segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Tempus fugit



I

O dilema da eternidade, o ter que ser para sempre. Quando era novo incomodavam-lhe estes pensamentos, depois os anos foram serenando e a eternidade se foi relativizando. Mais tarde o para sempre já se media nos anos que faltavam, e mais tarde cada vez seriam menos. O agora tinha então um sabor especial, a preciosidade da contagem decrescente. Invertendo a ampulheta, mais tempo para trás do que para a frente. 

A câmara abria o diafragma com a fome do olhar de um recém nascido. É a primeira vez que te vejo assim. Da janela o frio entrava mergulhando o corpo, ondulando uma vela trémula, as mãos se escondiam nas dela. Estamos a andar para trás, em breve seremos criança. E ciclava no botão retendo o momento do nascimento num retrato sépia. Não se recorda ao certo do exacto segundo em que o vira pela primeira vez. Não sabia se nos braços da mãe se no berço embrulhado. O mundo se abriu como mácula de um branco cegante. O mundo há-de ser tão grande. E os seus retratos deram a volta à terra, mais tarde, no tempo em que o tempo já se devorava a si mesmo como onda enrolada num fundão, onde tudo é areia.

A poesia não é senão uma câmara, e a dor e o deslumbre ou a paixão, são as lentes do tubarão. 
Querias dizer lentes de peixe?
Não, peixe é miúdo, poeta é tubarão mesmo.



II

Foi numa tarde de Inverno que andando em sentido contrário, se cruzaram. No passeio estreito, foram os dois para a esquerda e bateram de frente, e foram os dois para a direita e bateram de frente. E então ele disse para o outro Creio que estamos encalhados. O outro riu-se e estendeu a mão. 
Chamo-me Chronos, é estranho o nome bem sei, mas foi o que me deram. 
Por curiosidade, chamo-me Kairós. 
Do acaso nasceu uma amizade carente de fronteiras, onde um estava, o outro também, o que um sentia, o outro pressentia e de mãos dadas os anos foram passando. 
Chronos tinha um temperamento fácil, era terreno e organizado, meigo e dedicado a cada segundo do tempo que passavam juntos. Kairós era o oposto, lábil, deslumbrado, encantado, embriagado de tudo. Gostavam de passear pela cidade, da praia, do campo, do sol, das plantas, dos animais e gostavam da noite, da folia, dos amigos, da música e das festas. Os anos foram passando felizes, mas a passagem do tempo foi-lhes trazendo a quebra de um nem se saber bem o quê, caindo o espaço entre ambos numa rotina demasiado esperada. Esquecendo-se, confiando-se de que seria para sempre só porque seria. Mas o tempo trouxe a falta de algo ou o excesso de não sei o quê. 

E foi assim que apareceu o outro. E o ritmo se alterou para sempre. Estavam os dois, vinte anos mais tarde sentados numa paragem de autocarro, em silêncio. E o terceiro aproximou-se, delicado pedindo para partilhar o banco. Ele está em toda a parte não está? Os dois olharam um para o outro e nenhum respondeu. O terceiro continuou. Ele está no meio de nós. Chamo-me Aeon, muito prazer em conhecer-vos. Há muito tempo que vos procurava, mas o tempo foge e nós corremos atrás. Kairós colérico levantou-se enciumado. Afinal vou a pé. 
Aeon ficou a vê-lo partir e tocou na mão de Chronos que se preparava paciente para ir atrás do outro. Não te preocupes, ele sem nós não pode existir. Ele volta. Voltaremos sempre uns aos outros, ainda que cada era seja a última, voltaremos sempre a reencontrar-nos, neste ou em qualquer outro mundo. Chronos não entendeu mas confessou um certo de cansaço do outro, não fora sempre feliz nem sempre fácil, mas amava-o mais que tudo. Quando o outro caía em tédio, porque a vida não pode ser sempre um carrossel na feira das novidades, ele abraçava-o e no seu peito o outro serenava. Quando ele estava em bloqueio na fixação de uma tarefa impossível, o outro vinha na hora certa e desalinhava delirantemente tudo, libertando-o dessas correntes. Onde um falhava o outro completava, mas o tempo também nos cansa de sermos sempre nós mesmos e sobretudo, nos cansa o outro ser sempre ele mesmo. E foi nessa fenda que Aeon, nesta era, conseguiu entrar. Aeon era o único que tinha consciência desta repetição cósmica, deste trio que tantas formas já tomara e que voltava sempre a ele mesmo e geralmente era Aeon o último a aparecer e era ele mesmo o responsável por tudo acontecer da forma que estava escrita. 

III

Os filhos são o espelho das nossas falhas no futuro e a possibilidade de as corrigirmos e nos aperfeiçoarmos numa continuidade de utopia perfeição. Os filhos são aquilo que começamos quando nos começamos. No tempo de nos sermos criamos a possibilidade de continuarmos a ser na continuidade de um tempo em que já cá não estamos. 
O infinito queres dizer? 
Sim, o para sempre. 
E já escolheste o nome?
Pensei que tínhamos acordado sobre isso, não era o nome do teu avô? 
Mas o meu avô foi um homem perturbado.
Mas genial.
Mas genial, concordo. 

IV

Chronos não levou muito tempo a amar Aeon, foi fácil. Aeon era sereno como ele, mas acrescentava-lhe aos pés assentes na terra a espiritualidade celestial. O sonho como tranquilo, diferente da agitação infantil e cega de Kairós. Este por sua vez, não aceitava a presença de Aeon nem por nada, mas o amor que tinha a Chronos levava-o a tolerar o outro. Não sabia ao certo o porquê de tanta aversão a essa paz divina, como se toda essa segurança de Aeon o irritasse. Para Kairós a vida era uma paixão, para Chronos uma tarefa e para Aeon uma missão. E mal sabiam eles, que os três, estavam destinados e condenados a um só. 


V

Olha como está crescido! Os anos vão passando e está cada vez mais parecido contigo.
Não, está parecido é contigo!
O tempo voa, ainda ontem estava a tira-lhe o primeiro retrato e hoje, vai-se casar.
O tempo foge. Talvez não.  Não é o tempo que foge, nós é que fugimos do tempo que já fomos e corremos atrás de mais tempo para sermos. 
Acho o tempo tão relativo.
E é, é a forma como o vivemos que nos condiciona.
Lembraste do tempo em que nos conhecemos?
Foi a primeira vez que te vi assim. Feliz.
Esse assim, às vezes assim-assim, mas tenho a certeza de para ti ser assim para sempre e por isso para mim, assim é assim.
Foi sempre assim não foi?
É.


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