domingo, 23 de novembro de 2014

A comédia Divina



I


Costumava acontecer com frequência no timbre um esgar de agressividade camuflada no sorriso. Assim era o seu sorriso. O palhaço triste ou o pateta alegre, talvez nem ele mesmo soubesse da composição do seu sorriso, era seu, era tudo quanto de certo tinha. E tanto o fazia sorrir uma lágrima no rosto de uma criança como uma piada de um amigo. A dor e a felicidade faziam-no sorrir, porque sentindo estava vivo. Todos rimos e choramos, uns com os outros, uns dos outros e até de nós próprios. A sua missão era espalhar o sorriso mas por vezes esse esgar escapulia-se, vindo de tão ínfimas profundezas que nem a si mesmo reconhecia. Sim, eu sei, o mundo tem maldade e eu tenho-a dentro de mim também. Ás vezes odeio, sinto-me amargo, invejo ou desdenho. Peco por todos e magoo. O meu sorriso também dói, por vezes. Mas ainda assim, sentia-se feliz porque errando estava vivendo. A perfeição foi moldada por quem? Tão pouco tempo estiveram na terra os profetas da perfeição que nem tempo tiveram de errar. É na linha do tempo que nos revelamos, mas para isso é preciso tempo de cá estar. Não há escritos sobre eles em criança, não há pois não? Quem os educou, em que moldes? Nasceram e logo logo se tornaram homens deuses. Mas é na criança que esse sorriso melhor se espelha, não é? É a criança que fica em nós que erra, é ela que de vez em quando nos perde, nos confunde, nos abandona da nossa alma. Por que o profeta adulto é perfeito, a sabedoria da idade, desse estado de permanente segurança que o permite ser e fazer os outros felizes.

As luzes acenderam-se e o monólogo terminou. As pessoas começaram a espreguiçar e levantando a saída foi deixando a sala vazia. Só ele permaneceu sentado em silêncio olhando o palco. Algo de muito seu estivera ali presente naquela noite. As suas palavras, as suas angústias, os seus medos. Um personagem de tanto seu quanto o próprio. E visto agora de fora, na voz de outro, foi como se tudo se revelasse enfim. Eu sou especial. Estas as palavras que lhe martelavam o pensamento. Os aplausos foram curtos e sem euforia, e os bocejos ao longo da peça mais que muitos. A crítica seria severa mas este estado em que encontrava era sublime. Como se estivesse acima de tudo isso e nada lhe pudesse tocar. Olhando de cima, ele era a cúpula onde respiravam todos os outros, onde permitia que existissem. Ascendendo a deus, seria mais ou menos isso. Mas deus tem tanto de perfeito como de torcido. Porque permite a dor, a morte, a doença e a solidão. Diz que é pelo equilíbrio que permite a existência do mal e que deu aos homens o poder da escolha para dele se refugiarem. Diz assim, mas para ele, a revelação era outra. 


II

De fato cinzento e mala de couro a tiracolo, ia andando despreocupado pelo passeio comendo de um pacote, batatas fritas. Dir-se-ia que caminhava ali uma criança num corpo de velho. Sorrindo, a quem passava, como se a todos conhecesse. A essa hora da manhã, crianças passavam em grupos para visitar o museu, na euforia de um dia diferente. Ele encostou-se a uma parede e sentiu-as passarem através de si. Uma mais pequena e frágil, deixando-se ficar para trás chamou-lhe a atenção. No momento em que passou por si, estendeu-lhe o pacote das batatas Queres? Pareces triste, o que se passa? E as outras se foram afastando e ela de olho no pacote São boas, posso comer outra? Podes comer as que quiseres, tenho mais em casa, vivo aqui ao lado, queres vir comigo? A criança olhou-o e vendo-o sorrir, confiou. Os dois seguiram atravessando a rua e entrando por um prédio um pouco à frente. No segundo andar de uma pequena casa arrumada vivia. Podes sentar-te aí, vou buscar um pacote só para ti. A menina ajeitou-se no sofá compondo a saia. Olhando em redor, uma sala um tanto despida de conforto. Ele regressou com o pacote Como te chamas? Podes tratar-me por Elias. Ela comendo com gosto perguntou Mas não é o teu nome? A mão dele procurou os cabelos dela mas recuou Estará na hora de te juntares aos outros, já devem estar preocupados, vou levar-te. E ela dando-lhe a mão Posso levar o pacote comigo? Saíram do prédio e ele apontou-lhe a entrada do museu zelando para que atravessasse a rua em segurança. Seguiu-a andando com o pacote na mão, sorrindo. É isto que é ser deus não é? A maldade conspirando-me  a vontade e eu dizendo-lhe que não com maior dos sorrisos. O sorriso de deus. E com este pensamento regressou a casa para continuar a escrever a próxima peça. 
Quando a porta se fechou atrás de si, escutou o telefone começando a tocar. Era o director do teatro, não haveria mais espaço na companhia para as suas peças, fora um fracasso. Desligou e apático voltou a sair de casa. Apanhou um autocarro com destino ao hospital. 


