I
O vaso onde aterra e à semente deposita o gesto de uma alma, que cresce e se deixa fluir. Mecânica a floresta urbana onde as flores não são flores, ao invés, pedaços de árvore, incompletas ou uma parte. É a geometria desta mestria que acorda e se perdoa. Porque tinha de ser assim não é? E mais um braço, e mais uma porta e mais uma boca e mais uma corda. E se move alimento. Como seria sem nós? Os gaios e as gazelas, as girafas e as aguarelas. Sem voz, no vazio de um rugido surdo. Ecos de uma presença ausente mas que está lá, por toda a parte.
Voou por cima dos telhados, trepando, saltando, correndo mais depressa que a própria voz. Não sinto nada e ao mesmo tempo sinto tudo dentro de mim como se de mim não viesse. A corda de um violino gemendo de elevação, ergueu os braços e deixou-se cair de pé. Para chegar à terra alguém.
Pingos de chuva caindo vorazes. Competindo um corpo em queda livre e livre. Abrandou tocando de leve no alcatrão sentindo enfim a verticalidade do eixo. Hoje sou. De não saber quem, tudo tinha ao seu dispor, a hegemonia da escolha do amor pelo ser.
A página em branco é a melhor sensação de estar vivo. Por isso ponderou a partir desse momento cada passo, cada avenida, cada lugar, porque a partir daí seriam seus. E começou a andar em consciência plena. Atento, alerta, sentinela dos contornos e das fronteiras, do espaço que os seus olhos construíam dos objectos que se erguiam.
E ao chegar a uma grande praça, o encontrão de quem sem jeito passa, sentiu a necessidade de uma carapaça. Talvez uma armadura de uma malha de nuas peles, de cada um a estátua, todos em si a fonte. Só porque dessa forma seria mais seu, o apropriar de tudo. E das finas formas de dentro, camadas, cobertores, vestes e capas de super homem, de lobo mau, de cavaleiro e rei do mundo inteiro. Mas o rei vai nu.
Desculpe, gostaria de saber o meu nome. Seria possível indicar-me o meu nome?
Entrando numa biblioteca, percorreu o espaço olhando depositadas em silêncio as campas do pensamento. Sobre uma mesa e um candeeiro, abriu um livro ao acaso. Que personagem serás tu? Fala-me de ti. Absorvendo degustando cada palavra encadeada. Numa sequência elaborada, o antes e o depois seguro de rédeas métricas. E levantou-se, subiu a mesa e soletrou bem alto letras dispersas, soltando agora suas as palavras aprisionadas. Seguindo o exemplo do poeta. Tomando-lhe o rosto, aprendendo com ele a dor da ausência de dentro.
A página em branco é a melhor sensação de estar vivo. Por isso ponderou a partir desse momento cada passo, cada avenida, cada lugar, porque a partir daí seriam seus. E começou a andar em consciência plena. Atento, alerta, sentinela dos contornos e das fronteiras, do espaço que os seus olhos construíam dos objectos que se erguiam.
E ao chegar a uma grande praça, o encontrão de quem sem jeito passa, sentiu a necessidade de uma carapaça. Talvez uma armadura de uma malha de nuas peles, de cada um a estátua, todos em si a fonte. Só porque dessa forma seria mais seu, o apropriar de tudo. E das finas formas de dentro, camadas, cobertores, vestes e capas de super homem, de lobo mau, de cavaleiro e rei do mundo inteiro. Mas o rei vai nu.
Desculpe, gostaria de saber o meu nome. Seria possível indicar-me o meu nome?
Entrando numa biblioteca, percorreu o espaço olhando depositadas em silêncio as campas do pensamento. Sobre uma mesa e um candeeiro, abriu um livro ao acaso. Que personagem serás tu? Fala-me de ti. Absorvendo degustando cada palavra encadeada. Numa sequência elaborada, o antes e o depois seguro de rédeas métricas. E levantou-se, subiu a mesa e soletrou bem alto letras dispersas, soltando agora suas as palavras aprisionadas. Seguindo o exemplo do poeta. Tomando-lhe o rosto, aprendendo com ele a dor da ausência de dentro.
II
De regresso à fonte parou no espelho de água. Então foi este o rosto que me deste? Serei homem ou mulher? Serei novo ou velho? Serei bom ou mau? E apenas chorou, contribuindo para a queda dos veios vaporizados que continuamente se renovam sendo eles mesmos. Voltou a olhar no espelho e do seu corpo se desfez um outro. Gémeos? Eram agora dois de mãos dadas refletidos. Para que não me sinta só. Refratando-se na mágica presença de dois de uma só placenta. Sabes para onde vamos? E o outro sorriu de ironia Ninguém sabe, parece que a sabedoria ficou toda do meu lado e do teu, a inocência. Pela primeira vez se confrontou com a estranheza Pensei que fossemos um só. O outro olhou-o com compaixão Talvez esteja na hora de escolhermos nomes para nós. E a estranheza deu lugar a um remoinho sem nome que vinha do ventre Mas somos nós que escolhemos? E começando a caminhar respondeu-lhe Anda, caminharemos lado a lado, num um atrás nem outro à frente, sim no nosso caso, escolhemos. Somos únicos, não percebes?
