I
Os sapatos vermelhos de salto envernizados andando enviesados pela rua empedrada. Dias carregados de humidade, cinzentos e aéreos. O silêncio quebrado pelos estalidos e uma respiração pesada. Deambulando ao acaso, o casaco de peles afagando o peito cobrindo o vestido de crepe em base evasé. Um candeeiro deixado para trás e a lua se espelhando na água quieta. Assim chegou a noite caindo devagar. Na ponta do cigarro a cinza que ao vento desliza. Perdida, um anjo decadente. E no entanto, uma serenidade anestesiante. Pé ante pé, como se mais ninguém existisse. Como se dentro de um bosque encantado, verde transpirante de espelhos vagos.
As pedras dos meus avós, ancestrais, caiadas do tempo de musgos juventos...levo-as no bolso para junto ao rio me atirar pesado. Lá estava ele, um homem debruçado na beira do rio que atravessava a cidade sem sair do mesmo sítio. Chorando muito, de joelhos quase caindo. Ela apressou o passo e aproximou-se Posso ajudar? Seja o que for eu estou aqui. O homem abraçou-se a ela molhando-lhe o rosto Ninguém pode, ninguém me pode calar esta dor. A mulher abraçou-o com mais força Eu estou aqui.
II
Pegou nela ao colo e levou-a da cozinha para o quarto. Deitou-a sobre a cama e beijou-lhe o pescoço Ainda me estranhas? Ela deixou cair a cabeça sobre o ombro dele Estava só há muito tempo, estranho tudo.
Ele tinha por hábito mudar-lhe as coisas de sítio e ela vinha e voltava a colocar tudo no lugar. Ele dizia que ela trabalhava demais e que não tinha tempo para ele. És tão meiga para mim, compunha depois. Como se um gato de rua, acolheu-o na sua casa e amava-o de todas as formas possíveis. Amava a necessidade que ele tinha dela e amava a força com que a amava, amava o olhar puro e singelo que ele tinha da vida e amava o olhar triste e quieto que às vezes lhe caía. Amava o presente em que viviam e amava até o passado dele que não conhecia. Amava-o como se ama algo que por dádiva nos cai nas mãos num momento único e por ser tão precioso, amava a vida que lhe dera.
Gostava de poder satisfazer-te. Dizia ele por graça depois de fazerem o amor. E ela beijava-o e preparava-lhe o jantar com carinho. Depois passeavam pela noite fora num abraço longo e dormiam o sono do lugar sem tempo. E foi assim, até que as primeiras pedras voltaram a emergir como se mergulhadas estivessem ao longo de todo esse tempo ao rio atiradas.
As primeiras discussões por nada, os primeiros amuos de horas, dias, semanas, as primeiras noites no sofá, as primeiras saídas de casa, o afastamento caindo como partículas sedimentando, a tormenta no lugar da paz. Um dia ela chegou a casa e encontrou-o chorando caído a um canto Porque choras? O nosso amor não é tudo? E ele cansado de não saber respondeu Não consigo mais viver por ti, tentei, agradeço-te por tudo mas não sou mais capaz. Ela revoltou-se e bateu com a porta gritando Pois então mata-te, mata-te de uma vez só, não quero mais saber. Mas ele não matou. Matava-a a ela, aos poucos, de dia para dia, consumindo-o de dor profunda e intolerável.
III
És um sonho, um sonho de uma noite de Verão. Um tango e uma valsa, o arco-íris e a nuvem que o disfarça. És o meu sonho de criança. E assim, tudo voltava a ser como antes. Com o tempo ela foi aprendendo que ele se levantava mais depressa se o ignorasse, que a paisagem de uma morte certa era uma miragem e que juntos, construindo tempo de vida, eram felizes e ele era também feliz à sua maneira. Se a desgastava? Por demais, de certo. Envelhecera anos na presença dele, os seus cabelos pratearam e a esperança de uma outra vida se foi desvanecendo numa crença tão mais concreta, ele era a sua tarefa. A responsabilidade do salva-vidas. Mas se ela era também feliz ao lado dele? Se era e como era. Não foi assim que o desejara, não fora a ele que escolhera, o destino os escolhera por mero acaso.
