sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Mind Grind


Roubei-te da imagem como se roubam as garças do estuário e a um saco de múltiplos fundos te atirei. Para que fosses único, infinitamente uno. Qual é a tua cor preferida? Quanto medes, o que pensas quando comes, o que sonhas, o que te move quando acordas? 


I



Nesse volteio da rédea de alvoradas fantasmas. O homem de cascos nos pés caminha pelo arvoredo alumiado pelo terceiro olho. Corpos rígidos de madeira, a barreira vertical, paralelismos que contorna sentindo a presença de espíritos ancestrais. Longa noite desde que partira de parte certa para lugar na floresta. Sentindo perto a presença da cabana acelera para chegar de madrugada e bate na porta três vezes. O bater das panelas cessa e escutam-se passos que se aproximam. O homem com cabeça de boi lhe indica o caminho. Entra, a cabana caótica no clarão da lenha que arde parece mais pequena que antes. Senta-se na poltrona e pega numa manta aquecendo as mãos na chama Vejo que tens estado ocupado Malaquias. O outro A que se deve a tua visita? sentando-se a seu lado. Os faunos não precisam de motivos para visitas, eles são o motivo, espreita o que te trouxe no saco. Pegando no pesado saco que se alimentava de movimentos internos Quantos nós deste no saco? Pensativo respondeu Não sei, já somos tantos.
De dentro do saco saltaram pequenos girinos dragões de variadas cores vibrantes que logo se espalharam pela cabana animando a calmaria de antes. Os dois levantaram-se e dançaram à sua volta rindo de contentamento Há quanto tempo que não via dragões, onde os arranjaste fauno? Pegando num deles ao colo, a pequena criatura arfava já espirros de fogo de não querer dono Nos castelos do oeste, uma bruxa que dá pelo nome de Nefrite. Pousando-o no chão São um perigo, sabes disso, roubaste-os! E vens ter comigo com um problema! Os dragões deram pela panela gulosos se encavalitaram engolindo pedaços de tudo ainda fervendo. Malaquias, preciso que os treines, que os comandes, se avistam tempos de batalha e eles serão necessários aos humanos. O outro bateu com o punho no braço da poltrona Não tinhas esse direito, estou velho e pretendo nada mais que retiro. O fauno levantou-se e dirigiu-se à porta É a tua missão, cumpre-a. E partiu novamente em direcção à floresta agora raiada pela manhã, transparecendo à medida que caminhava, desaparecendo detrás de um abeto.
Malaquias ficou embrulhado num dilema sobre o qual nem conseguia cogitar tal era a agitação no interior da cabana. Não havia o que decidir, o fauno falara. Ergueu-se e mugiu batendo no peito e apontando o dedo, onde logo os doze pequenos se alinharam junto à parede Quietos, a vossa primeira lição, parar ao meu comando. E a porta voltou a bater três vezes. Imóveis, as criaturas olhavam para lá expectantes. Abriu Só me faltava agora esta, Uriel que fazes aqui, até estou com receio de perguntar. Ela riu-se e entrou chegando-se aos dragões Senti-lhes o cheiro, tens aqui um pequeno tesouro, o pai deve estar desesperado para vos dar à mão tal brinquedo. É melhor que os leve comigo. Malaquias ergueu o braço e na força da fúria encostou-a à parede entalando-lhe as asas que agonizavam agora as costas Não, tu não passas de uma alma penada corrompida, que se esconde atrás do pai como uma criança fazendo pela calada o que te dá na real gana, não tens responsabilidade para tal, sai. E esticando o braço à porta, atirou-a para fora da cabana violentamente Temos de partir, aqui não estamos seguros. Colectou o necessário e seguido pelas criaturas partiu pela floresta em direcção a norte. Lá estariam outros que o acolheriam e em paz poderia cria-los para a hora certa Não vai ser uma viagem fácil, o mundo estará de olhos postos em nós, para dentro do saco, vamos. 

II

Acordou com vontade de ir à casa de banho Não agora não, aguenta, preciso de lá voltar para continuar.