Na confiança do outro sentiu o chão mais terreno a seus pés Nesse caso, gostaria de ser Bela. E parando diante de uma montra de figurinos alongados desejou vestir-se E tu? O outro acariciando o queixo onde crescia agora uma penugem que engrossava chegando-lhe ao pescoço disse Se já escolheste o sexo, resta-me ser homem, serei Gabriel. Saindo vestidos de pessoas, a caminhada parecia agora mais suave, como se fossem apenas mais dois entre os outros. Precisamos de uma tarefa, é isso que fazem os outros por aqui, o que gostarias de fazer? Bela andando observava a vida que os outros aparentavam Parecem carregados demais com as suas tarefas, não parecem? Gabriel parou diante de uma venda de rua, uma senhora vendia carcaças e outra ao lado fruta Acho que começo a sentir aquilo que chamam de fome, sim estão mesmo carregados, porque carregam todas as tarefas desde o primeiro momento, muitos não sabem como libertar-se delas, resolve-las. Bela passou a mão pela barriga Fome? Sinto algo parecido mas dentro do peito. Sabes o que é? Gabriel estendeu a mão à senhora e na sua mão apareceram duas moedas que deram lugar a duas carcaças de pão ainda quente. Segura com a tua própria mão, o que sentes? Ela levou o pão quente ao rosto e fechou os olhos Algo como um conforto morno que me acalma. Desviou as suas mãos e levou a boca dele à dela, beijando-a. E agora? O que sentes? Ela entregou-se e ao ouvido dele disse Sinto o corpo todo a arder. Gabriel afastou-se Talvez seja por isso que fomos criados dois, anda, temos de encontrar a nossa tarefa.
III
A noite foi caindo e a caminhada passou por uma rua de boémios entreténs, Bela absorvida pela música que escorregava pelas paredes. Uma porta se abriu para entrarem dois homens e ela viu uma rapariga quase nua dançando num varão de clarões vermelhos Gabriel, acho que gostaria de aprender a dançar assim. Mas Gabriel estava absorvido com outros dois homens que conversavam dialécticos segurando copos de bebida Eu quero aprender a falar assim, serei messias. Amanhã começaremos a aprender os nossos ofícios.
Junto ao rio procuraram por um abrigo deserto para passarem a noite. As luzes da cidade desmaiavam na água e a lua iluminava a copa celestial estrelada. Bela deitou a cabeça dela sobre o peito dele Serás tu o mais forte? Sinto necessidade de me encolher dentro de ti para descansar, foi um dia muito intenso. Já te perguntaste porque estamos aqui? Gabriel penteou-lhe os cabelos com os dedos Recordas-te de alguma coisa antes da queda? Ela procurou na memória mas a brancura de nada foi tudo o que encontrou Tu recordas? Ele apertou-a com mais força beijando-lhe a testa Eu vim de ti, depois, lembras-te? Bela fechou os olhos e embalando-se adormeceu no cansaço terreno.
Acordaram com um enorme contentor que levantava voo para ser empilhado numa torre de outros tantos. A vida do cais acordara bem cedo. Gabriel abriu os olhos Acorda, está na hora de começar. Bela de um rasgo para a realidade demasiado rápido espreguiçando-se Na hora? E como vamos faze-lo? Calmamente ele compôs a roupa Iremos para uma escola, é lá que eles aprendem os ofícios deles. Bela impacientou-se Com eles? Estarei em contacto com eles agora? Já? Não sei se sei agir como eles, e se eles percebem que não somos iguais? Gabriel levantou-a e ergueu-a no ar, em rodopio de contentamento É essa magia, apaixona-te pela apropriação do movimento, pela partilha e rotação do teu corpo, abre os braços e dança Bela, dança no espaço desenhando emoção. Bela abria os braços de felicidade abrindo o peito ao céu Gabriel, como tudo é tão belo desde que te criei...Gabriel que nausea tão encantadora.
E deitando-a no colo para leva-la à vertical Mas iremos sozinhos Bela, separados, depois à noite voltaremos a ver-nos aqui. Foi como se um espeto se tivesse cravado em toda a sua coluna e o medo se instalasse petrificando os seus membros Sozinha? Mas...eu pensei que nunca nos separássemos...
Não, Bela, a nossa experiência é individual, a nossa tarefa é única, uma para cada um. Por isso somos diferentes. Mas no final do dia eu estarei aqui e tu estarás aqui comigo. E viveremos outras experiências juntos, fomos assim concebidos.
