I
Que tal a clarividência? Dizia o mestre para o discípulo passando por um caminho de pedras rolantes, assimétricas num dia de chuva intenso. As alpercatas chapinhando e as nesgas de lama um escorrega de criança. Creio que vejo apenas o que lá está. A copa de uma árvore, uma folha caindo leve, uma nuvem deslizando, um pedaço de terra que afago nas mãos. Cheiro, sinto a textura mas nada mais que isso. Que é isso da alma das coisas? Perguntava o discípulo ansiando respostas para calar a dor da ausência dela. Tudo a seu tempo, para já é preciso olhar, escutar e sentir.
O caminho dava a um desfiladeiro e no seu sonho a inclinação o sugava como de um abismo se caísse. No outro lado do desfiladeiro estava ela, olhando para ele, impaciente. Puxando o corpo atrás procurava a gravidade no ponto central do ventre, mas sonial de fraqueza o seu equilíbrio cedia sempre e rente ao chão, escorregava para a escuridão. Vendo então o desfiladeiro na beira dos seus pés comentou a receio Mestre, porque caímos nos sonhos? O mestre estancou e olhando para um pica-pau alheio, falou "So seid ihr Gotterbilder auch zu Staub", mestre não compreendo essas palavras e o mestre explicou Tu que és o rebento dos deuses ou dos godos ou do esterco. O discípulo escutou a explicação e um pensamento lhe tomou o espírito as minhas acções serão a prova. E inspirando de um só trago, desceu convicto a ladeira, gritando eufórico ao chegar lá a baixo Estou vivo, vivo!
II
Enquanto a música tocava, o seu coração caía por uma pauta tombada onde as notas se escorregavam caindo da folha para o nada do chão peganhento do bar. Se te sentasses ao meu colo? Mas ela não escutou, mergulhada num pesar não deixando rasto no trajecto para ser perseguida. Eis a fenda. Foram as palavras que sussurrou. Desculpa não compreendi disse ele. Está muito alta a música, vou lá para fora berrou ela ao seu ouvido. Vou contigo. E ela respondeu Não, agora ainda não, dá-me um momento, espero por ti daqui mais lá fora.
Ele esperou pelo final da música e quando lá chegou, ela já lá não estava. Como pudeste partir sem mim? E cabisbaixo regressou aos níveis insuportáveis de vibrações sufocantes entre todos os outros. Como parado no centro da pista de dança, o ponto central originário do movimento orbital alinhado no ritmo da solidão. Foi quando regressava já a casa, procurando a paragem de autocarro para o apanhar que deu com ela sentada esperando. As mãos arrumando no colo uma expressão de total apatia. Os olhos abertos apenas por cortesia. Quando o viu aproximar-se levantou-se e abraçou-o. Perdoa-me, não sei o que me deu. Talvez tenha sido da bebida. Dei por mim a andar por aí e acabei aqui sentada, não sei se estou aqui há muito tempo. Ele sentou-se ao seu lado e deitou a cabeça dela no ombro dele. Descansa, vamos para casa.
III
A rapariga retirou do bolso o saco dos berlindes que brilhavam luzidios como azeitonas polidas. Vais jogar ou vais ficar a olhar? O rapaz encolhido no baloiço levantou-se e envergonhado mas de pé advertiu Só se for para perderes, mas como sabes perdi as bazucas todas ontem com o Trelas. A rapariga continuou Não seja por isso - e do saco retirou três berlindes - toma, agora não tens desculpas. O rapaz pegou nos berlindes e encolheu os ombros com escárnio Cobras de Água, se fosse para jogar com isso jogava com esferas. Ela desesperando insistiu Vais perdê-las de qualquer maneira, por isso, não te apegues a elas. O rapaz desafiado agachou-se e fez o buraco, deu sete passos atrás e tomou então as rédeas do assunto Se perderes, levantas a saia. Ela corou e riu-se, ainda bem que és um zero à esquerda, vamos a isso, desafio aceite.
Depois desse dia, os berlindes não passaram de pretexto, e do levantar da saia ao baixar das calças ao deixa cá ver se sabes beijar, os dois eram namorados sem saber. E o tempo da escola acabou e o tempo da faculdade chegou e os dois partiram para a cidade juntos para estudarem.
IV
Mestre creio que estou pronto. E o mestre terminando de descascar a maçaroca inquiriu E como sabes disso? O rapaz arrumou as barbas todas a um canto deixando espaço para as próximas. Estou como o milho. Pronto para a mó. O mestre voltou O milho só sabe que está pronto quando a mão do homem o colhe e com um gesto certeiro arrancou a cabeça do corpo clorofílico. Esta noite sonhei com ela. Ela pedia-me para partir. Que estava pronto para seguir viagem e que me despedisse dela para sempre. Por isso mestre, sinto no fundo da minha alma que chegou a hora e que todos estes ensinamentos me servirão para me guiar num caminho. Mas que está na hora de seguir sozinho. O outro ajeitou as pernas na direcção dele em lótus, levou as mãos às mãos dele e passou-as pelo seu rosto. Fecha os olhos, o que vês? O rapaz voltou a ser rapaz e chorou Vejo-a a ela, como se fosse hoje, trazendo um laço no cabelo e o bibe desapertado. O mestre desceu então as mãos ao peito dele e falou Vês então a minha alma, como sofro por ti, por saber que nunca vais esquecer o rosto dela e que mesmo assim acreditas, que é essa a viagem. Mas mestre...e o mestre entregou-lhe as mãos retirando as suas Estás pronto sim.
V
Duvido que mais alguém pudesse reconhecer essa melodia. Tu conheceste alguém chamado Lídia? A jovem cantarolava pela ponte carregando os sapatos numa mão e a taça de champagne na outra. Dançava como doida agora pendurada no braço de pedra que a escassos centímetros a levava ao rio da escuridão que lá em baixo dormia. Ainda vais cair, vem cá. E ele levou as mãos ao rosto dela e uma vez mais, no rosto dela, chorando, o rosto de Lídia. Abraçou-a e gritou eufórico, correndo com ela pela ponte fora Estamos vivos Mia, estamos vivos! E as luzes da cidade foram-se apagando e a madrugada acordando uma cidade tão distante quanto próxima.
Tu que és o rebento dos deuses ou dos godos ou do esterco e o mestre lá do seu milheiral ria, sentindo com ele a alegria da sublimação do amor eterno.
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