A valsa.
Quer o abatanado cheio? Sim, por favor. Estava perto da hora de fecho e o dono do café saiu detrás do balcão, apagou a televisão e ligou a aparelhagem donde uma valsa inundou a atenção dos poucos que ainda lá se demoravam. Atirou com o avental para uma mesa vazia e pegou na bacia da patroa e rodopiou-a por entre as mesas, como se fossem colunas de pedra. Ela ria e com mestria correspondia aos passos Manuel, como és louco! Louco por ti minha deusa.
Os clientes no encanto daquela cena, foram delicadamente saindo, deixando o valor da conta no balcão. Numa valsa de ternura, contagiados pela rua. Como são lindos os dois...Não foi ao acaso que ele dera o nome de Passos de Rainha ao café. E era assim há vinte anos. Nunca deixando que aquelas paredes tomassem conta deles. Lembrando todos os dias da verdadeira razão que os tinha levado a abrir o estabelecimento. A única que os mantinha unidos. Numa dança que só pode ser valsada a dois, em sintonia, conhecendo a dimensão de cada pegada, expectativa e medo, no encontro de um ritmo cadenciado por dois. Onde tantos outros falharam.
Um deslize.
Ela saiu também. Triste mas feliz. Nessa possibilidade de se ver num amanhã que deixou de parte, que tantas vezes deixou para mais tarde. No passado lá ficara o par, quantos pares? Quantas valsas dançara sem sequer olhar na cara? E deixou-se levar pelos pés. A passadeira nostálgica deixou-a distraída diante de uma montra de decorações de Natal. E se eu comprasse um enfeite, um pinheiro ou um presépio? Colocou de parte a ideia Não faz sentido, o Natal é um lugar onde se vive uma ideia familiar, não um enfeite para colocar numa parede para onde ninguém vai olhar. Continuou a caminhar pelas ruas atarefadas de pessoas, compras e cachecóis enrolados de pescoços esguios Porque será que nunca estamos confortáveis com o tempo?
E o telefone tocou dentro da mala, Ah és tu irmã, não, estás à vontade, tenho tempo, estou andando por aí. Que se passa pareces cansada? Como saíste de casa? Mas não estavam bem? Para a minha? Espero-te lá então. Não eram as melhores notícias, mas para os outros tudo tem sempre solução e nesta ideia apanhou o eléctrico subindo a encosta.
Está frio não é verdade? Só se vêm velhos por aí, pois os jovens andam a trabalhar. As vizinhas adoravam meter-se consigo, moendo como se soubessem da sua vida, concluindo que nada fazia por não ter um horário nem chegar ao fim do dia com o saco de plástico do supermercado. Sorriu e virou costas. Em casa ligou o aquecimento e meteu água ao lume para um chá. Esperou por ela acabando por adormecer no sofá. Quando acordou a casa estava mergulhada na escuridão, a noite chegara e vendo as horas ligou para a irmã e ninguém atendeu, ligou para o marido da irmã Mas onde está? O quê? No hospital...um acidente? Vou já para aí. Correu Se ao menos eu tivesse tentado perceber...Ainda há solução, para os outros há sempre solução.
O sopro.
Anda sopra, ou sopras tu ou sopro eu, a cera está a estragar a cobertura! E vendo que a outra não se decidia, soprou ela sozinha. Afinal faziam as duas anos nesse dia. É preciso que se mude a estrutura. Que se removam as cascas já duras. E se recomece o que nunca se pode deixar como concluído. Foi o discurso do pai no dia em que faziam treze anos. Uma idade de tanto e coisa nenhuma. Onde tudo se sente e nada se entende. Onde o corpo se aperta para ser outro e a cabeça se encolhe para ser uma. Uma para fora e outra para dentro, assim eram. Nessa altura já ela vivia para a rua, para os rapazes, para as festas e as fracas notas. Sorria e fazia rir a todos. A outra, como que absorvida de todas as cores, era oculta, discreta, tímida e quieta. Se o tempo as trocou, isso foi a vida que as baralhou. Ou o excesso dela.
Vamos ver como passa a noite, amanhã saberemos como está a reagir. Por agora nada mais há a fazer, vá para casa e descanse. De regresso a casa passou pelo largo da infância despedindo-se. Naquela cama de hospital, a irmã dormia no lugar da vida. No lugar de duas, talvez só uma ficasse, ou talvez as duas ficassem dentro de si, alternando no espelho. A essa hora já não havia eléctricos e foi subindo a pé arrastando-se na fé. Alguém dormia no chão de uma porta enrolado em mantas sobre pedaços de cartão. Aproximou-se e sentou-se ao seu lado. Ele, dando pela presença dela, acordou.
A voz.
Aqui só há lugar para um. A rua não é nenhum albergue. O homem de barba e cabelo extensos parecia mais velho do que na verdade era. É só por um momento, deixe-me estar aqui por um momento. E ele calou-se. E depois voltou a falar-lhe encostando-se na almofada de mármore Resta-me uma voz para ninguém a escutar. De que me serve então falar? Ela retirou da mala o telefone e colocou uma música Era a música com que a nossa mãe nos acordava ao fim-de-semana. E uma voz esganiçada operada se ecoou pela rua deserta e sombria. Assim como a voz se escalava nos agudos dentro deles um absurdo se explodiu de riso e o homem comentou É um desastre mesmo. Fazia muito tempo que não se ria assim e quanto mais escutavam mais riam e quanto mais riam, mais riam. Numa histeria catártica abençoada.
