segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Maria Café



I


Um acaso, mero acaso ver naquele dia o despentear das árvores, o voo planado das gaivotas e o rosto corado de Maria Café. Estava sentada de perna cruzada bebendo um copo de vinho borbulhante na esplanada da praia encorpando um vestido pérola de seda selvagem. Tapando o sol de Outono ainda quente, um enorme chapéu de listas pretas e brancas, lembrando a Belle Époque parisiense. Descalça, os seus pés roçavam um no outro, aconchegando o peito de uma saudade áspera.
-Eu não te disse que ela vinha para a praia como se fosse para um casamento? - e a outra levantando os óculos da ponta do nariz do jornal acrescentou...
-Que despropósito! Quem é que ela pensa que é? Lá porque herdou do marido uma pequena fortuna...veja-se bem, armada em patroa!

Alheia, Maria Café contemplava o mar. Pela primeira vez. E por sua vez, era contemplada por ele, encostado ao balcão, enrolando a pequena barba que lhe coçava o queixo. Loura, mais fina que a areia da praia, dourada do sol. Pela primeira vez os seus olhos pousaram nela, a mais branca das morenas da praia e a criatura mais bela. Os olhos dela não abandonavam a margem prateada que ondulava suavemente para trás e para a frente. Um mistério quase tão grande como a morte, a partida que não parte, que fica nos que ficam para perdurar a perda. Essa saudade que se diz áspera, como os calcanhares do chão de terra talhados, a terra de longe que longe ficou mas que esses pés não abandonou. Por muito que passasse creme gordo, a pele não alisava, não podia, anos de escravidão humana não se compram de esquecimento. Mas os calcanhares andam junto ao chão, hoje calçados de saltos e peles ricas e de resto, nada em Maria Café destoava em todo o seu ar de madame delicada, jovem e fresca. 


II

-Queres partir? Pensei que estavas feliz aqui, não era o que querias? Não era a casa dos teus sonhos? - e baixou os olhos perdendo-se no vazio que agora as suas mãos agarravam.
-Eu ainda não percebi em que canto do mundo me sinto bem, pensei que fosse aqui...
-Tu não sabes o que queres. Fiz tudo isto por ti...porque tu sonhavas que assim fosse...e agora...nem sei...estou completamente perdido.

Não podendo dizer mais, porque mais seria mais do mesmo, levantou-se, arrumou as roupas e os sapatos numa pequena mala e ao chegar-se à porta, olhou pela última vez aquele rosto, aquela casa, aquela vida. Não podia, nada mais tinha a fazer por si ali. Não podia negar o que sentia e a vontade de partir era maior que a de ficar. Se o céu lhe caísse em cima pelo caminho, saberia que aos olhos de Deus estava a cometer um erro, mas aos olhos do seu coração, não podia, partiria agora.

Sentindo-a partir no Fiat 500, correu porta fora atrás do rasto de poeira que a velocidade levantava. Sem conseguir compreender as leis do universo que desconcertavam a sua vida inteira num único momento, deitou-se ao chão chorando, pequeno, como uma criança revolta no ventre da mãe. 
-Serei apenas um monte de cinzas... - e desse pensamento veio-lhe a ideia de pegar fogo àquilo tudo. Entrando na garagem procurou pela gasolina, espalhando-a pela casa, do lado de fora, puxou-lhe fogo. 