Finalmente chegou a minha vez de cuidar de ti, estarei aqui para todo o sempre. E ela que nesse dia descobrira a doença, absorta num misto de tristeza, caída de mágoa pela vida chorando O todo o sempre será para breve, o que será de ti depois de mim? Ele não sabia nem queria saber no agora Tu vais-te curar, tens de acreditar que sim, eu acredito que vais. Pela primeira vez na vida sentia o que era tomar conta de alguém, como se outro eu nascesse dentro de si, anulando-lhe a dor de antes, agora era essencial existir. Foram tempos de desespero e angústia. E ele nunca abandonou a cabeceira dela sempre insistindo na teimosia da cura, não tendo mais a que se agarrar. E ela curou-se.
A medicina não lhe deu explicação mas a espiritualidade sim, dizendo ter sido a força do amor. Debilitada mas viva, ela regressou a casa meses depois. Ele preparara tudo, flores espalhadas perfumando o quarto Tens de descansar, eu cuidarei de ti e ficarás de novo tu mesma. Ela olhou para o canto onde tantas vezes o vira encolhido como um animal ferido e ainda frágil disse-lhe ao ouvido Se for para voltares a ser tu mesmo, prefiro ficar assim para sempre. Ele apertou-lhe o braço com fúria Como podes dizer isso? Nada será como antes, sei o que é pensar que te perdera e sei o que sentes agora quando pensaste em me perder, como pude estar tão cego? A vida é um milagre, único. Só estamos de passagem uma vez.
IV
Os sapatos vermelhos de salto envernizados andando enviesados pela rua empedrada. Dias carregados de humidade, cinzentos e aéreos. O silêncio quebrado pelos estalidos e uma respiração pesada. Deambulando ao acaso, o casaco de peles afagando o peito cobrindo o vestido de crepe em base evasé. Um candeeiro deixado para trás e a lua se espelhando na água quieta. Assim chegou a noite caindo devagar. Na ponta do cigarro a cinza que ao vento desliza. Perdida, um anjo decadente. E no entanto, uma serenidade anestesiante. Pé ante pé, como se mais ninguém existisse. Como se dentro de um bosque encantado, verde transpirante de espelhos vagos.
As pedras dos meus avós, ancestrais, caiadas do tempo de musgos juventos...levo-as no bolso para junto ao rio me atirar pesada. Lá estava ela debruçada na beira do rio que atravessava a cidade sem sair do mesmo sítio. Chorando muito, de joelhos quase caindo. Ele apressou o passo e aproximou-se Precisa de ajuda? Dessa forma ainda vai cair ao rio. Ela levantou o braço afastando-o Não preciso de nada, vá-se embora, ninguém me pode ajudar. O homem enternecido, sentou-se ao lado dela Se cair, caio consigo. Ela olhou para ele e procurou no seu olhar por algo de tão antigo que pudesse ainda lá estar, de uma outra vida, a presença dele Em que calha estamos? E nesse momento, dentro dos olhos dele, se iluminou o rosto do animal ferido e frágil Estaremos sempre aqui, como pedras atiradas ao rio, à espera de nos emergirmos. Sempre, aqui. Abraçou-o então sentindo nos braços dele a presença do outro Não estamos de passagem uma só vez pois não? Estamos infinitamente presos numa mesma calha que se muta, que nos muta, mas que ao mesmo rio aflua.
Porque três meses depois de curada, falecera e ele ao rio regressara.
E esses sapatos vermelhos, porque andando enviesados pela rua empedrada, ao acaso, ao fundo do rio atirados, caiados então de musgos juventos...
Porque três meses depois de curada, falecera e ele ao rio regressara.
E esses sapatos vermelhos, porque andando enviesados pela rua empedrada, ao acaso, ao fundo do rio atirados, caiados então de musgos juventos...
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