Quando o silêncio chegou choraram os dois, e abraçaram-se. Eu moro lá em cima, porque não vem comigo? Posso fazer um chá e uma torradas, sempre tem menos frio. E o homem voltou a encolher-se nas mantas Eu escolhi assim, tudo me levou até aqui, é aqui que pertenço, vá-se embora, está a fazer-me perder o sono. Ela levantou-se e retirou-lhe a manta de cima Para os outros há sempre solução, vamos, agora. O homem levantou-se cambaleante, olhou para as suas tralhas e pensou se as levaria consigo, afinal o que tinha de seu? E embrulhado seguiu com ela rua acima.
A Inocência.
A porta se abriu. O aquecimento estava ainda ligado. Presumo que um banho lhe saberia bem, posso cortar-lhe o cabelo, que me diz? Era tudo demais para ele, como se ela o tivesse engolido na própria pele ou ele a tivesse agora dentro de si combatendo contra as paredes do corpo. Um chá seria bom. Foi tudo o que conseguiu dizer. Estou a ir muito depressa, bem vejo, desculpe, farei o chá então. Tinha no rosto uma expressão de abandono, os olhos caídos de um tom encardido e ela olhou então as mãos dele. Surpreendentemente delicadas. Trabalhava com as mãos antes? Ele levantou os olhos Antes? Eu esqueci-me de que houve um antes. Ela sorriu-lhe temos todo o tempo do mundo, dormirá aqui no sofá, vou buscar cobertores, amanhã estará ainda aqui? Diga-me que sim por favor. O homem perdido Pois se não tenho mais para onde ir, sim. E quando ela fechou a porta do quarto ele baixinho lhe disse Obrigado.
Na manhã seguinte ela acordou com uma algazarra no chuveiro. Correu à casa de banho abrindo a porta esquecendo-se de bater. Foi quando o viu completamente despido. Magro, ossudo mas belo. O homem envergonhado cobriu-se com uma toalha Desculpe, não percebo como funciona isto. Está fria como gelo. Ela riu-se tímida Pois, é preciso ligar o esquentador, vou tratar disso, cubra-se para não arrefecer. Não sabia o que era um banho há meses, e quando saiu muito depois, parecia outro desculpe ter usado as suas coisas, aparei a barba. Ela não podia acha-lo mais atraente, como era bonito o rosto antes escondido. Fiz ovos e torradas, venha. Como se chama? Posso saber o seu nome? O homem encolhendo os ombros Escolha um que lhe agrade.
O simples.
Os dois entraram pelo café apertando-se para caberem juntos na porta estreita. Ela pediu um abatanado e ele um galão Preciso de arranjar um trabalho, não quero depender de ti, quero que te orgulhes de mim, agora que sou teu. Ela sorriu pensativa O que gostarias de fazer? Ele olhou para a porta da cozinha Antes, naquele antes, eu era cozinheiro. Veio-lhe à memória o rosto da irmã, que dormia ainda num sono suspenso. Conservava-a viva ao espelho. Como ela, arranjara o cabelo, vestia-lhe as roupas e alguns modos tão seus apareciam assim de mansinho como se falassem consigo. Ela levantou-se e procurou pelo proprietário do café Por acaso não está a precisar de ajuda por aqui? O meu marido foi cozinheiro e está à procura de trabalho. O senhor olhou bem para ele e no fundo dos seus olhos encontrou o homem a quem tantas vezes entregara os restos do dia, não comentou, virou costas e entrou pela cozinha procurando a patroa.
Quando voltou de lá vinha satisfeito Eu e a Maria estamos a caminhar para velhos, já nos vai pesando o trabalho e por isso concordámos em aceitá-lo, bem à experiência, a ver vamos se tem paciência para as exigências dela e aproximando-se deles Tem cá um feitio, mas é boa pessoa. Pode começar amanhã mesmo, o ordenado é o mínimo que podemos oferecer mas para começar não deve ser mau. Ele abraçou o homem de felicidade Nem imagina como é importante para mim.
A notícia.
Credo o jornal é só desgraças, já viste o que vem na última página? Tratava-se da notícia de uma mulher encontrada morta enterrada no próprio quintal, o vestido de noiva ainda se mantém quase intacto, como pode ser? Ele correu arrancando-lhe das mãos a folha de papel áspero Não...O desespero enervou-lhe os olhos e as mãos à boca roendo os dedos de medo. O que se passa? Sabes alguma coisa sobre isto? O silêncio dele era desesperante Por favor fala comigo, explica o que se está a passar? Vestiu o casaco e saiu apressado.
