quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Que me extrañas con tus ojos




Que me extrañas con tus ojos
Te creo

I

Pousou o copo sobre a mesa de tudo o que poderia dizer-te, neste momento só sei que o meu corpo te deseja. E meteu o garfo à boca com o último pedaço de rosbife apanhando uma batata assada. Os três olharam para si atentos na esperança de terem licença para se levantarem da mesa. Ele voltou a olha-la pensando o meu corpo te deseja. Ela devolveu-lhe o pensamento Tu és infinito nos teus beijos, nos teus braços. E os três pequenos aproveitando o momento de ausência, levantaram-se e em pés de lã se retiraram. Ele levantou-se pegou na mão dela e levou-a ao gira-discos, pousou a agulha e tocou pela sala a melodia de sempre. Lo tuyo es puro teatro segredou-lhe ao ouvido. 

Depois ficaram por ali, abraçados pelos espíritos da casa e a tarde de domingo se foi instalando. Os pequenos regressaram com uma cassete pedindo ao pai para que a colocasse e sentaram-se no sofá empurrando os cotovelos para o melhor lugar. A mãe regressou à cozinha e o pai seguiu para o quarto, procurava nas gavetas por algo. Terminando a loiça ela foi ter com ele Que procuras Rico? Ele voltou-se para ela pensativo, Não sei. Aproximou-se tocando-lhe no rosto Como não sabes? E olhando-o nos olhos por um momento ele acenou com a cabeça Sim. Sentando-se na cama ela chorou Já? Mas estavas tão bem aqui...Porquê já? 


Saiu do quarto limpando as lágrimas no lenço guardado no avental e compondo-se sentou-se ao lado dos filhos olhando a televisão que passava um filme de animação. Hoje é domingo. O mais velho olhou para a mãe e abraçou-se a ela Que saudades dele. Os outros dois perceberam e correram aos braços da mãe também Pronto, chega, vamos animar, vou fazer pipocas para todos. Na cozinha procurou pela panela e deitando à mão o milho sentiu um aperto no coração Como pudeste? Já faz um ano, como pudeste? E o milho batia agora de zanga contra as paredes de aço não querendo abrir. 


II

Ás vezes conto os dedos dos pés para ver se tenho algum a mais, é assim há sessenta anos. E pincelava de vermelho sangue cada unha. Cruzou as pernas esperando que secasse bebendo da caneca o café ainda quente. Ainda assim, depois de tudo, a minha boa notícia vinda da perícia de Deus é que estou por aqui, ainda, mas será essa uma boa notícia? E dançava pela sala sozinha, os braços querendo abraçar um outro ausente no conforto da melodia que a seduzia. Cantarolava You told me love was to plebeian. A máquina da roupa dava sinal de ter terminado, abriu a porta e retirou de lá de dentro as peças ainda húmidas Como pode ser? Que faz isto aqui? Era a camisola preferida dele, aquela que usava sempre por casa, no conforto dos dias em que não trabalhava. Há anos que não lhe punha a vista em cima, tempos depois de tudo havia guardado todas as coisas dele numa caixa no sótão. E nunca mais lhe tocara. Como se a distância dos objectos ajudasse no esquecimento nunca conseguido, bastava olhar para os filhos, que lhes via algo muito dele, uma palavra, uma disposição, uma posição, uma história. Afinal eles eram e seriam sempre metade ele. 

Há um silencio estranho nesta casa, como se todos os espíritos se tivessem sossegado e nesse silêncio há a escolha de não mais falar contigo. E atirou a camisola para o fundo de uma gaveta onde guardava roupa que raramente usava Não quero mais a tua ausência por perto.  

