I
Ainda nem mal abrira os olhos e já o dia se adiantara para uma manhã de luz mesclada de cinzento a descoberto. O despertador tocou pouco depois. Gostava de ter visto o nascer do sol, o mundo começando a arder por entre as paredes de betão. A máquina a despertar na engrenagem oleada pelo suor e pelo esforço dos que a mantêm. Serão sempre precisos homens, nem que seja para a conceberem que a natureza essa, não precisa de senhor imaginário. Se revela, mutando da mais perfeita das harmonias. Está demasiado frio lá fora para os anjos voarem.
As fundações do afecto retidas no ego. Abraçados as asas são casacos ternos de Inverno. Caminhando uns entre os outros pelas ruas contornadas de fumo, vapores do subsolo escoando das entranhas. É esse olhar que me prende. Hoje, é o tempo que me cativa numa era proibida de existência. Porque as escadas não sobem só descem. Seriam precisos mais dois braços. Que essa desventura nos condena a fronteiras demasiado duras. E passando pela catedral parou um instante. Recordas-te da nossa última conversa? Eu sentei-me no banco de madeira corrido e olhei-te. Em toda a tua serenidade há uma queda do sofrimento à terra, é o gesto da tua mão, a curva da tua testa, a posição dos teus pés e o aperto que tens no coração. Me tomando de compaixão o espírito. Em todos nós cai esse sacrifício. E em tudo no dar é contentamento. Hoje não entro na tua casa, não me sinto convidada. Tenho amargura no lugar de amor.
Seguiu porque seria hora de começar qualquer coisa.
II
E se todos vivêssemos na rua?
É lindo aqui não é? Vives por aqui?
Inclinou um pouco o pescoço na direcção oposta, caindo o olhar de obrigação no jornal seguro pelas duas mãos. O café já estaria frio mas importava toma-lo até ao fim. As mesas dispostas na linha do rio. E os de fora procurando reter o momento numa câmara de gelo. Sentindo-o levantar e partir, pode finalmente olhar para o outro lado. De entre a brancura das paredes em socalcos encosta acima havia uma diferente, como que florida de roupa pendurada, um arco-íris microcosmos idiossincrásico.
E se todos vivêssemos na rua? Se as paredes não fossem senão os nossos olhos?
Assim dormia num banco de pedra, na mais desprovida infância dos conformes da vida. E os outros passando, como se de um cão se tratasse. Em plena luz do dia, este passeio é meu, meu!
Olhou o céu, uma cúpula pesada onde um pássaro de nuvem figurava de asas abertas inerte. É isto não é? É para isto que servem os nossos olhos? Diz-me, o que podem as minhas mãos fazer? Que uma cegueira repentina me pudesse consumir de inocência!
Desceu e parou novamente. Não sabendo se pela rua de cima ou pela rua de baixo. Porquê fazer o mesmo caminho duas vezes? E escolhendo a rua que descia, por onde o eléctrico haveria de passar avistou a mercearia, a tal mercearia que nas suas histórias já aparecera, a tal que imaginara, tal e qual ali mesmo. Pois se nunca havia olhado para lá como podia saber que lá estava? E procurando pela rua, nos labirintos do bairro, que haveria de ter duas casas frente a frente, janela com janela, mais estreita que um fio de cabelo, encontrou-a. E se ele era ele? Então eu seria eu?
Se ela fosse ela, estaria a trabalhar a essa hora na mercearia. Voltou atrás. Entrou, a campainha deu sinal da sua presença. Atravessou o corredor das massas e parou diante dos enlatados. Uma lata de sardinhas. Virou e procurou a caixa registadora. Lá estava uma rapariga, tal e qual, imaginara Elisa. E atrás de si, alguém falou Eu gostava de convidar-te para jantar. A mim? Foi Elisa quem respondeu por fim depois de rir E é isso que vais oferecer-me para jantar? Não era para si de facto o convite, percebeu que nem sequer a podiam ver, que não estava ali, estavam apenas eles os dois, dando seguimento à sua história. Saiu porta fora agoniada. Ele vira-a na esplanada, não vira? Ele falara consigo não falara? Ou não teria falado para si?
Até que ponto a realidade é ela própria? Diz-me tu que em tudo pareces ter a certeza. Não consigo entender o que me queres mostrar? Não compreendo os teus desígnios! O desalento.
III
Regressou a casa. O mundo estava muito confuso lá fora.