Algo dentro dela falou, uma curiosidade perigosa pedindo para abrir uma caixa de pandora. Pegou no jornal e dirigiu-se à sede do mesmo. Na portaria indicaram-lhe que o jornalista em causa estaria em campo a cobrir uma outra morte que ocorrera num parque na zona sul da cidade. Apanhou um autocarro e saiu na entrada. Caminhou por entre o arvoredo chegando a uma clareia onde um corpo coberto com um lençol era zelado por três homens, um vestido com um casaco de cabedal sisudo, um agente fardado e outro de câmara em punho. Devia ser ele, aproximou-se Desculpe incomodar, pretendia saber mais sobre a noiva enterrada, a notícia do Diário de ontem. O homem afastou-a com desprezo Estou ocupado, não vê? Agora não posso falar-lhe. O de casaco de cabedal escutou a conversa e aproximou-se dela fumando Desculpe, não pude deixar de ouvir a conversa, chamo-me Luís Carlos, sou inspector da polícia judiciária, pareceu-me que tinha informações sobre a noiva enterrada, podemos falar?
Afastaram-se uns metros e ela falou a medo Não sei bem o que lhe dizer, gostava de saber mais sobre o assunto. O homem atirou a ponta do cigarro para o chão Como deve calcular nós não negociamos informação, procuramos pelo noivo da dita mulher, desconhece-se o paradeiro dele desde a morte que estimamos ter ocorrido há três anos. A fotografia não foi divulgada porque ao que parece o homem não tem identidade. Na casa da noiva não havia um só retrato e os familiares confessaram não terem sequer conhecido o homem. O casamento estava marcado para o dia 28 de Dezembro, em nome de alguém que não corresponde ao noivo, porque nem sequer se encontrava no país à data. O nome era falso portanto. Calcula-se que ela terá sido morta provavelmente nesse mesmo dia. Nada mais temos. Ela encolheu os ombros disfarçando Nesse caso penso que não tenho mesmo mais a acrescentar para o ajudar, lamento. O inspector entregou-lhe um cartão Se se lembrar de algo, estarei ao seu dispor.
A carta.
Quando regressou a casa as janelas encontravam-se ainda encerradas e nas gavetas dele um adeus numa carta, notoriamente escrita na pressa da fuga. Ela leu e releu. Ana perdoa-me, não te posso explicar um passado que em mim não tem ele mesmo uma explicação, garanto-te que não a matei, peço-te que acredites em mim, partirei para não te arranjar complicações, parto com o coração despedaçado, por favor que me perdoes.
Correu ao café e o proprietário confirmou que ele não viera trabalhar nesse dia. Não havia como saber para onde fora. Retirou do bolso do casaco o cartão do inspector e ligou-lhe combinando um encontro. Se ele estava inocente, era preciso ajuda-lo para que pudesse regressar. O inspector chegou, pedindo ao balcão um bagaço e um café. Sentou-se na mesa dela e aguardou que ela falasse. Desculpe, hoje de manhã não me ocorreu perguntar-lhe a causa da morte da noiva. Ele tossiu e suspirou de impaciência Hoje foi um dia muito complicado, nem imagina, não lhe disse sobre isso porque pouco sabemos, dá-nos a entender que a causa terá sido álcool. Ela entusiasmou-se Álcool? Quer dizer que o noivo pode estar inocente? O inspector despejou o copo do bagaço abruptamente Pode e não pode, o que quero dizer é que de facto a mulher apresentava indícios de alcoolismo mas e embora ainda estejamos a aguardar resultados de análises, há probabilidade de ela ter sido obrigada a ingerir uma dose fatal. Mas se foi ou não assim, ajudava encontrar o dito noivo. Sabe alguma coisa sobre ele? Ela pensou que seria melhor confessar a situação, até porque neste momento também ela não sabia do paradeiro dele Sim, tenho desconfiança de ter estado a viver com ele nos últimos três meses. Quando lhe li a notícia o pânico tomou conta dele e hoje quando regressei a casa, encontrei esta carta, leia. O inspector pegou no papel amarrotado Poderá ajudar-nos a fazer um retrato robot, se vier comigo à esquadra trataremos disso. Ela assustou-se Não, isso não, poderá ser mal entendido por ele e nunca mais volta. O inspector endireitou-se na cadeira Não, garanto-lhe que o meu empenho está na defesa deste homem, quero apenas apurar a verdade.
A traição.
Dentro de dias o retrato dele pairava assombrando estações de comboio, paragens de autocarro e vitrines de supermercado. Ana sentia uma terrível angústia, como se o tivesse traído e imaginava-o escondido num beco frio. Tudo nessa imagem tomava a cor de uma saudade surda, de uma ausência insuportável. Não havia como puxar o fio condutor. Era como se aquele homem tivesse nascido no dia em que o conheceu. Todos os dias regressava à rua onde o encontrara pela primeira vez, esperando qualquer coisa que a levasse até ele. E tudo o que encontrava era o rosto da irmã. E a culpa fora dela, agora ele tinha uma identidade e em cada lugar, o olhar perseguindo-o na cidade tomado como cativo. Estaria ele ainda por ali? Estaria ele vivo?