III

Maria Café calçou os sapatos com a delicadeza de quem enlaça as sapatilhas de pontas para se preparar para desfilar pelas tábuas de madeira que conduziam ao quarto do hotel. Seriam horas do almoço, queria refrescar-se para descer para o buffet. Ao canto da sala ele esperava por ela, olhando a escadaria como quem espera para ser dia numa noite de insónia. 
Ela passou pela mesa dele e sentou-se duas à frente, junto à janela que dava para o mar. Por mais que olhasse não se cansava daquela imensidão, uma colcha de prata roçando o céu de partículas luminosas intermitentes. Não teria dado por ele até aqui. O receio de ser mal recebida pelos outros acalentava dentro de si um afastamento que de tão suave, chegava a ser snobe. Pensava na razão de todos comentarem à sua passagem mas de ninguém lhe perguntar se se sentia bem. E não estava na verdade. A morte do marido fora trágica, um homem que lhe dera a mão quando estava de rastos, quando não tinha nada, e a quem amou incondicionalmente até ao dia em que partiu num acidente de avião. Ela demasiado jovem, sem filhos e agora, afortunada financeiramente, sentia a solidão encarniçada pela perda. 
Depois da refeição gostava de beber um cálice de Brandy, hábito que ganhara com ele, sempre bebericava do copo dele e hoje, na ausência, mantém-lhe o gesto pelo gosto mas sobretudo por ser um momento de partilha com o passado. Que o passado não tem que nos causar repugna porque dói, pensava, dói porque foi bom e deixa desejo de voltar a ser. Estava assim neste consolo quando ele se aproximou da mesa dela, tomando coragem.
-Permita-me, depois do almoço irei dar um pequeno passeio pelo porto, é o momento de chegada de algumas embarcações, sem querer ser indelicado, gostava de a convidar para vir comigo.
Mas o convite foi tão inesperado que Maria Café se engasgou e depois de se recompor, respondeu nervosamente - Pois sim, irei com gosto, aceita tomar um Brandy antes da ida? - Ele sentou-se mais confiante e pediu ao empregado que lho trouxesse.

No porto os homens descarregavam as redes que o mar oferecera generosamente hoje. Enérgicos puxavam definindo a percepção da vida como a chegada, dando graças por sentir os pés em terra. 
-Pela salvação da barriga morre o peixe...
-Pensei que fosse pela boca - e retirando o chapéu recompôs o cabelo, deixando arejar a nuca esguia como uma enguia - Recorda-se quando viu o mar pela primeira vez?
-De facto não, devia ser miúdo. Vivo aqui desde sempre, talvez o meu pai me tenha ensinado a nadar mesmo antes de andar...
-Eu não sei nadar - e olhou para o colarinho dele pela primeira vez, como se antes estivesse longe, distante de alcançar o pormenor por falta de vista.
-Mas não seja por isso, serei um excelente professor se me permitir.
-Não sei se será correcto, mas vontade tenho imensa. Agora receio entrar dentro dele, como se uma força misteriosa me rendesse e engolisse. É tamanho não é?
-O mar? Sim, sem dúvida. E perigoso também, levou o meu pai e o meu tio e tantos outros, ceifando sem escolha. Leva e nós só nos podemos conformar, sempre foi e sempre será ele a comandar. Dá o que quer dar e leva quem quer levar. A tirania do mar. 
-Trágico...
Ele parou junto ao cais olhando ao infinito o horizonte e momentos depois pegou-lhe na mão.
-Confesso que os meus olhos desde que pousaram em si, que não conseguem levantar voo. Que a reflexão me diz que devo ter cautela, há algo em si de muito triste mas que tamanha fragilidade me deixa ainda mais próximo de si - nesse intermeio, as mãos se aqueciam uma à outra - As palavras são impotentes para explicar o que sinto. Peço desculpa se estou a importuna-la. 
As mãos dela recuaram e o seu olhar foi e veio como a onda do mar.
-Sinto-me morta por dentro. Quando aqui cheguei pela primeira vez em meses esse azul despertou em mim qualquer coisa de renascimento. Mas a perda do meu marido foi muito dolorosa.
-As catacumbas da morte são aliciantes. Eu também perdi alguém, alguém que está vivo mas que não me quer, não é a mesma coisa bem sei. E durante muito tempo estive dentro dessas forças que me jaziam de vontade, o conforto da desistência é entorpecedor, nos entra pela corrente sanguínea, nos adicta e depois é sempre tarde. É muito tarde. 
Ela olhou-o surpresa. As palavras dele eram de uma profundidade que não esperava. Isso deixava-a desconfortável, enfraqueciam a luz que os seus olhos pediam para poderem alcançar a pessoa, não o homem. As pessoas são fáceis de entender, de contornar e até de afugentar. São pessoas e sendo-o permitem-se ser previsíveis umas às outras. Mas os homens não, os homens têm vontades contrárias, inesperadas, surpreendentes. Vivem e são de carne e osso. E a vida é tudo menos previsível. As pessoas são papéis. Ela fora esposa, agora era viúva. Mas mulher, isso era outra coisa, não sabia se dentro de si se podia permitir a essa variante, era demasiado arriscado.
Uma gaivota planou diante de si com a brevidade de tudo. Tão próximo que podia tocar-lhe.  E foi então, nesse momento que tomou a decisão,  sondar a profundidade do medo. 