Procurou pelo texto que havia escrito meses antes. Não o imaginara bem assim, era pequeno e franzino, o outro era alto e de olhos claros. Mas Elisa era tal e qual e ocorreu-lhe que se ela era ela que podia conhece-la melhor, uma vontade inexplicável de estar perto de si, de senti-la, de escutar o seu pensamento, sentir a sua pele. Sabia que estaria em casa no dia seguinte, Domingo, o seu único dia de descanso. Iria visita-la, a questão era como havia de ser vista por ela, necessitaria de uma ponte. Posso pedir-te umas asas emprestadas? Necessito de ir a um lugar conhecer uma pessoa. E só um anjo poderá fazê-lo. Deixas-me ser anjo por um dia, uma tarde, uma hora? Imploro-te, faz-me anjo por um momento. Dá-me asas.
Nessa noite sonhou que as suas costas doíam, que delas emergiam armações e nessas armações multiplicavam-se penas. E as palavras cuidado com o que desejas caíam nos momentos oníricos como folhas de outono, umas atrás das outras, deixando desnuda a sua demanda. Estaria a desejar algo de tão próximo assim do fim? Acordou com o corpo todo dorido e ao levantar-se sentiu um peso extra nas costas, ao espelho lá estavam elas, as tão pedidas imaculadas majestosas asas. Imóveis, desejou levanta-las para experimentar a sensação, nada. Imóveis. Então lembrou-se do homem que vira dormir no banco de pedra na praça, à luz do dia esquecido. E uma lágrima caiu e as asas levantaram. Como se marioneta de uma leveza subtil chegou ao tecto. A vista de cima. Vestiu um casaco grosso comprido e procurou disfarça-las para sair. Se saísse de casa a voar seria estranho. Mas será que todos a podiam ver? Faltava um manual de instrução para ser anjo.
IV
V
Gesticulava girando o cigarro, ora para fora ora para dentro da boca. Mimo, de copo de tinto na mão, procurava a atenção dos jovens que jogavam dominó. De olhar turvo e sapatos amarrotados. Os rapazes olhando esbugalhados, depois de voltas e reviravoltas, ansiando o final do truque que não vinha. Depois de alguns minutos a gargalhada surgiu.
Queres ver qual é o truque dele - dizia o outro - o truque dele é ter sempre o copo de tinto cheio e quem é que lho vai pagar? Pois, já estão a perceber o truque.
E o cigarro apagando-se, saindo outro do maço e um cheiro de ponta queimada nas mãos por toda sala. A rapariga vendo os outros já arfando de falta de paciência e o gozo a crescer sem dolência, falou para ele.
Como é que se chama? Vem aqui muitas vezes? Mora por aqui?
E a atenção do homem caiu nela. Alguns grunhidos lhe saíram da boca, e o mistério do cigarro lá escondido debaixo da língua mantinha-se.
Não se queima? Vá fale lá connosco, já percebemos que gosta de truques mas nós queremos palavras. Conte lá quem é.
O homem levantou-se indicando que demoraria três segundos, eles olharam uns para os outros rindo, quando voltou trazia um livro.
Não me diga que além de mimo também escreve? É seu o livro? Também se chama António o autor, deixe ver a fotografia, ah mas não parece o senhor, este tem menos cabelo. Não é o senhor pois não.
O outro riu-se.
Então não estás a ver que não.
Com a ponta do cigarro na mão recolheu um pouco de cinza ainda ardendo e faíscas caíram pelas pernas da rapariga.
Ai veja lá as minhas meias, ainda me queima Sr. António.
Abrindo então o livro na última página começou a borrar com o dedo aquilo que parecia o início de um desenho. Concentrado, continuou, borrão a borrão olhando o rosto dela.
Está a fazer o meu retrato! Incrível!
Quando terminou abriu o livro na primeira folha e lá estava um outro rosto, com os mesmos contornos do mesmo.
É sempre o mesmo rosto! É uma mulher! Quem é?
Essa é questão para o prémio final, já estás a ver o cenário não estás? - rindo-se um dos outros.
Quem é Sr. António? É sua esposa, sua filha?
Tenho uma filha que deve ter a sua idade, é linda de morrer.
Sim? E onde mora?
Não sei, não falo com ela há anos. Batia-lhe muito quando era pequena. É tudo uma grande merda, eu não valho nada, uma merda é o que sou - atirando o livro ao chão pisando-o.
Não diga isso, tem muito talento.
