Desconectou-se e escutou então a chuva que caía lá fora.
Tal como se escutasse o silêncio pela primeira vez.
Nós ainda somos do tempo em que não havia internet. Do tempo em que o tempo era vivido com os pés assentes no solo, cara a cara. Mas já não o sabemos ser, pelo menos a maior parte não sabe. Temo por aqueles que já nasceram incorporados nesta globalização fictícia.
Um escudo protector, uma redoma ventral para tentar voltar ao início. Por quanto tempo? Por quanto tempo seria capaz de se manter nesse cativeiro auto proposto e em consciência aceite? Esse seria o seu desafio maior. Renunciar aos vícios que a incorporação na sociedade atual impunham, mas ao contrário de outros que procuravam a terra, ela queria a caverna. Na verdade o seu maior receio era o preenchimento de um vazio que nascera da ausência de um falso estar em contacto, de um falso existir num perfil via chat, email ou sms. A sua porta estaria aberta para visitas de carne e osso, a sua mente estaria disponível para livros, revistas, jornais, mas não televisão. Cada pedaço seu partilhado ou fabulado em rede deveria desaparecer para que emergisse dentro de si a verdadeira consciência de partilha real com o mundo. Desintoxicando-se.
Como disse, num primeiro momento o que escutei foi a chuva lá fora. Os carros passando, as ambulâncias, os cães do bairro, as palavras de um ou outro vizinho, alguém colocando a chave na porta de entrada do prédio. Depois levantei os olhos, fechando o computador pela última vez. E os meus olhos pousaram nas paredes, nas prateleiras dos livros, no sono tranquilo dos animais, na roupa perdida ao acaso pelo quarto. Depois levantei-me, fui até à janela, olhei o céu cinzento que escorria, o dia anoitecendo, senti a brisa da frescura no rosto e regressei ao sofá. Fumei um cigarro. Creio que nesse dia chorei imenso, chorei mais do que no dia em que a minha melhor amiga falecera. Chorei por mim, pela vida que levara até aí, pelos que vivem dessa mesma maneira e sofrem, pelos que vivem dessa mesma maneira e nem sabem que sofrem. Depois de chorar, apercebi-me de que tinha fome, antes não tinha dado pela vontade de comer.
Não sabia ao certo que horas eram, não tinha importância, procuraria encontrar o horário natural do seu corpo biológico. O frigorífico estava quase vazio. Procurou com alguma criatividade elaborar uma refeição com um pedaço de pão, um pedaço de queijo já seco, um ovo e café. Sair para ir ao supermercado estava dentro das poucas tarefas que tinha permitido realizar fora de casa. Essa e a de passear o cão. Provavelmente a de comprar tabaco estaria associada ao passeio do cão.
Penso que o silêncio visual é neste momento o meu maior incómodo. A passagem de janela em janela, a procura de informação ou novidades na navegação. E a ideia de estar ausente, desligada de tudo. A nível auditivo não faltam estímulos, tenho ainda música que pode ser escutada na velha aparelhagem e o meu pensamento escuta-se em voz alta pelas paredes. E há sempre uma ou duas frases constantes de represália aos disparates dos gatos. Começa-me a ocorrer a questão do porquê desta decisão, se terei a ganhar com isso, se o mundo terá a ganhar com isso? É provavelmente a minha mente já em fuga, preparando desculpas para a rápida recaída. Dir-lhe-ei que não. Que ainda muito há para perceber. Que me ocupe de atividades prazerosas, como tomar um longo banho, limpar os cantos à casa, ler um dos muitos livros que ainda não foram lidos, arrumar os armários, pensar na agenda e no que de trabalho exterior há para cumprir.
Dia 4
Creio que uma certa melancolia está a tomar conta de mim. Digo isto porque passei uma hora deitada no chão ao lado do cão, olhando dentro dos olhos dele, procurando entender como ele se situa no mundo que eu lhe proporciono todos os dias. Levei a minha mão à pata dele e falei com ele durante algum tempo sobre a minha infância, de como gostaria de ter tido um cão nessa altura e não tive, depois senti-me inútil e incapaz pela forma negligente como cuido dele, penso que morrerá mais cedo por minha causa. E assim passou uma hora. A tentativa de vencer o tempo alheio prende-se com a habilidade de ocupações curtas mas eficazes. Até à data ainda nenhuma visita apareceu. Não creio que venha a aparecer tão cedo. Não estou online para convidar e não tenho telefone para atender. Perante estas circunstâncias, ninguém nos dias de hoje se dirige a casa de outro alguém. Ou quase ninguém. Ocorreu-me a ideia de começar a ler vários livros ao mesmo tempo, como se fossem páginas, perfis, histórias individuais e paralelas correndo na web. Sei que é novamente a minha mente a tentar reproduzir moldes de comportamento anterior. Mas ainda assim, parece-me admissível e nesse sentido manterei esta atividade. Ajudar-me-à a manter a minha sanidade ou abrirei aqui uma porta para a realidade esquizofrenica se tomar mais tempo dentro dos livros do que no registo quotidiano meu. É um risco que assumirei com gosto, dado que a leitura já estava presente antes. Percebi a importância de manter certas rotinas, que a estrutura do dia e o trabalho me conseguem distrair desta ausência. Daí, elaborei uma tabela de atividades com horário e cronómetro para me alertar dos tempos. Neste momento não sei se estarei a ficar obsessiva com o tempo.
