueu os braços e deixou-se cair de pé. Para chegar à terra alguém. 
Pingos de chuva caindo vorazes. Competindo um corpo em queda livre e livre. Abrandou tocando de leve no alcatrão sentindo enfim a verticalidade do eixo. Hoje sou. De não saber quem, tudo tinha ao seu dispor, a hegemonia da escolha do amor pelo ser.
A página em branco é a melhor sensação de estar vivo. Por isso ponderou a partir desse momento cada passo, cada avenida, cada lugar, porque a partir daí seriam seus. E começou a andar em consciência plena. Atento, alerta, sentinela dos contornos e das fronteiras, do espaço que os seus olhos construíam dos objectos que se erguiam.
E ao chegar a uma grande praça, o encontrão de quem sem jeito passa, sentiu a necessidade de uma carapaça. Talvez uma armadura de uma malha de nuas peles, de cada um a estátua, todos em si a fonte. Só porque dessa forma seria mais seu, o apropriar de tudo. E das finas formas de dentro, camadas, cobertores, vestes e capas de super homem, de lobo mau, de cavaleiro e rei do mundo inteiro. Mas o rei vai nu.
Desculpe, gostaria de saber o meu nome. Seria possível indicar-me o meu nome? 
Entrando numa biblioteca, percorreu o espaço olhando depositadas em silêncio as campas do pensamento. Sobre uma mesa e um candeeiro, abriu um livro ao acaso. Que personagem serás tu? Fala-me de ti.  Absorvendo degustando cada palavra encadeada. Numa sequência elaborada, o antes e o depois seguro de rédeas métricas. E levantou-se, subiu a mesa e soletrou bem alto letras dispersas, soltando agora suas as palavras aprisionadas. Seguindo o exemplo do poeta. Tomando-lhe o rosto, aprendendo com ele a dor da ausência de dentro.


II

De regresso à fonte parou no espelho de água. Então foi este o rosto que me deste? Serei homem ou mulher? Serei novo ou velho? Serei bom ou mau? E apenas chorou, contribuindo para a queda dos veios vaporizados que continuamente se renovam sendo eles mesmos. Voltou a olhar no espelho e do seu corpo se desfez um outro. Gémeos? Eram agora dois de mãos dadas refletidos. Para que não me sinta só. Refratando-se na mágica presença de dois de uma só placenta. Sabes para onde vamos? E o outro sorriu de ironia Ninguém sabe, parece que a sabedoria ficou toda do meu lado e do teu, a inocência. Pela primeira vez se confrontou com a estranheza Pensei que fossemos um só.  O outro olhou-o com compaixão Talvez esteja na hora de escolhermos nomes para nós. E a estranheza deu lugar a um remoinho sem nome que vinha do ventre Mas somos nós que escolhemos? E começando a caminhar respondeu-lhe Anda, caminharemos lado a lado, num um atrás nem outro à frente, sim no nosso caso, escolhemos. Somos únicos, não percebes?

Na confiança do outro sentiu o chão mais terreno a seus pés Nesse caso, gostaria de ser Bela. E parando diante de uma montra de figurinos alongados desejou vestir-se E tu? O outro acariciando o queixo onde crescia agora uma penugem que engrossava chegando-lhe ao pescoço disse Se já escolheste o sexo, resta-me ser homem, serei Gabriel. Saindo vestidos de pessoas, a caminhada parecia agora mais suave, como se fossem apenas mais dois entre os outros. Precisamos de uma tarefa, é isso que fazem os outros por aqui, o que gostarias de fazer? Bela andando observava a vida que os outros aparentavam Parecem carregados demais com as suas tarefas, não parecem? Gabriel parou diante de uma venda de rua, uma senhora vendia carcaças e outra ao lado fruta Acho que começo a sentir aquilo que chamam de fome, sim estão mesmo carregados, porque carregam todas as tarefas desde o primeiro momento, muitos não sabem como libertar-se delas, resolve-las. Bela passou a mão pela barriga Fome? Sinto algo parecido mas dentro do peito. Sabes o que é? Gabriel estendeu a mão à senhora e na sua mão apareceram duas moedas que deram lugar a duas carcaças de pão ainda quente. Segura com a tua própria mão, o que sentes? Ela levou o pão quente ao rosto e fechou os olhos Algo como um conforto morno que me acalma. Desviou as suas mãos e levou a boca dele à dela, beijando-a. E agora? O que sentes? Ela entregou-se e ao ouvido dele disse Sinto o corpo todo a arder. Gabriel afastou-se Talvez seja por isso que fomos criados dois, anda, temos de encontrar a nossa tarefa. 