Quando era pequena, a varanda do meu quarto tocava a copa de uma árvore gigante e eu achava que podia saltar agarrando-me a ela e descer por aí. Mas eram apenas as folhas que chegavam até mim, demasiado frágeis para o peso do meu corpo. Tocava-lhes sentindo o veludo do seu respirar desejando saltar. Avistava assim a lua, o castelo iluminado lá no alto, os pátios da frente onde esperavam as bolas e os telhados onde se roubavam beijos numa brinca de esconde apanha. Depois, um dia, alguém cortou todas essas madres gigantes da avenida para plantar laranjeiras, dizendo que as raízes estavam levantando o soalho do alcatrão. Nesse dia, toquei-lhe pela última vez, respirei da sua pele viva um último adeus. E ela caiu, adivinhado a queda dos meus dias futuros. 
Mãe, o que faz aí na janela há tanto tempo? Venha sentar-se connosco à mesa, já estamos todos. Todos os três e as suas esposas e os seus filhos, que por sua vez haviam chegado dando lugar ao novo. Olhava o tempo, filho, que se mede pelo nosso envelhecimento. As laranjeiras adoeceram e hoje não há senão lugares de estacionamento. Eu nasci nesta casa, tal como vocês nasceram, no quarto que já da minha avó fora. Esta casa é demasiado grande só para mim, creio que é hora de me mudar para uma mais pequena e algum de vós venha para aqui. O filho mais velho indignou-se Nem pensar nisso, se a mãe precisa de alguém que venha tomar conta de si nós providenciamos mas retira-la desta casa nem pensar. Aqui nasceu, aqui repousará mãezinha. Olhando uma última vez pela janela caminhou para a sala de jantar Porque não saltei?...

III

Ao canto da sala o pinheiro de natal iluminado, Mãe este ano sou eu quem leva a estrela ao topo, não é assim? Todos os anos as tradições se mantinham por teimosia dos filhos e um certo alento lhe combatia ou adiava a morte por dentro. O filho que leva a estrela ao topo tem direito a pedir um desejo aos outros para o ano seguinte. Já lá ia o tempo das trocas e empréstimos dos carrinhos e dos soldadinhos, agora pedia-se saúde, amor ou por brincadeira uma máquina de cortar a relva. E o mais novo pegou então na estrela branca pontiaguda e empoleirou-se no grande pinheiro, colocando-a solenemente. E assim como subiu, desceu encolhendo-se apertando o peito de dor. Todos se levantaram Depressa chamem ajuda. Ele estendeu o braço contendo-os Não, é só um pressentimento muito forte, já vai passar. De todos, ele fora o único a herdar a visão do avô, o pai da mãe. Dizia-se que saltava de geração em geração, este dom ou castigo de ver para além do vivo. E num sopro de nevão de fora, a janela da sala se abre e o filho olha para lá atormentado Pai!
Os outros nada viram e por isso, o mais velho correu à janela fechando-a do frio, Mãe tenha calma, a mãe já sabe como ele é, não é ninguém, tenha calma. Ela chorava alucinada pelo desejo. Mas o filho mais novo continuava a vê-lo, entrara, sentara-se à mesa no seu lugar habitual e sorria com pesar de saudade. O pai ergueu o copo e fez o brinde que lhe era habitual, depois levantou-se e saiu subindo as escadas ao quarto dele. Estava procurando algo numa gaveta quando o filho mais novo entrou Pai, o que procura? Ele olhou-o parado e acenou com a cabeça com o olhar mais triste de sempre abocanhando as roupas que se espalhavam no chão Todo este tempo eu quis regressar e não podia, não podia, como podia? E do fundo da gaveta, retirou então um retrato, uma criança menina mostrando-o ao filho Era a tua mãe em pequena. Não compreendendo Mas que importância tem isso agora pai? Desesperado atirou-se de joelhos ao chão Perdoa-me por favor, que me perdoem todos pela insanidade que cometi, que me perdoem por favor. Eu sou...vosso pai e vosso avô...quando vos vi crescer percebi que um dia a verdade se saberia e não podia mais continuar aqui, embarquei-me nesse mesmo dia e desapareci. Faleci hoje de manhã, sozinho e amargurado de culpa. 
O filho virou costas e desceu a correr voltando à sala Mãe, tu sabias, porquê? O horror da verdade instalou-se no rosto dela É tudo um teatro, um teatro...e caiu redonda no chão. 

