Que me extrañas con tus ojos
Te creo
I
Pousou o copo sobre a mesa de tudo o que poderia dizer-te, neste momento só sei que o meu corpo te deseja. E meteu o garfo à boca com o último pedaço de rosbife apanhando uma batata assada. Os três olharam para si atentos na esperança de terem licença para se levantarem da mesa. Ele voltou a olha-la pensando o meu corpo te deseja. Ela devolveu-lhe o pensamento Tu és
infinito nos teus beijos, nos teus braços. E os três pequenos aproveitando o momento
de ausência, levantaram-se e em pés de lã se retiraram. Ele levantou-se pegou
na mão dela e levou-a ao gira-discos, pousou a agulha e tocou pela sala a
melodia de sempre. Lo
tuyo es puro teatro segredou-lhe
ao ouvido.
Depois ficaram por ali, abraçados pelos espíritos da casa e a tarde de domingo
se foi instalando. Os pequenos regressaram com uma cassete pedindo ao pai para
que a colocasse e sentaram-se no sofá empurrando os cotovelos para o melhor
lugar. A mãe regressou à cozinha e o pai seguiu para o quarto, procurava nas
gavetas por algo. Terminando a loiça ela foi ter com ele Que procuras Rico? Ele voltou-se para ela pensativo, Não sei. Aproximou-se
tocando-lhe no rosto Como não
sabes? E olhando-o nos olhos
por um momento ele acenou com a cabeça Sim. Sentando-se na cama ela chorou Já? Mas estavas tão bem
aqui...Porquê já?
Saiu do quarto
limpando as lágrimas no lenço guardado no avental e compondo-se sentou-se ao
lado dos filhos olhando a televisão que passava um filme de animação. Hoje é domingo. O mais velho olhou para a mãe e
abraçou-se a ela Que saudades
dele. Os outros dois
perceberam e correram aos braços da mãe também Pronto, chega, vamos animar, vou
fazer pipocas para todos. Na
cozinha procurou pela panela e deitando à mão o milho sentiu um aperto no
coração Como pudeste? Já faz
um ano, como pudeste? E o
milho batia agora de zanga contra as paredes de aço não querendo abrir.
II
Ás vezes conto
os dedos dos pés para ver se tenho algum a mais, é assim há sessenta anos. E pincelava de vermelho sangue cada unha. Cruzou as pernas
esperando que secasse bebendo da caneca o café ainda quente. Ainda assim, depois de tudo, a
minha boa notícia vinda da perícia de Deus é que estou por aqui, ainda, mas
será essa uma boa notícia? E dançava pela sala sozinha, os braços
querendo abraçar um outro ausente no conforto da melodia que a seduzia.
Cantarolava You told me love
was to plebeian. A máquina da
roupa dava sinal de ter terminado, abriu a porta e retirou de lá de dentro as
peças ainda húmidas Como pode
ser? Que faz isto aqui? Era a
camisola preferida dele, aquela que usava sempre por casa, no conforto dos dias
em que não trabalhava. Há anos que não lhe punha a vista em cima, tempos depois
de tudo havia guardado todas as coisas dele numa caixa no sótão. E nunca mais
lhe tocara. Como se a distância dos objectos ajudasse no esquecimento nunca
conseguido, bastava olhar para os filhos, que lhes via algo muito dele, uma
palavra, uma disposição, uma posição, uma história. Afinal eles eram e seriam
sempre metade ele.
Há um silencio estranho
nesta casa, como se todos os espíritos se tivessem sossegado e nesse silêncio
há a escolha de não mais falar contigo. E atirou a camisola para o fundo de uma
gaveta onde guardava roupa que raramente usava Não quero mais a tua ausência por
perto.
Quando era
pequena, a varanda do meu quarto tocava a copa de uma árvore gigante e eu
achava que podia saltar agarrando-me a ela e descer por aí. Mas eram apenas as
folhas que chegavam até mim, demasiado frágeis para o peso do meu corpo.
Tocava-lhes sentindo o veludo do seu respirar desejando saltar. Avistava assim
a lua, o castelo iluminado lá no alto, os pátios da frente onde esperavam as
bolas e os telhados onde se roubavam beijos numa brinca de esconde apanha.