III


A noite foi caindo e a caminhada passou por uma rua de boémios entreténs, Bela absorvida pela música que escorregava pelas paredes. Uma porta se abriu para entrarem dois homens e ela viu uma rapariga quase nua dançando num varão de clarões vermelhos Gabriel, acho que gostaria de aprender a dançar assim. Mas Gabriel estava absorvido com outros dois homens que conversavam dialécticos segurando copos de bebida Eu quero aprender a falar assim, serei messias. Amanhã começaremos a aprender os nossos ofícios. 
Junto ao rio procuraram por um abrigo deserto para passarem a noite. As luzes da cidade desmaiavam na água e a lua iluminava a copa celestial estrelada. Bela deitou a cabeça dela sobre o peito dele Serás tu o mais forte? Sinto necessidade de me encolher dentro de ti para descansar, foi um dia muito intenso. Já te perguntaste porque estamos aqui? Gabriel penteou-lhe os cabelos com os dedos Recordas-te de alguma coisa antes da queda? Ela procurou na memória mas a brancura de nada foi tudo o que encontrou Tu recordas? Ele apertou-a com mais força beijando-lhe a testa Eu vim de ti, depois, lembras-te? Bela fechou os olhos e embalando-se adormeceu no cansaço terreno. 

Acordaram com um enorme contentor que levantava voo para ser empilhado numa torre de outros tantos. A vida do cais acordara bem cedo. Gabriel abriu os olhos Acorda, está na hora de começar. Bela de um rasgo para a realidade demasiado rápido espreguiçando-se Na hora? E como vamos faze-lo? Calmamente ele compôs a roupa Iremos para uma escola, é lá que eles aprendem os ofícios deles. Bela impacientou-se Com eles? Estarei em contacto com eles agora? Já? Não sei se sei agir como eles, e se eles percebem que não somos iguais? Gabriel levantou-a e ergueu-a no ar, em rodopio de contentamento É essa magia, apaixona-te pela apropriação do movimento, pela partilha e rotação do teu corpo, abre os braços e dança Bela, dança no espaço desenhando emoção. Bela abria os braços de felicidade abrindo o peito ao céu Gabriel, como tudo é tão belo desde que te criei...Gabriel que nausea tão encantadora. 
E deitando-a no colo para leva-la à vertical Mas iremos sozinhos Bela, separados, depois à noite voltaremos a ver-nos aqui. Foi como se um espeto se tivesse cravado em toda a sua coluna e o medo se instalasse petrificando os seus membros Sozinha? Mas...eu pensei que nunca nos separássemos...
Não, Bela, a nossa experiência é individual, a nossa tarefa é única, uma para cada um. Por isso somos diferentes. Mas no final do dia eu estarei aqui e tu estarás aqui comigo. E viveremos outras experiências juntos, fomos assim concebidos.

Bela não queria viver esse momento, sentia que apenas uma parte de si iria com ela. Como se caminhasse apenas com uma perna. Mas Gabriel despediu-se indicando-lhe o caminho. Ficou ainda por momentos em desalento, faltava-lhe a coragem para ser. Quando caíra não sabia o que era ter alguém para partilhar a caminhada, não sabia sequer que era possível existir dessa forma. E agora, depois de criar Gabriel, sentia-se mais frágil. Ocorreu-lhe que nessa presença estariam todas as suas falhas, todas as suas rupturas futuras. Que estando sozinha, seria mais forte. Mas Gabriel era parte de si, como podia deixa-lo para trás? E como tudo para ele era tão simples e definido? Porque tinha ele tantas certezas? Talvez não tivesse, talvez apenas o demonstrasse. Bela inspirou fundo e procurou no movimento de uma gaivota o molde para que os seus braços aprendessem a erguer-se de novo, sozinhos. E dançarei, dançarei como nenhuma outra criatura viva, com a paixão do voo de um ser livre. E à noite regressarei aos braços dele. 