Não sabia se por isso ou por tudo o que não foi dito. Não sabia o motivo. Não sabia bem ao certo o momento em que deixou de ser. Mas de noite para noite, as horas se depositaram naquele passeio e desaparecendo da sua vida, a rua a tomou por casa, também ela, sem paredes nem janelas. Como se ali, estivesse mais perto dele e de uma verdade inevitável. O seu pensamento deixou-se em devaneio, vago, e o seu olhar baço, apenas mais um pedaço de pormenor de retrato. Pormenor de calçada, detalhe de passeio, pena de asa sem corpo. Pedaço de corpo de cidade, mais um, entre tantos outros anónimos. Adormecendo a dor no propósito da invisibilidade.
A verdade.
O inspector parecia agitado ao telefone quando marcou novo encontro passadas duas semanas. Encontrou-a esfregando as mãos rasgadas de noites ao relento, nervosa Parece abatida, pior, parece envelhecida. Como tem passado? Ela não respondeu distraída apaticamente com quem entrava pela porta do café. Tenho novidades e receio não serem as melhores, prepare-se para o pior. Os olhos dela abriram-se e um enorme suspiro a encurvou ainda mais. Parece inacreditável que esta mulher tenha passado pelo que passou nas últimas semanas de vida. Não sei se tem conhecimento da prática de engorda de gansos? Bárbaro, confesso que perdi a vontade de tocar em foie gras. Recordo que nos referiu que ele fora cozinheiro, pois bem, tudo aponta para que ela tenha sido forçada com comida e bebida, provocando-lhe a morte por enfartamento. Ora, porque alguém haveria de cometer tal crime? Nós conseguimos obter informação do local onde este homem foi criado, parece que o negócio da família era precisamente o foie gras. A minha teoria é que este homem tendo uma perturbação grave, terá conseguido sublima-la com a profissão de cozinheiro, veja, também ele alimentava e engordava assim os outros, mas por alguma razão, alguma situação terá despoletado nele a patologia adormecida e a mulher terá sido vítima. Ela gritou Não, não foi com esse homem que eu vivi durante três meses, disso posso ter a certeza, não. O inspector pediu-lhe que se acalmasse Escute, estas situações são absolutamente surpresas para os que convivem com eles diariamente, a maior parte, tem sucesso em esconder-se e outros ainda, não têm sequer consciência, como se dentro deles habitassem vários. Há casos em que não há sequer recordação do momento do crime, como se fosse amnésico. Mas a história não acaba aqui...Ela escondeu os olhos nas mãos chorando de pavor Como sabe não havia explicação para a não decomposição do vestido, mais ou menos cinco meses é o tempo que demora, estamos a falar de três anos, donde concluí que ele terá regressado ao local e terá trocado o vestido. Investiguei e encontrei uma loja de vestidos de noiva que fora assaltada algum tempo depois da morte, consta que pelo menos dez vestidos terão desaparecido. Tudo isto é profundamente mórbido.
O fecho.
Ana levantou-se e como que levada por uma força exterior encaminhou-se para a rua onde nos últimos tempos havia dormido. No canto que antes fora dele, procurou por antigos pertences. E lá estavam, tapados por pedaços de cartão amontoados, dois sacos de plástico fechados. O inspector seguiu-a. Ajoelhou-se e procurando com as mãos encontrar verdade para as palavras dele rasgou os sacos donde se espalharam pelo passeio vestidos de um branco dolorosamente imaculado. Ergueu-se como que possuída e enfiou um dos vestidos. O inspector impotente deixou-se apenas como observador. Vestida de noiva catatónica, entrou pelo café e desfilou deixando um véu de pânico calado atrás de si. Procurou pela aparelhagem, colocou a valsa do fecho e pelas mesas rodopiando passo a passo de mão estendida, voltou a sair. Na entrada, na rua, o inspector a aguardava como quem espera pela noiva no altar depois de se saber abandonado. Ela pediu-lhe a dança e cantarolando a mais triste das valsas, na passagem de um eléctrico, atirou-se de mansinho deixando-lhe as palavras para os outros há sempre solução, para os outros.
O Encore.
O inspector tinha agendadas para esse dia duas das visitas mais difíceis da sua carreira. Uma ao estabelecimento prisional onde o homem estava detido, outra ao hospital onde a irmã estava ainda em coma. Depois da morte trágica de Ana, parecia-lhe que a cidade se tornara mais perversa, que as ruas se haviam vestido de um negro sempre noite. Talvez porque ele mesmo se tenha refugiado no gabinete e saísse apenas a altas horas da madrugada para caminhar fumando. Talvez, porque nas últimas palavras dela não encontrara mais a esperança. Talvez porque nem ele soubesse mais porque fazia o que fazia.
Procurou pelo homem e mandou-o chamar à sala de interrogatório. Tal como esperava, encontrou-o com uma calma enervante. O homem não esperou por nada, falando profundamente Não estou inocente, matei-a, sei-o, dentro de mim habita um monstro. Mas a Ana, com o seu jeito de amar, conseguiu que eu fosse outro, pelo menos até...O inspector queria apenas ter mais uma informação, tudo o resto lhe era demasiado próximo e doloroso Outras houve? O homem curvou-se na vergonha de si mesmo Não, foi o meu único caso humano. E se me perguntar porque o fiz, respondo apenas que é assim a minha natureza e se me perguntar se voltaria a fazê-lo, posso apenas garantir-lhe que não tocaria num só cabelo dela..Ana...O inspector virou costas dirigindo-se à porta A Ana está morta e saiu.