IV

 Depois desse dia, os filhos não mais visitaram a mãe e pela casa perfumava-se um odor de loucura e desespero. Ela não o podia ver mas sabia que ele lá estava, retido na culpa do não perdão dos vivos. Mas voltara a falar-lhe e passou à rotina de dois, dois pratos na mesa, dois travesseiros na cama, dois copos na lareira. Consciente do dano que causara esse amor proibido, de dia para dia definhava na escuridão. Não abria as janelas e uma vida fictícia tomava o lugar do suplício de continuar viva. Começou então a imaginar formas de colocar fim a tudo, já nem pelos filhos era digna. Ninguém podia entender, ela mesma desencarnara o papel de filha para ser esposa, no dia em que a mãe falecera era ainda uma menina de colo. Começando a cuidar do pai, filha única, e o pai rejuvenescendo de dia para dia, como que por um milagre, até que bateram os dois na mesma idade e nesse dia, sucedeu-se a tragédia da concepção. 
Há muita coisa Rico que não consigo explicar-lhes, sei que o tempo para ti funcionou ao contrário e que nos apanhou nas teias do imaginário, donde me vias minha mãe e eu não mais meu pai. Algo de muito perverso se sucedeu aqui, mas tenho a certeza de não ter sido obra só nossa. Mas quem poderia entender tal? Continuo a odiar-te, desesperadamente a amar-te nesse ódio, porque tinhas de partir? Porque me deixaste a mim com todo este peso de continuar esta mentira? Não tinhas esse direito, não tinhas. 

Minha mãe contava-me histórias ao luar, histórias de encantar e arrepiar. Depois caminhavamos pelos bosques no relento da noite escura, apanhando plantas para preparados mágicos. Minha mãe era feiticeira, talvez nem tenha partido, talvez eu tenha partido no lugar dela e ela encarnado meu corpo para voltar a amar meu pai. Um amor assim não tem fronteiras, não cumpre os requisitos da realidade mundana. Um amor assim não tem fim. 

E num dia mais para a frente no tempo, o filho mais novo, apareceu visitando-a Mãezinha, como me têm batido os remorsos, ninguém tem o direito de julgar nada, mas abandona-la não posso. Porque o amor que sinto por si está acima de qualquer perdão. Ainda na beira da porta, ela abraçou-o de contentamento Tu voltaste Rico, como podias não voltar? Rico, amor mio. O filho não voltou a sair daquela casa e o tempo passou-lhe pelo rosto com a velocidade de uma estrela cadente, em pouco tempo, tinha a face do pai, tal como no dia em que partira. 


V

O menino pendurava-se no avental da mãe pedindo colo. E ela repousando as lágrimas no lugar de dentro por ele, pegava-lhe Meu pequeno tesouro, o teu pai vai voltar um dia, eu sei que vai, não te preocupes. Ele partira numa manhã dizendo que ia apenas à praça e não mais voltara. Para trás deixara-lhe uma dor imensa e um pedido para que contasse ao menino nessa mesma tarde, e em todas as tardes, a história do velho marinheiro sem alma. E todas as tardes ela sentava-o no alpendre e enquanto cozinhava, assim contava, na esperança de que isso o fizesse retornar. 

Estava um velho marinheiro embarcado numa noite de ventos e mar agitado. Ocorre que nessa noite, o velho solitário terá vendido a alma ao diabo na troca da vida eterna. Que desse modo fora salvo e ao chegar a terra uma família terá procurado. Que pela sua casa terá entrado, na sua mesa ter-se-ia sentado e a partir desse dia, o lugar do pai terá tomado. E assim por diante, o velho solitário presenteando ao diabo, almas que possuindo o corpo, seriam suas. Que muitas foram as formas e as gerações que se lhe seguiram, sempre o mesmo rosto, chegando no ponto perfeito de se continuar. Mas o diabo, mestre nas ratoeiras da ambição do homem condenou-o à partida na idade dos trinta, para que mais depressa, outra alma fosse possuída ou concebida, para nas suas mãos acabar colhida. 

E o menino cresceu, mais depressa que a contagem das luas e das marés, cresceu tomando o rosto do pai. E um dia, aproximou-se dela por trás e sussurrou-lhe ao ouvido Lo tuyo es puro teatro, puro teatro. 

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