III

Inscreveu-se na recepção informando que tinha uma enorme dor de cabeça. Aguardou por duas horas para ser atendido, observando na sala de espera os doentes condoído de sorrisos. Quando conseguiu passar, contornou o gabinete onde deveria ser atendido e meteu-se no elevador. Subiu ao décimo piso e vagueou pelos quartos dos doentes. No quarto 29 estava um senhor de idade avançada ligado por fios e tubos acamado dormindo. Não havia flores, nem cartões desejando as melhoras, não havia sequer a preocupação de lhe abrir a janela para entrar a luz do dia. Seria um doente terminal deixado para morrer em silêncio. Aproximou-se do rosto sereno enrugado e beijo-o, retirando suavemente os cabos que o mantinham vivo, desligando a máquina. Não mais sofrerás. Parte em paz para junto do meu pai que está no céu.  Depois voltou-se e ligeiro regressou ao piso térreo procurando o gabinete para ser atendido com uma forte dor de cabeça. 

Regressou a casa, com um saco de analgésicos fortíssimos e ao passar por um mendigo que tombado estava na porta do supermercado baixou-se e entregou-lhe o saco Toma-os todos de uma vez, verás como tudo vai passar em breve. O outro entreabriu os olhos pegou no saco e abriu a caixa levando à boca um a um, de enfiada. Afastou-se e seguiu apanhando outro autocarro que o levava ao pior bairro da cidade. O dia invernoso começava a cair para a noite. O motorista vendo que a campainha fora tocada por ele disse preocupado Tem a certeza que quer sair aqui? Não parece pertencer lá e a noite está a chegar. Ele sorriu e desceu metendo-se pelas vielas cadavéricas do degredo. Escutavam-se gritos e choros de crianças e o cheiro era nauseabundo. As portas não eram portas, eram portões blindados que fechavam as barracas só por favor, como se uma corrente de ar mais forte não entrasse como furacão e levasse pelos ares o tecto falso. Subiu ao topo do monte e contemplou a encosta de cartão deixando que a noite cerrada se instalasse. 
Lá em baixo na estrada havia um posto de gasolina, enchendo um garrafão passou porta a porta deixando o rasto sem ser visto. E puxando de um fósforo a encosta se iluminou de labaredas e explosões de bilhas de gás. O espectáculo era dantesco. Partiu sorrindo feliz. 

IV

Quando acordou na sua cama as suas roupas cheiravam a gasolina e a morte alheia. Mas uma satisfação estrondosa lhe tomava o peito Bom dia meu pai, qual é a minha missão para hoje? Levantou-se deitou o pó castanho perfumado à cafeteira e olhou para o pacote de bolachas onde uma mosca se nutria. As fábricas? Os políticos? Os doentes ou os asilos? Os ladrões ou os mendigos? Os mentirosos ou os airosos? Aponta-me o dedo para algo que eu possa matar em nosso nome.