Na porta do quarto deteve-se. As pernas claudicavam de um momento de indecisão. Ela dormia, de que lhe adiantaria vê-la. Era apenas mais um fantasma que lhe atormentava as noites de insónia.
Um deslize.
Ela saiu também. Triste mas feliz. Nessa possibilidade de se ver num amanhã que deixou de parte, que tantas vezes deixou para mais tarde. No passado lá ficara o par, quantos pares? Quantas valsas dançara sem sequer olhar na cara? E deixou-se levar pelos pés. A passadeira nostálgica deixou-a distraída diante de uma montra de decorações de Natal. E se eu comprasse um enfeite, um pinheiro ou um presépio? Colocou de parte a ideia Não faz sentido, o Natal é um lugar onde se vive uma ideia familiar, não um enfeite para colocar numa parede para onde ninguém vai olhar. Continuou a caminhar pelas ruas atarefadas de pessoas, compras e cachecóis enrolados de pescoços esguios Porque será que nunca estamos confortáveis com o tempo?
E o telefone tocou dentro da mala, Ah és tu irmã, não, estás à vontade, tenho tempo, estou andando por aí. Que se passa pareces cansada? Como saíste de casa? Mas não estavam bem? Para a minha? Espero-te lá então. Não eram as melhores notícias, mas para os outros tudo tem sempre solução e nesta ideia apanhou o eléctrico subindo a encosta.
Está frio não é verdade? Só se vêm velhos por aí, pois os jovens andam a trabalhar. As vizinhas adoravam meter-se consigo, moendo como se soubessem da sua vida, concluindo que nada fazia por não ter um horário nem chegar ao fim do dia com o saco de plástico do supermercado. Sorriu e virou costas. Em casa ligou o aquecimento e meteu água ao lume para um chá. Esperou por ela acabando por adormecer no sofá. Quando acordou a casa estava mergulhada na escuridão, a noite chegara e vendo as horas ligou para a irmã e ninguém atendeu, ligou para o marido da irmã Mas onde está? O quê? No hospital...um acidente? Vou já para aí. Correu Se ao menos eu tivesse tentado perceber...Ainda há solução, para os outros há sempre solução.
O sopro.
Anda sopra, ou sopras tu ou sopro eu, a cera está a estragar a cobertura! E vendo que a outra não se decidia, soprou ela sozinha. Afinal faziam as duas anos nesse dia. É preciso que se mude a estrutura. Que se removam as cascas já duras. E se recomece o que nunca se pode deixar como concluído. Foi o discurso do pai no dia em que faziam treze anos. Uma idade de tanto e coisa nenhuma. Onde tudo se sente e nada se entende. Onde o corpo se aperta para ser outro e a cabeça se encolhe para ser uma. Uma para fora e outra para dentro, assim eram. Nessa altura já ela vivia para a rua, para os rapazes, para as festas e as fracas notas. Sorria e fazia rir a todos. A outra, como que absorvida de todas as cores, era oculta, discreta, tímida e quieta. Se o tempo as trocou, isso foi a vida que as baralhou. Ou o excesso dela.
Vamos ver como passa a noite, amanhã saberemos como está a reagir. Por agora nada mais há a fazer, vá para casa e descanse. De regresso a casa passou pelo largo da infância despedindo-se. Naquela cama de hospital, a irmã dormia no lugar da vida. No lugar de duas, talvez só uma ficasse, ou talvez as duas ficassem dentro de si, alternando no espelho. A essa hora já não havia eléctricos e foi subindo a pé arrastando-se na fé. Alguém dormia no chão de uma porta enrolado em mantas sobre pedaços de cartão. Aproximou-se e sentou-se ao seu lado. Ele, dando pela presença dela, acordou.
A voz.
Aqui só há lugar para um. A rua não é nenhum albergue. O homem de barba e cabelo extensos parecia mais velho do que na verdade era. É só por um momento, deixe-me estar aqui por um momento. E ele calou-se. E depois voltou a falar-lhe encostando-se na almofada de mármore Resta-me uma voz para ninguém a escutar. De que me serve então falar? Ela retirou da mala o telefone e colocou uma música Era a música com que a nossa mãe nos acordava ao fim-de-semana. E uma voz esganiçada operada se ecoou pela rua deserta e sombria. Assim como a voz se escalava nos agudos dentro deles um absurdo se explodiu de riso e o homem comentou É um desastre mesmo. Fazia muito tempo que não se ria assim e quanto mais escutavam mais riam e quanto mais riam, mais riam. Numa histeria catártica abençoada.