Bela não queria viver esse momento, sentia que apenas uma parte de si iria com ela. Como se caminhasse apenas com uma perna. Mas Gabriel despediu-se indicando-lhe o caminho. Ficou ainda por momentos em desalento, faltava-lhe a coragem para ser. Quando caíra não sabia o que era ter alguém para partilhar a caminhada, não sabia sequer que era possível existir dessa forma. E agora, depois de criar Gabriel, sentia-se mais frágil. Ocorreu-lhe que nessa presença estariam todas as suas falhas, todas as suas rupturas futuras. Que estando sozinha, seria mais forte. Mas Gabriel era parte de si, como podia deixa-lo para trás? E como tudo para ele era tão simples e definido? Porque tinha ele tantas certezas? Talvez não tivesse, talvez apenas o demonstrasse. Bela inspirou fundo e procurou no movimento de uma gaivota o molde para que os seus braços aprendessem a erguer-se de novo, sozinhos. E dançarei, dançarei como nenhuma outra criatura viva, com a paixão do voo de um ser livre. E à noite regressarei aos braços dele.
IV
Gabriel entrou pela sala com a confiança de um elefante e sentou-se na linha da frente. Com garras de fome engoliu todas as palavras enchendo o peito de manhas e as mãos de lúdicas farsas. Quando a aula terminou juntou-se aos outros e começou o discurso elevando o punho Aos homens cabe a tarefa de Deus aqui na terra. Os outros franziram o sobrolho desconfiados mas Gabriel continuou extasiado A cada um um desígnio, a cada um um destino e a todos um só caminho, o da iluminação da alma. Como uma escada, degrau a degrau a descoberta da tarefa finita que outros continuarão em vida. Elevando-se o espírito da vontade, erguidos os braços em liberdade. Quando proferiu a palavra liberdade uma chama se acendeu no olhar dos outros e a voz dele cresceu com ela. E muito em breve era seguido por muitos pelos claustros saindo para a rua. Gritavam em uníssono À Liberdade, em consciência a vida é nossa, nossa! Sejamos poucos, sejamos mais, sejamos todos, que a voz tem a força de uma só corda, a glória! Acorda!
A multidão foi escalando e despertando a atenção de quem nem sabia o que se passava mas que se juntava só porque a energia era contagiante. Mas como ela veio também o distúrbio, a destruição que com pedras atiradas ao acaso levou à intervenção de forças de contenção. Gabriel já não era a voz comandante, estava agora no chão, atropelado pela confusão em desespero de falta de controlo. Perdido e espezinhado gatinhou afastando-se olhando para trás o caos criado. Deitou as mãos à cabeça e chorou de tristeza. Regressou ao cais e esperou por Bela com toda a desilusão pesando sobre a sua consciência. Como teria sido o dia de Bela?
Bela entrou pela sala com a delicadeza de uma gazela. Sentou-se no chão atrás de todos. Alguém explicava o exercício que se seguiria. Imaginar que estamos debaixo de terra, soterrados e que nos queremos libertar para respirar, para chegar à superfície. Imaginar a força do peso do que nos prende, nos sufoca e escavar, com toda a nossa vontade escavar para respirar. Bela deitou-se para trás olhando as luzes da sala e olhou para o lado, com o ouvido colado ao chão. Lá estava o espelho e a imagem de Gabriel caindo-lhe ao ouvido Fecha os olhos e sente. E dançou, movendo-se, o corpo se espalhando pelo chão, raiando como estrela, enrolado, desenrolando como concha e respirando vida. Terminou a aula com as palavras O caminho é longo, a disciplina necessária e a força para resistir à frustração dos nossos próprios limites essencial, mas a chegada é glorificante, o encontro com a satisfação da elevação extasiante e quando consegue chegar aos outros, contagiante. Regressou ao cais cansada mas feliz e desejosa de partilhar com Gabriel o seu dia, como teria sido o dia de Gabriel?
V
O vaso onde aterra e à semente deposita o gesto de uma alma, que cresce e se deixa fluir.
Nos braços dele se encontrou enfim, escutando o choro miúdo que lhe chegava da alma Gabriel o que se passou? Gabriel ajoelhou-se e com toda a tristeza do mundo confessou Eu errei, os homens não precisam de messias, precisam de guias. Não precisam da liberdade, precisam de significado. De um sentido para existirem, e eu não sei o meu, como posso proferir a palavra do deles?
Bela ficou pensativa, na verdade durante o seu dia se deixara fluir no encargo de uma tarefa de pesquisa, talvez bem mais simples, talvez a simplicidade fosse a resposta Gabriel tu vieste de mim, tens em ti a força e a coragem que eu não tenho, mas tal como no movimento, é preciso canalizar as nossas energias para escutar o que vem de dentro e no momento certo e na forma certa, existi-lo. Tu só precisas de encontrar a medida certa para que as tuas palavras cheguem aos outros na forma perfeita, para que sejas o braço da força que os liberta e o abraço da força que os contém. E agora por favor, abraça-me, quero conhecer o que é isso do sexo.
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