IV


- O meu mal foi esse, não a retirei de dentro da história para a tornar mulher. Para a sentir com as minhas próprias mãos, para sobretudo, desfazer o ideal fictício que criara dela. Nunca tive a coragem de a ver com os olhos do homem. Só do poeta e isso, foi o meu maior erro. Perdi tudo, perdi-me. Deixei-me à deriva, que viesse outro e escrevesse o depois - e os seus braços estendidos sustentavam o corpo dela, boiando-a no limbo da água gelada e salgada - Que tal é a sensação?
 De olhos ainda fechados, piscando na escuridão um espaço que não conhecia, ela chorou.
-Como nada antes...
-Aprender a boiar é a coisa mais importante no mar. Saber quando devemos parar. Ou saber o que fazer quando não podemos avançar. Ficar à tona sem nos afundarmos. 
-Saber flutuar sem cair.
-Exactamente. Confiar. E respirar.
-Sinto-me embalada por uma força maior. 
Ele ficou feliz. E durante toda a tarde estiveram dentro de água. 


V

Maria Café acordou ainda o dia estava a nascer. A frescura penetrando na janela aberta e no céu uma enorme bola vermelha começando a crescer. Espreguiçou-se permitiu um momento antes de se levantar. O dia anterior fora tão diferente de toda a sua vida que o estranhava perguntando-se se havia sido um sonho. Era capaz agora de entrar no mar e de dominar relativamente o receio de se perder na sua dispersão, mas seria capaz de o fazer sozinha? Desde que o vira, o mar, que qualquer coisa dele chamava dentro de si ao abismo. Talvez porque o desejasse. Levantou-se, vestiu o fato de banho e uma túnica, calçou umas sandálias, pegou no chapéu e correu à praia, descendo a escadaria exterior. Deserta, só as gaivotas habitavam a areia intocável de uma noite quieta.
Caminhou, descalçando-se até à beira da água. O chapéu ficara na areia. Estava frio, o sol era ainda tímido para se fazer calor. Entrou devagar deixando a água chegar aos joelhos, erguendo os braços ao alto, como se agradecesse esta dádiva, última. E continuando a caminhar, a água chegou ao pescoço. Tremendo um pouco de frio, deixou os pés levantarem na força da água e deitou-se sobre o mar, fechando os olhos.
E o chapéu ficara na areia.

VI

Toda a sua vida fora passada ali, naquela praia, naquela aldeia de pescadores e mágoas.
Quando os rumores chegaram à sua porta foi uma apatia sem dor que lhe bateu. Deambulando pela casa, a cama desfeita de uma noite, a caneca do café ainda fumegante, a roupa desalinhada pela cadeira, a janela ainda de cortinas corridas. Andando em círculos, passando da cozinha para a sala, da sala para o quarto, num silêncio absurdo sem respostas. 
E os seus olhos pararam numa velha mala que a ela pertencera, que ficara retida longe da ira das chamas. A mala estivera todo o tempo encostada na parede do quarto junto ao velho baú. Pegou nela, as suas mãos desenharam no pó o toque de uma caixa de pandora sendo aberta. Retratos, cartas, recados, fitas de embrulho e um anel. Ela deixara todo este tempo o passado ali trancado. Um ódio profundo tomou o seu pensamento, atirou com a mala contra a parede, espalhando todos aqueles momentos pela cama e pelo chão, batendo com força e mais força até quebrar as duas partes. Quebrando em si a parte que a ela pertencera. Quebrar o ciclo, a madição, a história em repetição, o final sempre igual, a porta fechada e atrás de si, deixando para trás, tudo o que não podia mais pertencer-lhe. 

No cais, aguardou pela hora e depois de um último adeus, de um único olhar sobre o mar visto dali, sem agradecimento, sem vontade de voltar, levando consigo apenas o peso do seu próprio corpo, embarcou. E ao longo da viagem que o levava da ilha para terra mais firme, sentiu Maria Café em cada partícula de oxigénio, em cada gota do oceano, em cada escama de peixe que paralelo ao barco seguia veloz. Deitou a mão à água e sentiu um arrepio, uma sensação de paz serenidade profunda, que do fundo chegava. E toda a beleza do mundo, inspirando o ar puro, deixando-se espalhar com ela pela atmosfera.


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