Quando o silêncio chegou choraram os dois, e abraçaram-se. Eu moro lá em cima, porque não vem comigo? Posso fazer um chá e uma torradas, sempre tem menos frio. E o homem voltou a encolher-se nas mantas Eu escolhi assim, tudo me levou até aqui, é aqui que pertenço, vá-se embora, está a fazer-me perder o sono. Ela levantou-se e retirou-lhe a manta de cima Para os outros há sempre solução, vamos, agora. O homem levantou-se cambaleante, olhou para as suas tralhas e pensou se as levaria consigo, afinal o que tinha de seu? E embrulhado seguiu com ela rua acima.
A Inocência.
A porta se abriu. O aquecimento estava ainda ligado. Presumo que um banho lhe saberia bem, posso cortar-lhe o cabelo, que me diz? Era tudo demais para ele, como se ela o tivesse engolido na própria pele ou ele a tivesse agora dentro de si combatendo contra as paredes do corpo. Um chá seria bom. Foi tudo o que conseguiu dizer. Estou a ir muito depressa, bem vejo, desculpe, farei o chá então. Tinha no rosto uma expressão de abandono, os olhos caídos de um tom encardido e ela olhou então as mãos dele. Surpreendentemente delicadas. Trabalhava com as mãos antes? Ele levantou os olhos Antes? Eu esqueci-me de que houve um antes. Ela sorriu-lhe temos todo o tempo do mundo, dormirá aqui no sofá, vou buscar cobertores, amanhã estará ainda aqui? Diga-me que sim por favor. O homem perdido Pois se não tenho mais para onde ir, sim. E quando ela fechou a porta do quarto ele baixinho lhe disse Obrigado.
Na manhã seguinte ela acordou com uma algazarra no chuveiro. Correu à casa de banho abrindo a porta esquecendo-se de bater. Foi quando o viu completamente despido. Magro, ossudo mas belo. O homem envergonhado cobriu-se com uma toalha Desculpe, não percebo como funciona isto. Está fria como gelo. Ela riu-se tímida Pois, é preciso ligar o esquentador, vou tratar disso, cubra-se para não arrefecer. Não sabia o que era um banho há meses, e quando saiu muito depois, parecia outro desculpe ter usado as suas coisas, aparei a barba. Ela não podia acha-lo mais atraente, como era bonito o rosto antes escondido. Fiz ovos e torradas, venha. Como se chama? Posso saber o seu nome? O homem encolhendo os ombros Escolha um que lhe agrade.
O simples.
Os dois entraram pelo café apertando-se para caberem juntos na porta estreita. Ela pediu um abatanado e ele um galão Preciso de arranjar um trabalho, não quero depender de ti, quero que te orgulhes de mim, agora que sou teu. Ela sorriu pensativa O que gostarias de fazer? Ele olhou para a porta da cozinha Antes, naquele antes, eu era cozinheiro. Veio-lhe à memória o rosto da irmã, que dormia ainda num sono suspenso. Conservava-a viva ao espelho. Como ela, arranjara o cabelo, vestia-lhe as roupas e alguns modos tão seus apareciam assim de mansinho como se falassem consigo. Ela levantou-se e procurou pelo proprietário do café Por acaso não está a precisar de ajuda por aqui? O meu marido foi cozinheiro e está à procura de trabalho. O senhor olhou bem para ele e no fundo dos seus olhos encontrou o homem a quem tantas vezes entregara os restos do dia, não comentou, virou costas e entrou pela cozinha procurando a patroa.
Quando voltou de lá vinha satisfeito Eu e a Maria estamos a caminhar para velhos, já nos vai pesando o trabalho e por isso concordámos em aceitá-lo, bem à experiência, a ver vamos se tem paciência para as exigências dela e aproximando-se deles Tem cá um feitio, mas é boa pessoa. Pode começar amanhã mesmo, o ordenado é o mínimo que podemos oferecer mas para começar não deve ser mau. Ele abraçou o homem de felicidade Nem imagina como é importante para mim.
A notícia.
Credo o jornal é só desgraças, já viste o que vem na última página? Tratava-se da notícia de uma mulher encontrada morta enterrada no próprio quintal, o vestido de noiva ainda se mantém quase intacto, como pode ser? Ele correu arrancando-lhe das mãos a folha de papel áspero Não...O desespero enervou-lhe os olhos e as mãos à boca roendo os dedos de medo. O que se passa? Sabes alguma coisa sobre isto? O silêncio dele era desesperante Por favor fala comigo, explica o que se está a passar? Vestiu o casaco e saiu apressado.
Algo dentro dela falou, uma curiosidade perigosa pedindo para abrir uma caixa de pandora. Pegou no jornal e dirigiu-se à sede do mesmo. Na portaria indicaram-lhe que o jornalista em causa estaria em campo a cobrir uma outra morte que ocorrera num parque na zona sul da cidade. Apanhou um autocarro e saiu na entrada. Caminhou por entre o arvoredo chegando a uma clareia onde um corpo coberto com um lençol era zelado por três homens, um vestido com um casaco de cabedal sisudo, um agente fardado e outro de câmara em punho. Devia ser ele, aproximou-se Desculpe incomodar, pretendia saber mais sobre a noiva enterrada, a notícia do Diário de ontem. O homem afastou-a com desprezo Estou ocupado, não vê? Agora não posso falar-lhe. O de casaco de cabedal escutou a conversa e aproximou-se dela fumando Desculpe, não pude deixar de ouvir a conversa, chamo-me Luís Carlos, sou inspector da polícia judiciária, pareceu-me que tinha informações sobre a noiva enterrada, podemos falar?