Dia 7
Mandei o computador pela janela fora. A tentação pela sua presença era demasiado inquietante. Sofro agora de insónia, acordo várias vezes durante a noite para comer ou fumar cigarros e uma angústia aterradora começa a contagiar-me os sentidos. Para contornar ideias suicidas comecei a estender o tempo de passeio do cão. A ideia é cansar o corpo para que a mente se cale. Até à data nenhuma visita registada. Mas chegaram cartas de contas para pagar no correio.
Dia 12
O meu pai esteve cá em casa. Preocupado com a ausência telefónia. Contei-lhe que tinha tido esta ideia de clausura, expliquei-lhe as razões e pareceu escandalizado, chegou a insultar-me por não poder dar-lhe notícias minhas e que isso só iria acrescentar uma preocupação à sua vida. Disse-me para me deixar de disparates e dedicar-me ao meu trabalho, que por este andar ainda iria por água abaixo. A propósito, sou ou era webdesigner freelancer, neste momento não tenho ferramenta de trabalho porque a mandei pela janela fora, nem estou contactável para novos desafios, nem podia fazê-lo porque me retirei da web. Deveria ter pensado nisso mas na altura foi como foi. Tenho pensado sobre o assunto. Escolhi esta profissão como podia ter escolhido outra qualquer, embora a minha queda para os computadores, os jogos e a clausura desde sempre se tenha verificado. Parecia-me algo fácil e minimamente criativo, e o facto de trabalhar em casa permitia-me fazer os meus próprios horários. Todas essas decisões me levaram onde me encontro hoje. E todas elas poderiam ter sido evitadas se tivesse uma maior escuta de mim mesma, agora compreendo, na altura não fazia ideia.
Dia 16
A rotina instalou-se e o seu pensamento sossegou. Dos passeios do cão passou a passeios espontâneos pela cidade, andar só pelo prazer de andar. Conseguiu visitar amigos e isso devolveu-lhe a socialização de que necessitava para recuperar algum equilíbrio. Surpreendidos, eles próprios concordaram que era urgente recuperar a humanidade das relações mas que eles por eles não estavam dispostos a isso. "Muito corajosa que tu és, ou então louca, mas só tu para teres essas ideias". Ideias engraçadas mas para os outros. "Não precisavas de ser tão radical, podias manter o telefone" ao que respondeu "Quando eras garoto usavas telemóvel?" ao que responderam "Mas havia telefone fixo" ao que respondeu "E era preciso para alguma coisa?" ao que responderam "Não, apenas para falar com alguém de longe, era mais os pais que ligavam para os pais deles". E a conversa foi-se estendendo em argumentações que só lhe davam mais força para manter a sua convicção. Era importante encontrar uma outra profissão. E para isso, era necessário conjugar as oportunidades de trabalho com aptidões e currículo. Criar uma nova vida numa página real, era uma tarefa que agora, agora já conseguia ver como positiva, conquistando a todo o vapor terreno contra o desespero e a dependência de antes.
Dia 25
Descobri que tinha jeito para costura quando decidi redecorar a casa a partir de material que já tinha, e cortando e cosendo foi tudo a eito desde cortinas a capas de almofadas. O acto de coser transmite-me uma calma inexplicável e o facto de no final conseguir tocar o objecto, sentir a peça pronta é a aproximação ao real de que necessitava. Assim, fui ao centro de emprego e procurei por empregos na área da costura, pedindo pessoas sem grande técnica ou experiência. Encontrei trabalho numa pequena loja de arranjos rápidos. Lá trabalham duas senhoras mais velhas. São seis horas de trabalho por dia e um salário minimamente confortável para o básico. Sinto-me mais pessoa do que antes. Consegui que os meus amigos instalassem a rotina de nos encontrarmos num café fixo sempre ao fim da tarde, quem pode aparece nem que seja para dizer olá. Coisa que era hábito fazer-se quando eramos garotos lá na santa terrinha. Depois da escola, o café. E não era preciso combinar nada, havia sempre alguém lá. Isso e a esquina da rua, mas na esquina confesso que já não é bem para a minha idade, muito desconfortável. O que mais mudou? Comprei uma máquina fotográfica de rolo, estou a fazer um album real de vida, as caminhadas mantêm-se o que me dá uma robustez física mais simpática e o acto de passear faz-me bem, passei a comprar o jornal, gosto de lê-lo na esplanada antes do trabalho, escrevo cartas agora para os meus pais, penso que contribuo para a longa vida dos correios do nosso país.
A vida está a melhorar, foi muito doloroso fazer este corte. Ainda hoje tenho momentos em que me apetece entrar numa loja de indianos com computadores ou naquilo que se chamava há uns tempos cyber café e que hoje raros são os que ainda existem. As salas de chat também já só em alguns contextos académicos, os telemóveis de última geração arruinaram esses negócios porque afinal hoje toda a gente tem um cyber telemóvel. Aos poucos sinto que fui capaz de mudar o meu mundo e acredito que isso possa influenciar outras pessoas a fazerem o mesmo. Ainda sonho com o mundo como ele era antes. Sim a tecnologia tem vantagens, não sejamos hipócritas, mas deve ter limites e esses limites, só nós, pessoas podemos impô-los.
P.S. A escolha da profissão para este pequeno texto nada tem de ataque pessoal à mesma e lamento que a forma de divulgação do mesmo necessite dos mesmos moldes que critico acima.
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