Depois, um dia, alguém cortou todas essas madres gigantes da avenida para
plantar laranjeiras, dizendo que as raízes estavam levantando o soalho do
alcatrão. Nesse dia, toquei-lhe pela última vez, respirei da sua pele viva um
último adeus. E ela caiu, adivinhado a queda dos meus dias futuros.
Mãe, o que faz
aí na janela há tanto tempo? Venha sentar-se connosco à mesa, já estamos todos. Todos os três e as suas esposas e os seus filhos, que por
sua vez haviam chegado dando lugar ao novo. Olhava
o tempo, filho, que se mede pelo nosso envelhecimento. As laranjeiras adoeceram
e hoje não há senão lugares de estacionamento. Eu nasci nesta casa, tal como
vocês nasceram, no quarto que já da minha avó fora. Esta casa é demasiado
grande só para mim, creio que é hora de me mudar para uma mais pequena e algum
de vós venha para aqui. O
filho mais velho indignou-se Nem
pensar nisso, se a mãe precisa de alguém que venha tomar conta de si nós
providenciamos mas retira-la desta casa nem pensar. Aqui nasceu, aqui repousará
mãezinha. Olhando uma última
vez pela janela caminhou para a sala de jantar Porque não saltei?...
III
Ao canto da sala o
pinheiro de natal iluminado, Mãe
este ano sou eu quem leva a estrela ao topo, não é assim? Todos os anos as tradições se
mantinham por teimosia dos filhos e um certo alento lhe combatia ou adiava a
morte por dentro. O filho que leva a estrela ao topo tem direito a pedir um
desejo aos outros para o ano seguinte. Já lá ia o tempo das trocas e
empréstimos dos carrinhos e dos soldadinhos, agora pedia-se saúde, amor ou por
brincadeira uma máquina de cortar a relva. E o mais novo pegou então na estrela
branca pontiaguda e empoleirou-se no grande pinheiro, colocando-a solenemente.
E assim como subiu, desceu encolhendo-se apertando o peito de dor. Todos se
levantaram Depressa chamem
ajuda. Ele estendeu o braço
contendo-os Não, é só um pressentimento muito forte, já vai passar. De todos, ele fora o único a
herdar a visão do avô, o pai da mãe. Dizia-se que saltava de geração em
geração, este dom ou castigo de ver para além do vivo. E num sopro de nevão de
fora, a janela da sala se abre e o filho olha para lá atormentado Pai!
Os outros nada
viram e por isso, o mais velho correu à janela fechando-a do frio, Mãe tenha calma, a mãe já sabe como
ele é, não é ninguém, tenha calma. Ela
chorava alucinada pelo desejo. Mas o filho mais novo continuava a vê-lo,
entrara, sentara-se à mesa no seu lugar habitual e sorria com pesar de saudade.
O pai ergueu o copo e fez o brinde que lhe era habitual, depois levantou-se e
saiu subindo as escadas ao quarto dele. Estava procurando algo numa gaveta
quando o filho mais novo entrou Pai,
o que procura? Ele olhou-o
parado e acenou com a cabeça com o olhar mais triste de sempre abocanhando as
roupas que se espalhavam no chão Todo
este tempo eu quis regressar e não podia, não podia, como podia? E do fundo da gaveta, retirou
então um retrato, uma criança menina mostrando-o ao filho Era a tua mãe em pequena. Não compreendendo Mas que importância tem isso agora
pai? Desesperado atirou-se de
joelhos ao chão Perdoa-me por
favor, que me perdoem todos pela insanidade que cometi, que me perdoem por
favor. Eu sou...vosso pai e vosso avô...quando vos vi crescer percebi que um
dia a verdade se saberia e não podia mais continuar aqui, embarquei-me nesse
mesmo dia e desapareci. Faleci hoje de manhã, sozinho e amargurado de
culpa.
O filho virou
costas e desceu a correr voltando à sala Mãe,
tu sabias, porquê? O horror
da verdade instalou-se no rosto dela É
tudo um teatro, um teatro...e caiu redonda no chão.