Afastaram-se uns metros e ela falou a medo Não sei bem o que lhe dizer, gostava de saber mais sobre o assunto. O homem atirou a ponta do cigarro para o chão Como deve calcular nós não negociamos informação, procuramos pelo noivo da dita mulher, desconhece-se o paradeiro dele desde a morte que estimamos ter ocorrido há três anos. A fotografia não foi divulgada porque ao que parece o homem não tem identidade. Na casa da noiva não havia um só retrato e os familiares confessaram não terem sequer conhecido o homem. O casamento estava marcado para o dia 28 de Dezembro, em nome de alguém que não corresponde ao noivo, porque nem sequer se encontrava no país à data. O nome era falso portanto. Calcula-se que ela terá sido morta provavelmente nesse mesmo dia. Nada mais temos. Ela encolheu os ombros disfarçando Nesse caso penso que não tenho mesmo mais a acrescentar para o ajudar, lamento. O inspector entregou-lhe um cartão Se se lembrar de algo, estarei ao seu dispor.
A carta.
Quando regressou a casa as janelas encontravam-se ainda encerradas e nas gavetas dele um adeus numa carta, notoriamente escrita na pressa da fuga. Ela leu e releu. Ana perdoa-me, não te posso explicar um passado que em mim não tem ele mesmo uma explicação, garanto-te que não a matei, peço-te que acredites em mim, partirei para não te arranjar complicações, parto com o coração despedaçado, por favor que me perdoes.
Correu ao café e o proprietário confirmou que ele não viera trabalhar nesse dia. Não havia como saber para onde fora. Retirou do bolso do casaco o cartão do inspector e ligou-lhe combinando um encontro. Se ele estava inocente, era preciso ajuda-lo para que pudesse regressar. O inspector chegou, pedindo ao balcão um bagaço e um café. Sentou-se na mesa dela e aguardou que ela falasse. Desculpe, hoje de manhã não me ocorreu perguntar-lhe a causa da morte da noiva. Ele tossiu e suspirou de impaciência Hoje foi um dia muito complicado, nem imagina, não lhe disse sobre isso porque pouco sabemos, dá-nos a entender que a causa terá sido álcool. Ela entusiasmou-se Álcool? Quer dizer que o noivo pode estar inocente? O inspector despejou o copo do bagaço abruptamente Pode e não pode, o que quero dizer é que de facto a mulher apresentava indícios de alcoolismo mas e embora ainda estejamos a aguardar resultados de análises, há probabilidade de ela ter sido obrigada a ingerir uma dose fatal. Mas se foi ou não assim, ajudava encontrar o dito noivo. Sabe alguma coisa sobre ele? Ela pensou que seria melhor confessar a situação, até porque neste momento também ela não sabia do paradeiro dele Sim, tenho desconfiança de ter estado a viver com ele nos últimos três meses. Quando lhe li a notícia o pânico tomou conta dele e hoje quando regressei a casa, encontrei esta carta, leia. O inspector pegou no papel amarrotado Poderá ajudar-nos a fazer um retrato robot, se vier comigo à esquadra trataremos disso. Ela assustou-se Não, isso não, poderá ser mal entendido por ele e nunca mais volta. O inspector endireitou-se na cadeira Não, garanto-lhe que o meu empenho está na defesa deste homem, quero apenas apurar a verdade.
A traição.
Dentro de dias o retrato dele pairava assombrando estações de comboio, paragens de autocarro e vitrines de supermercado. Ana sentia uma terrível angústia, como se o tivesse traído e imaginava-o escondido num beco frio. Tudo nessa imagem tomava a cor de uma saudade surda, de uma ausência insuportável. Não havia como puxar o fio condutor. Era como se aquele homem tivesse nascido no dia em que o conheceu. Todos os dias regressava à rua onde o encontrara pela primeira vez, esperando qualquer coisa que a levasse até ele. E tudo o que encontrava era o rosto da irmã. E a culpa fora dela, agora ele tinha uma identidade e em cada lugar, o olhar perseguindo-o na cidade tomado como cativo. Estaria ele ainda por ali? Estaria ele vivo?
Não sabia se por isso ou por tudo o que não foi dito. Não sabia o motivo. Não sabia bem ao certo o momento em que deixou de ser. Mas de noite para noite, as horas se depositaram naquele passeio e desaparecendo da sua vida, a rua a tomou por casa, também ela, sem paredes nem janelas. Como se ali, estivesse mais perto dele e de uma verdade inevitável. O seu pensamento deixou-se em devaneio, vago, e o seu olhar baço, apenas mais um pedaço de pormenor de retrato. Pormenor de calçada, detalhe de passeio, pena de asa sem corpo. Pedaço de corpo de cidade, mais um, entre tantos outros anónimos. Adormecendo a dor no propósito da invisibilidade.