E fechou os olhos caindo no exacto momento em que Malaquias se debatia com Uriel, que no encalço de um precalço voava em sua volta procurando alcançar o saco das pequenas criaturas assustadas. Uriel estás fora de ti, o pai vai-te castigar severamente, deixa-nos em paz. E sem outra alternativa, na esperança de em tão pouco tempo ter conseguido um vínculo, abriu o saco e deixou-os em liberdade. Sentindo Malaquias em perigo, as doze criaturas formaram um círculo e para fora cuspiram fogo, queimando de imediato as asas agora negras de Uriel, que caindo à terra, chorou de fraqueza e vergonha. Ele correu para longe e os dragões levantaram pela primeira vez, voo atrás dele. Esta havia sido a segunda lição Seguirás o teu guia como quem segue a água num dia de sede. 

Toma esta garrafa, quero ver a que sabe o teu paladar, a que sabe esquecer me na tua boca. Neste último golo, bebe-me de um só trago sem engasgo, sem receios, sem depósito, nos vamos ser Paris que deus fiz. Ne me quitte pas. A interferência de um outro sonho instalou-se e acordou. Foi então à casa de banho. Procurou por água e uma bolachas. Que horas seriam? Não importava, voltaria a adormecer. 

Levando os bagos vermelhos à boca, na esperança de saciar a fome, continuou deixando cair a noite no corpo exausto. As criaturas sentindo o esforço, elevaram-no e carregaram-no até junto de um velho abandonado cemitério, depositando-o sobre uma campa Não meus filhos, aqui não, jaz um homem mau. Levantou-se e procurou pela campa uma outra, mais calma Ficaremos aqui até ser manhã. E adormeceram aconchegando-se, as criaturas de tempos a tempos respiravam e o bafo quase humano era calor. Os espíritos levantaram-se conspirando formas de possessão. Olhos verdes na escuridão. 

Acorda, acorda agora. Não estás seguro Malaquias, acorda. Preciso de algo, algo daqui para levar até aí. Talvez - Olhando em volta pelo quarto iluminado por duas linhas de persiana lá estava o objecto necessário - Uma pequena caixa de cartão.

Despertou com o peso da caixa no seu peito, confuso, abriu-a a medo Um pequeno anjo! deitado num berço de azul mar iluminura, conchas, rabos de peixe e âncoras A minha cor favorita! Já tinha ouvido falar nestas dádivas, feitas por uma artesã humana no vale dos despenteados. Talvez fosse um sinal, do lugar donde se buscam amuletos, talvez lá estivesse até mais seguro que junto dos seus. As criaturas arfavam de ciúme do pequeno anjo que dormia sereno do tamanho de uma mão. Pegou nele e deixou-o planando diante dos seus olhos tocou-lhe. Um rasgo de luz se levantou então como um véu e todos os espíritos se cessaram à terra. Malaquias com delicadeza voltou a coloca-lo na caixa e avançou pelo cemitério fora seguido dos doze. O caminho não levaria agora mais de um resto de noite e um pedaço de manhã. 


III

Era exactamente aí que eu queria chegar, a esse vale, a essa artesã. Já lá havia estado antes e as pequenas caixas enfeitadas da nossa cor preferida, de requinte toque de pequenos pormenores decoradas, onde se deitam pequenos anjos que respiram e aguardam por alguém, anjos da guarda. Pois se já as fazia em criança, só não sabia o propósito. Conseguiu então a ligação necessária, a artesã era ele. Procurou pela única que guardada no fundo de um armário estava. A única dessas caixas que guardara desse tempo, como protótipo molde de algo que viria a ser importante ainda sem o saber. Aqui estás tu, pressinto que te roubei da imagem e que ao abrir esta caixa, não estejas mais aqui, que tenhas seguido pelos sonhos, por outros sonhos que não os meus. E abriu a caixa que se revelou enfim vazia. Mas eu consegui levar a caixa ao Malaquias, talvez consiga lá voltar e trazer uma outra para cá. E nesse intuito voltou a adormecer acompanhando Malaquias para se encontrar consigo mesmo, na pele dela. 