Foi quando uma dor intensa lhe tomou o coração. O braço paralisando e o rosto desfigurando. Agarrando-se ao frigorífico Meu pai, não, a minha missão só agora vai no início, não. Com o outro braço deitou a loiça toda ao chão e o barulho fez despertar a atenção dos vizinhos que pouco tempo depois estavam a bater à porta. Acordou numa cama de hospital despido das suas roupas e respirando por um tubo ligado a uma máquina. Num quarto obscuro e deserto. A cama 29 do décimo andar. E nesse momento alguém entra pelo quarto, um homem sorrateiro. Sente-o aproximar do seu rosto, beijando-o. Quer falar, desenvencilhar-se do homem e da cama mas não consegue e sente-o então desprender-lhe o tubo desligando-lhe a máquina. A inspiração reteve-se nos seus pulmões e o coração doeu de uma só vez, apagando-se os sentidos. 
Acordou deitado numa calçada com a aproximação do mesmo homem que lhe estendia um saco. Era ele novamente, queria dizer que não mas este corpo não lhe obedecia. Sentiu a sua própria mão a levar à boca um a um os comprimidos e uma sensação de nova dormência tomou conta de si até cair novamente no nada. Ao acordar, o horror tomava-lhe toda a alma, o corpo consumia-se em chamas, os cabelos, as unhas, a pele se rasgando de dor imensa e ele gritando que não até cair de exaustão na morte ardente. 

Acordou novamente na sua cama, dorido e confuso. E a campainha toca. Levanta-se vestindo o roupão e abre, era a menina Olá, venho visitar-te Elias, desta vez trouxe-te eu batatas. E sorriu-lhe docemente. Ele espantado aponta-lhe o sofá e fica a observar a naturalidade da confiança dela. Se eu matasse agora meu pai? Seria esta a última das mortes que me levaria para junto de ti? Ela ofereceu-lhe uma batata. Como sabes que eu sou uma pessoa boa? Ela não compreendeu a questão. Como sabes que não te faço mal? Ela olhou para o chão chorando Pior do que o meu pai não és de certeza, acredito em ti. Ele abraçou-a, um abraço tão antigo que o fez sentir a alma do mundo inteiro. Meu pai, meu deus, falhei em tudo não falhei? E tudo o que eu queria era ser perfeito e especial. Sentir-me abraçado por ti mas vejo agora, que estás aqui, que este abraço são os teus braços e que não sou senão humano. Escreverei a minha confissão, será a última das minhas peças.


V

E o pano subiu. Elias sentado na primeira fila da plateia inchado de orgulho, aguardando pelo último acto, pela última pessoa abandonar a sala, para que o viessem buscar. Mas tal como na peça anterior, no teatro anterior, na plateia anterior, nada de extraordinário aconteceu. Ficou ali, depois de tudo, no silêncio de uma expectativa desastrosamente só. Em fúria, levantou-se e correu ao átrio onde ainda muita gente de encontrava. Da varanda majestoso gritou Foi tudo verdade, fui eu, eu, prendam-me! Depois de segundos de espasmo os aplausos eufóricos surgiram Bravo, bravo! Genial, bravo! E alguém correu à varanda e o ergueu nos braços. Elias desesperado esperneava de agonia Não vocês não entendem, foi tudo uma confissão, fui eu, eu! E mais ainda as palmas se multiplicaram e os comentários levantaram voz Bravo! De génio! Genial, o personagem vem até cá fora na boca do autor, bravo, o teatro da vida, bravo! 
E Elias libertando-se dos braços que o erguiam no ar, salta pela varanda voando estatelando-se no chão. Os aplausos deram lugar a um silêncio absoluto! E logo alguém volta à euforia Bravo, é um duplo, bravo! Que estrondo de peça! Aguardando que ele se levantasse aplaudindo mais e mais excentricamente. Mas o sangue alastrava-se agora pelo chão de mármore e o realismo da cena abria o cenário do pânico. Envergonhados de si mesmos, os espectadores correram pelas portas e chegando à rua, a explosão foi final, uns rindo de histeria outros rindo de choro e agonia, mas rindo porque vivos. 


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