A verdade.
O inspector parecia agitado ao telefone quando marcou novo encontro passadas duas semanas. Encontrou-a esfregando as mãos rasgadas de noites ao relento, nervosa Parece abatida, pior, parece envelhecida. Como tem passado? Ela não respondeu distraída apaticamente com quem entrava pela porta do café. Tenho novidades e receio não serem as melhores, prepare-se para o pior. Os olhos dela abriram-se e um enorme suspiro a encurvou ainda mais. Parece inacreditável que esta mulher tenha passado pelo que passou nas últimas semanas de vida. Não sei se tem conhecimento da prática de engorda de gansos? Bárbaro, confesso que perdi a vontade de tocar em foie gras. Recordo que nos referiu que ele fora cozinheiro, pois bem, tudo aponta para que ela tenha sido forçada com comida e bebida, provocando-lhe a morte por enfartamento. Ora, porque alguém haveria de cometer tal crime? Nós conseguimos obter informação do local onde este homem foi criado, parece que o negócio da família era precisamente o foie gras. A minha teoria é que este homem tendo uma perturbação grave, terá conseguido sublima-la com a profissão de cozinheiro, veja, também ele alimentava e engordava assim os outros, mas por alguma razão, alguma situação terá despoletado nele a patologia adormecida e a mulher terá sido vítima. Ela gritou Não, não foi com esse homem que eu vivi durante três meses, disso posso ter a certeza, não. O inspector pediu-lhe que se acalmasse Escute, estas situações são absolutamente surpresas para os que convivem com eles diariamente, a maior parte, tem sucesso em esconder-se e outros ainda, não têm sequer consciência, como se dentro deles habitassem vários. Há casos em que não há sequer recordação do momento do crime, como se fosse amnésico. Mas a história não acaba aqui...Ela escondeu os olhos nas mãos chorando de pavor Como sabe não havia explicação para a não decomposição do vestido, mais ou menos cinco meses é o tempo que demora, estamos a falar de três anos, donde concluí que ele terá regressado ao local e terá trocado o vestido. Investiguei e encontrei uma loja de vestidos de noiva que fora assaltada algum tempo depois da morte, consta que pelo menos dez vestidos terão desaparecido. Tudo isto é profundamente mórbido.
O fecho.
Ana levantou-se e como que levada por uma força exterior encaminhou-se para a rua onde nos últimos tempos havia dormido. No canto que antes fora dele, procurou por antigos pertences. E lá estavam, tapados por pedaços de cartão amontoados, dois sacos de plástico fechados. O inspector seguiu-a. Ajoelhou-se e procurando com as mãos encontrar verdade para as palavras dele rasgou os sacos donde se espalharam pelo passeio vestidos de um branco dolorosamente imaculado. Ergueu-se como que possuída e enfiou um dos vestidos. O inspector impotente deixou-se apenas como observador. Vestida de noiva catatónica, entrou pelo café e desfilou deixando um véu de pânico calado atrás de si. Procurou pela aparelhagem, colocou a valsa do fecho e pelas mesas rodopiando passo a passo de mão estendida, voltou a sair. Na entrada, na rua, o inspector a aguardava como quem espera pela noiva no altar depois de se saber abandonado. Ela pediu-lhe a dança e cantarolando a mais triste das valsas, na passagem de um eléctrico, atirou-se de mansinho deixando-lhe as palavras para os outros há sempre solução, para os outros.
O Encore.
O inspector tinha agendadas para esse dia duas das visitas mais difíceis da sua carreira. Uma ao estabelecimento prisional onde o homem estava detido, outra ao hospital onde a irmã estava ainda em coma. Depois da morte trágica de Ana, parecia-lhe que a cidade se tornara mais perversa, que as ruas se haviam vestido de um negro sempre noite. Talvez porque ele mesmo se tenha refugiado no gabinete e saísse apenas a altas horas da madrugada para caminhar fumando. Talvez, porque nas últimas palavras dela não encontrara mais a esperança. Talvez porque nem ele soubesse mais porque fazia o que fazia.
Procurou pelo homem e mandou-o chamar à sala de interrogatório. Tal como esperava, encontrou-o com uma calma enervante. O homem não esperou por nada, falando profundamente Não estou inocente, matei-a, sei-o, dentro de mim habita um monstro. Mas a Ana, com o seu jeito de amar, conseguiu que eu fosse outro, pelo menos até...O inspector queria apenas ter mais uma informação, tudo o resto lhe era demasiado próximo e doloroso Outras houve? O homem curvou-se na vergonha de si mesmo Não, foi o meu único caso humano. E se me perguntar porque o fiz, respondo apenas que é assim a minha natureza e se me perguntar se voltaria a fazê-lo, posso apenas garantir-lhe que não tocaria num só cabelo dela..Ana...O inspector virou costas dirigindo-se à porta A Ana está morta e saiu.
Na porta do quarto deteve-se. As pernas claudicavam de um momento de indecisão. Ela dormia, de que lhe adiantaria vê-la. Era apenas mais um fantasma que lhe atormentava as noites de insónia.
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