IV

Gabriel entrou pela sala com a confiança de um elefante e sentou-se na linha da frente. Com garras de fome engoliu todas as palavras enchendo o peito de manhas e as mãos de lúdicas farsas. Quando a aula terminou juntou-se aos outros e começou o discurso elevando o punho Aos homens cabe a tarefa de Deus aqui na terra. Os outros franziram o sobrolho desconfiados mas Gabriel continuou extasiado A cada um um desígnio, a cada um um destino e a todos um só caminho, o da iluminação da alma. Como uma escada, degrau a degrau a descoberta da tarefa finita que outros continuarão em vida. Elevando-se o espírito da vontade, erguidos os braços em liberdade. Quando proferiu a palavra liberdade uma chama se acendeu no olhar dos outros e a voz dele cresceu com ela. E muito em breve era seguido por muitos pelos claustros saindo para a rua. Gritavam em uníssono À Liberdade, em consciência a vida é nossa, nossa! Sejamos poucos, sejamos mais, sejamos todos, que a voz tem a força de uma só corda, a glória! Acorda! 
A multidão foi escalando e despertando a atenção de quem nem sabia o que se passava mas que se juntava só porque a energia era contagiante. Mas como ela veio também o distúrbio, a destruição que com pedras atiradas ao acaso levou à intervenção de forças de contenção. Gabriel já não era a voz comandante, estava agora no chão, atropelado pela confusão em desespero de falta de controlo. Perdido e espezinhado gatinhou afastando-se olhando para trás o caos criado. Deitou as mãos à cabeça e chorou de tristeza. Regressou ao cais e esperou por Bela com toda a desilusão pesando sobre a sua consciência. Como teria sido o dia de Bela?

Bela entrou pela sala com a delicadeza de uma gazela. Sentou-se no chão atrás de todos. Alguém explicava o exercício que se seguiria. Imaginar que estamos debaixo de terra, soterrados e que nos queremos libertar para respirar, para chegar à superfície. Imaginar a força do peso do que nos prende, nos sufoca e escavar, com toda a nossa vontade escavar para respirar. Bela deitou-se para trás olhando as luzes da sala e olhou para o lado, com o ouvido colado ao chão. Lá estava o espelho e a imagem de Gabriel caindo-lhe ao ouvido Fecha os olhos e sente. E dançou, movendo-se, o corpo se espalhando pelo chão, raiando como estrela, enrolado, desenrolando como concha e respirando vida.  Terminou a aula com as palavras O caminho é longo, a disciplina necessária e a força para resistir à frustração dos nossos próprios limites essencial, mas a chegada é glorificante, o encontro com a satisfação da elevação extasiante e quando consegue chegar aos outros, contagiante. Regressou ao cais cansada mas feliz e desejosa de partilhar com Gabriel o seu dia, como teria sido o dia de Gabriel?


V

O vaso onde aterra e à semente deposita o gesto de uma alma, que cresce e se deixa fluir.

Nos braços dele se encontrou enfim, escutando o choro miúdo que lhe chegava da alma Gabriel o que se passou? Gabriel ajoelhou-se e com toda a tristeza do mundo confessou Eu errei, os homens não precisam de messias, precisam de guias. Não precisam da liberdade, precisam de significado. De um sentido para existirem, e eu não sei o meu, como posso proferir a palavra do deles? 
Bela ficou pensativa, na verdade durante o seu dia se deixara fluir no encargo de uma tarefa de pesquisa, talvez bem mais simples, talvez a simplicidade fosse a resposta Gabriel tu vieste de mim, tens em ti a força e a coragem que eu não tenho, mas tal como no movimento, é preciso canalizar as nossas energias para escutar o que vem de dentro e no momento certo e na forma certa, existi-lo. Tu só precisas de encontrar a medida certa para que as tuas palavras cheguem aos outros na forma perfeita, para que sejas o braço da força que os liberta e o abraço da força que os contém. E agora por favor, abraça-me, quero conhecer o que é isso do sexo.