I
Eu te irei contar a história de um amor, logo depois, logo logo.
Entretanto, um soldado dizia para o outro Sentinela Alerta, um descuido é morte certa. Respeito a minha felicidade quando por ela me alieno, dela me alieno e de longe aceno. O cérebro pensando as emoções e o tempo marcando a cadência. O tempo permite-nos a existência. Então, quando esse soldado era ainda menino, os caminhos iam dar a um só destino, a rua. Das regras fazia brincadeiras, dos restos, brinquedos e do tempo, recomeços. Nada me arrependo, tudo foi pago no tempo da letra em vigor, a bem dizer, com a própria vida. Tudo o que dei, nunca deixou de ser meu, na continuidade da memória, seremos sempre muitos. Mas entretanto o país caía, de um despenhadeiro colapsando na queda do momento. É que é a terra que gira, nunca nos podemos esquecer, olhar o céu antes de partir.
II
E no baile das Açoteias, balões de papel colorido e uma concertina serpenteando. Olharei sempre para ti dessa maneira, sempre. Os soldados bebiam por canecas num à vontade sem guerra. Sempre me perguntei o que guiava esses homens para a morte. Heroísmo ou suicídio? Patriotismo ou cegueira? Também aqui serão sempre precisos homens para fazer uma guerra ou não fosse por eles a sua existência. Já vai sendo tempo de pôr fim a isto tudo. Um apagão humano, e que os novos homens sejam dotados da ausência do ego. E no mundo animal, não as há também? Tudo uma questão de espaço, territórios, posse, donde me pergunto se os animais não terão ego também? Quando o soldado completou cinquenta anos, estes foram os problemas criados pelo seu próprio ego. E ela, na impotência da distância que não mais o unia, pedia, pedia por tudo para que voltasse para si. Ás vezes perdia-se pela casa, buscando as razões de tudo. Olhava o céu, na adivinhação do tempo que há muito tempo, chuvoso. Se não existisse no agora, quem gostaria de ser? O que gostaria de ser, como poderia ser diferente? Escuta-me, eu te imploro, de ti me perco de dia para dia. E depois escrevia-lhe cartas, que deixava do lado da mesa de cabeceira dele. Partia para o trabalho e quando regressava a casa estava fria e vazia e as cartas, por abrir.
Quando era criança a minha mãe mandava-me aos recados, aqui era o pão, aqui o vinho e além os tremoços. Corríamos isto tudo. Não foi isto que cresceu, foi a cidade que se aproximou e sufocou os contornos da minha pequena terra. Aqui era o terreiro, via-os passar nos carros de combate. Quando fiz dezoito anos a minha mãe deu-me a escolher entre a oficina do meu pai e a vida militar. A bem dizer, não tive escolha.
III
Olharei sempre para ti dessa maneira, sempre. E rodopiava à volta dela, confundindo-a, embriagando os seus sentidos de promessas de sorriso para todo o sempre. Casa comigo, casa amanhã mesmo, não percamos mais tempo, se soubesses o que sinto por ti...apetece-me esmurrar as paredes, bater com a cabeça nas árvores, atirar-me para debaixo de um carro. Quando se ama alguém assim desta maneira, é assim, não acreditas? Mas tens de acreditar...o que queres que faça para te mostrar? Casa Minnie, casa por favor.
E casou. Ela que achava que os homens da tela do cinema eram uma fraude, que não existiam ou que haviam sido criados para iludir as mulheres. E tudo não passa de um cenário cinematográfico, além nos campos de guerra a morte é real e muitos foram os que não voltaram. Mas ele voltou, em parte, voltou. A concertina serpenteando e dois corpos dançando como se nada mais existisse em volta. É preciso olhar o céu, medir a espessura das nuvens, calcular o seu trajeto, no espectro das cores, defini-las. É que há muitos tipos de nuvens, sabias Minnie?
E rodopiavam, contrariando a rotação da terra, baloiçando aéreos, saltando de nuvem em nuvem, rodopiaram até que o ego os serenou. E foi nesse dia, que deixaram de dançar. Esse monstro que a concertina calou e o céu fechou.
IV
Se tu partires neste dia de Verão, levando contigo o sol do meu coração, partirei contigo, para parte incerta. Partirei distanciando-me de ti, para parte incerta. Ficarei e não ficarei. Tudo dependerá de como voltares. E assim foi. Pergunta-se hoje se a presença de filhos teria mudado alguma coisa, se cada partícula do corpo dele se projectasse na continuação da espécie, talvez não se deixasse à morte, à extinção do amor. Mas quando ele voltou era tarde demais. E ficava por ali um espaço que em nada tinha de mais seu. Que este ego, não se tratava mais de querer mas de não haver mais o que querer. E no lugar da sua vontade ficara um espaço de nada, uns dias de tristeza ainda, mas tantos outros de mera contemplação do tempo marcado pela exclusiva cadência do mesmo.
Minnie observava à sua volta os restantes membros da comunidade e lá no fundo, bem no fundo, sentia-se contudo agradecida por ter vivido o que viveram. Quando fecha os olhos, consegue recordar-se de cada momento, de cada gesto, de cada palavra. Um amor assim, só mesmo no cinema. Por isso te escrevo estas palavras. Por dentro de mim, memórias de ontem alumiam ainda a esperança. Se for preciso irei contigo, percorrerei esses caminhos negros, encontrarei essas memórias de culpa e juntos, poderemos então regressar. Se for preciso irei contigo até ao inferno, que aquilo que ainda trago no fundo é suficiente para nos trazer os dois ao limbo. Mas terás de querer ir comigo. Lá onde ficaste, só pode estar um. E nós fomos sempre dois. E depois chorava, as cartas sempre fechadas e o silêncio pesando, martelando o nada.
V
Um dia ele partiu. Mas partiu de morte voluntária. E as cartas ficaram na gaveta, por abrir. Uma vida inteira de uma promessa quebrada. E Minnie regressou à tela, aos homens de sonho, aos amores de Cassavetes. Por aqui ficaram muitos soldados mancos, quebrados de vida, atirados aos anos de não esquecimento como balas no vazio. E o país cresceu, a guerra esmoreceu e outras formas de poder tomaram posse.
Eu te irei contar a história de um amor, logo depois, logo logo.
Entretanto a terra há-de continuar a girar, numa rotação certa e a vida, longe das telas, uma paleta de nuvens donde se adivinha o tempo. É que há muitos tipos de nuvens, sabias Minnie?
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