 O vale descia por uma encosta de onde no topo tudo parecia indefinido. Cá em baixo, num balcão a artesã discutia com um cliente que regateava o preço da caixa Não posso baixar o preço, mas é para oferta não é? Qual é a cor preferida dele? De que gosta ele? Malaquias aproximou-se e aguardou a sua vez de ser atendido num cenário que parecia um acampamento de gente nómada. A artesã interrompeu então a conversa Não são permitidos acordados aqui, o que faz aqui? Malaquias não compreendeu a questão e ele percebeu que ela não estava a falar com Malaquias e sim consigo. O chão tremeu então e água começou a surgir-lhe nos pés. 

Não pode ser, não pode ser. Não consigo acordar. São as vozes do inferno que me estão a puxar, mas porquê? Que crime cometi? E um calor medonho tomou conta da sua cabeça transpirando agora em apneia. Malaquias não o havia visto porque antes era ele, e agora em vez de passar a ser ela, havia sido retido pelos infortúnios do subsolo, sem um rosto onírico por onde pudesse fluir. Os acordados não podem lá estar. Mas então como sair dali? O calor expandia-se e sentia já os cabelos a arder, fumando turvando-lhe a vista. Conseguia agora ver todos os outros em sofrimento no flagelo do castigo. E foi assim que Uriel voltou a aparecer, voando sarada. Pegou nele e ascendeu depositando-o novamente no vale dos despenteados. Uriel, que redenção esta? Ela riu-se Meu caro, nada é de graça, para te tirar de lá prometi-lhe mais tarde a tua alma, apenas te ganhei tempo, entretanto como agradecimento e se não quiseres para lá voltar terás de me entregar o saco dos dragões e para isso serás Malaquias. Nesse momento sentiu então a mão pousar no balcão sobre a dele Como é? O que vai ser? A artesã falava com Malaquias. Olhou para o saco e para Uriel que aguardava serena. Encalhado. Aceita trocas? A artesã fitou-o e apontou-lhe para uma placa com o preçario convicta. Ele insistiu Não é uma troca qualquer, o que diz da possibilidade de ser humana acordada, viver a minha vida nessa outra vida e em troca, transformar este saco de dragões em mil caixas de mágicos pequenos anjos, mais poderosos que os outros, mas para sempre, pequenos. Pequenos soldados que nas mãos de Malaquias serão o futuro de todos. A artesã desconfiou Parece-me uma oferta irrecusável mas, com certeza deve ter rasteira. Ele uniu as mãos implorando-lhe de confiança Acredite em mim, quem paga a fatura sou eu. Ela pegou então no saco de dragões e com múltiplos braços trabalhando a todo o vapor transformou-o em mil caixas. Uriel enfureceu-se Tu escolheste. Ficarás para sempre no Inferno. E retirando-o do corpo de Malaquias atirou-o ao subsolo, às entranhas das mãos do demónio.

IV

A artesã acordou na pele dele, na cama dele, na vida dele. Tinha em si o condão de compor as caixas para os acordados. Malaquias do outro lado, levara o exército semeando-o e deixando-o ao cuidado de cada criatura sobrenatural para que fossem protegidas e ele, retido nas entranhas, sofrendo, soube, que nunca mais dali sairia mas que todos os outros poderiam continuar a sonhar. Restava-lhe como consolo, recordar pequenos excertos de outros momentos congelados no tempo do sonho já sonhado. Nesse volteio da rédea de alvoradas fantasmas.

Toma esta garrafa, quero ver a que sabe o teu paladar, a que sabe esquecer me na tua boca. Neste último golo, bebe-me de um só trago sem engasgo, sem receios, sem depósito, nos vamos ser Paris que deus fiz. Ne me quitte pas.

E a pergunta do porquê fê-la um dia ao demónio donde lhe respondeu satisfeito Porque interferiste com o meu plano. O homem que não sonha, não está perto de Deus, logo, é meu. 

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