Tenho bilhete pago, tudo pago para ir para a Suíça mostra-los em Abril, tenho mais de dois mil guardados. Já foi à casa de banho?
Atrás de si dois homens pegavam-se agora à pancada e a rapariga levantou-se pegando-lhe na mão.
Desculpe António, o ambiente aqui já não é para meninas, tenho de ir, gostei muito de conhecê-lo e espero ver uma exposição sua por aqui, irei com gosto.
E o homem regressou à mímica gesticulando agora para outro grupo que estava ao lado.
Quando saíram, passaram pela casa de banho e as paredes estavam cobertas de borrões. No corredor das escadas que desciam à porta, a mesma coisa, sempre o mesmo rosto, arrastado de linhas curvas negras.
V
O voo, a corrente de ar no rosto. Pensou em aproveitar esta nova sensação. Foi a pé até ao cimo da colina. Da varanda da cidade, encontrando-se sozinha, despiu o casaco, pensou em toda a tristeza do mundo e levantou voo vertiginosamente até lá abaixo. Ainda não sabendo como desacelerar ou parar andou em círculos, contornando telhados, gaivotas e nuvens. Lá do alto experimentou fazer adeus a uma criança que baloiçava no jardim e recebeu de volta esse adeus, mas com os outros isso não aconteceu. Será que Elisa a poderia ver? O voo era uma sensação de liberdade absurdamente louca. Sentia como se estivesse num carro a alta velocidade sem qualquer obstáculo, mas passando tortamente por uma chaminé que quase a descalçou, apercebeu-se de que havia na verdade obstáculos, e que os seus reflexos eram essenciais, que não se distraísse demasiado não fosse um choque quebrar-lhe uma asa. Pensou no porquê de estar calçada e achou que não faziam falta os sapatos. Deixou-os cair cuidando de não acertar em alguém.
Parou na janela de Elisa.
Ela estava em casa. Através da cortina que esvoaçava sentia-lhe os passos da sala para a cozinha, apressada. Entrou e vendo-a sentar-se no sofá com um prato de comida, sentou-se a seu lado. Ela não a podia ver, ainda. Aproximou-se do pescoço dela para sentir o seu perfume e um arrepio tomou Elisa. Tocou-lhe nos cabelos vermelhos, nas sardas ao longo do nariz, no pulso sentindo o batimento da vida. Do prato a massa libertava ondas de calor. Olhou em volta procurando algo que pudesse dar sinal da sua presença. Só querendo ser vistos, eles nos podem ver. Não sabia como de repente sabia isto. E o seu olhar pousou no retrato de um homem sobre uma pilha de livros em desequilíbrio a um canto. Um homem mais velho com alguns traços parecidos com os de Elisa. Seria seu pai? Levantou-se e tocou na pilha de livros que como dominó se espalharam pelo chão deixando cair o retrato. Elisa assustou-se. Pai, não. Largou o prato de comida, correu ao quarto e calçando os sapatos, bateu com a porta. Ela seguia-a voando sobre o seu ombro. Elisa avançou pelas ruas, subindo à praça. Lá estava o banco de pedra e o homem dormindo a serenidade da morte.
VI
E se os homens fossem dotados de asas? Será que caminhavam descalços?Ela estava em casa. Através da cortina que esvoaçava sentia-lhe os passos da sala para a cozinha, apressada. Entrou e vendo-a sentar-se no sofá com um prato de comida, sentou-se a seu lado. Ela não a podia ver, ainda. Aproximou-se do pescoço dela para sentir o seu perfume e um arrepio tomou Elisa. Tocou-lhe nos cabelos vermelhos, nas sardas ao longo do nariz, no pulso sentindo o batimento da vida. Do prato a massa libertava ondas de calor. Olhou em volta procurando algo que pudesse dar sinal da sua presença. Só querendo ser vistos, eles nos podem ver. Não sabia como de repente sabia isto. E o seu olhar pousou no retrato de um homem sobre uma pilha de livros em desequilíbrio a um canto. Um homem mais velho com alguns traços parecidos com os de Elisa. Seria seu pai? Levantou-se e tocou na pilha de livros que como dominó se espalharam pelo chão deixando cair o retrato. Elisa assustou-se. Pai, não. Largou o prato de comida, correu ao quarto e calçando os sapatos, bateu com a porta. Ela seguia-a voando sobre o seu ombro. Elisa avançou pelas ruas, subindo à praça. Lá estava o banco de pedra e o homem dormindo a serenidade da morte.
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