IV
Depois desse
dia, os filhos não mais visitaram a mãe e pela casa perfumava-se um odor de
loucura e desespero. Ela não o podia ver mas sabia que ele lá estava, retido na
culpa do não perdão dos vivos. Mas voltara a falar-lhe e passou à rotina de
dois, dois pratos na mesa, dois travesseiros na cama, dois copos na lareira.
Consciente do dano que causara esse amor proibido, de dia para dia definhava na
escuridão. Não abria as janelas e uma vida fictícia tomava o lugar do suplício
de continuar viva. Começou então a imaginar formas de colocar fim a tudo, já
nem pelos filhos era digna. Ninguém podia entender, ela mesma desencarnara o
papel de filha para ser esposa, no dia em que a mãe falecera era ainda uma
menina de colo. Começando a cuidar do pai, filha única, e o pai rejuvenescendo de
dia para dia, como que por um milagre, até que bateram os dois na mesma idade e
nesse dia, sucedeu-se a tragédia da concepção.
Há muita coisa
Rico que não consigo explicar-lhes, sei que o tempo para ti funcionou ao
contrário e que nos apanhou nas teias do imaginário, donde me vias minha mãe e
eu não mais meu pai. Algo de muito perverso se sucedeu aqui, mas tenho a
certeza de não ter sido obra só nossa. Mas quem poderia entender tal? Continuo
a odiar-te, desesperadamente a amar-te nesse ódio, porque tinhas de partir?
Porque me deixaste a mim com todo este peso de continuar esta mentira? Não
tinhas esse direito, não tinhas.
Minha mãe
contava-me histórias ao luar, histórias de encantar e arrepiar. Depois
caminhavamos pelos bosques no relento da noite escura, apanhando plantas para
preparados mágicos. Minha mãe era feiticeira, talvez nem tenha partido, talvez
eu tenha partido no lugar dela e ela encarnado meu corpo para voltar a amar meu
pai. Um amor assim não tem fronteiras, não cumpre os requisitos da realidade
mundana. Um amor assim não tem fim.
E num dia mais para
a frente no tempo, o filho mais novo, apareceu visitando-a Mãezinha,
como me têm batido os remorsos, ninguém tem o direito de julgar nada, mas
abandona-la não posso. Porque o amor que sinto por si está acima de qualquer
perdão. Ainda na beira da
porta, ela abraçou-o de contentamento Tu
voltaste Rico, como podias não voltar? Rico, amor mio. O filho não voltou a sair daquela
casa e o tempo passou-lhe pelo rosto com a velocidade de uma estrela cadente,
em pouco tempo, tinha a face do pai, tal como no dia em que partira.
V
O menino
pendurava-se no avental da mãe pedindo colo. E ela repousando as lágrimas no
lugar de dentro por ele, pegava-lhe Meu
pequeno tesouro, o teu pai vai voltar um dia, eu sei que vai, não te preocupes. Ele partira numa manhã dizendo que
ia apenas à praça e não mais voltara. Para trás deixara-lhe uma dor imensa e um
pedido para que contasse ao menino nessa mesma tarde, e em todas as tardes, a
história do velho marinheiro sem alma. E todas as tardes ela sentava-o no
alpendre e enquanto cozinhava, assim contava, na esperança de que isso o
fizesse retornar.
Estava um velho
marinheiro embarcado numa noite de ventos e mar agitado. Ocorre que nessa
noite, o velho solitário terá vendido a alma ao diabo na troca da vida eterna.
Que desse modo fora salvo e ao chegar a terra uma família terá procurado. Que
pela sua casa terá entrado, na sua mesa ter-se-ia sentado e a partir desse dia,
o lugar do pai terá tomado. E assim por diante, o velho solitário presenteando
ao diabo, almas que possuindo o corpo, seriam suas. Que muitas foram as formas
e as gerações que se lhe seguiram, sempre o mesmo rosto, chegando no ponto
perfeito de se continuar. Mas o diabo, mestre nas ratoeiras da ambição do homem
condenou-o à partida na idade dos trinta, para que mais depressa, outra alma
fosse possuída ou concebida, para nas suas mãos acabar colhida.
E o menino cresceu,
mais depressa que a contagem das luas e das marés, cresceu tomando o rosto do
pai. E um dia, aproximou-se dela por trás e sussurrou-lhe ao ouvido Lo
tuyo es puro teatro, puro teatro.
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