quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Direitinhos ao Céu




With a word she can get what she came for...


I

Deitou na água as farripas do chá e cortou uma casca de laranja. Estava o dia perfeito para ficar em casa. Lá fora chovia torrencialmente. Ultimamente todos os dias eram dias perfeitos para estar em casa, há muito tempo que chovia na cidade que não via a luz do sol há meses. Um Inverno nocturno demais para ser Inverno, uma noite de Inverno sem fim. Para quem viera do país do sol, Alex sentia uma tremenda falta da luz. Tudo o que o rodeava era artificial, do acordar ao deitar. Tanto que a ideia de abrir a janela de manhã era apenas um acto falhado de outros tempos, abria-a para arejar mas sempre com a esperança de se revelar um dia diferente. Não é que não achasse uma certa beleza nesta noite interminável, achava sem dúvida, mas sentia falta de uma outra vibração, de um outro estado de espírito. 
Esse encanto remetia-lhe para os contos fantásticos que lia em criança onde personagens animalescas se misturavam com criminosos temidos e destemidos, andando de mota, tatuados e selvagens, assassinos de becos e mistérios obscuros. Sentou-se junto da pequena janela circular do seu sótão. Lá fora tubagens libertavam vapores, carros passavam a voar, mulheres de saltos caminhavam ziguezagueando as suas gabardines esvoaçantes e guarda-chuvas sem cor se tocavam numa perícia caoticamente organizada. Tudo era de um tom cinzento e negro e ocasionalmente letreiros berrantes piscando nomes de lugares convidando a entrar, tal como os lábios roxos das mulheres da vida que encostadas ao poste se riam extasiadas de droga. 

Alex vivia num bairro chinês, nesta parte da cidade tudo era possível, tudo era permitido e tudo era real e ao mesmo tempo fastasmagórico. A constipação que o tomara há duas semanas obrigara-o a ficar em casa. Vivemos num tempo em que tudo o que se conhecia como civilizado desaparecera e apesar de estarmos no apogeu do desenvolvimento tecnológico a ciência fora extinta dando lugar à indústria exclusiva de narcóticos. Porque se compreendeu que a ciência não tinha qualquer utilidade uma vez que a população mundial estava para lá dos níveis suportáveis e agora a ideia era que a selecção natural havia de fazer o seu trabalho, trabalho que iniciara há muitos quartos de séculos atrás e que o homem tentara contrariar até aí. Agora a ciência era apenas uma prática de produção, aliviar a dor mas não curar. Esse é o grande laboratório da humanidade, tornando-se no maior negócio de sempre. A humanidade deu lugar à aditivo-humanidade.  Por isso Alex receava que uma leve constipação pudesse resultar em morte e refugiara-se encubado em casa abastecido de analgésicos e outros sedativos mais. 


II

Nessa manhã estava então observando a vida de fora, tomando o chá, quando algo em si mudou. Não sabe bem ao certo se tomou uma overdose ou se não tomou sequer a dose necessária mas o que sentia não podia ser normal. Como se o seu corpo não fosse seu, Alex via-se simultaneamente do lado de fora e do lado de dentro. Escutava os pensamentos das mulheres de gabardine e ao mesmo tempo escutava a abertura e o fechamento dos seus próprios ventrículos cardíacos. Sentia a caneca a tocar na sua mão e sentia a sua mão a tocar na caneca. Logo pensou ter sido enganado pelo farmacêutico do botequim do bairro e temendo o pior despejou pela retrete os restantes comprimidos. Procurou então no armário da casa de banho por alternativas e encontrou um outro frasco que adquirira numa outra vez quando tivera uma dor de dentes. Tomou dois comprimidos. Aguardou tomando o chá. O tempo correu no relógio digital e nada. Sentia-se exatamente na mesma. Procurou por uma explicação lógica e pensou que se a causa estivesse nos primeiros comprimidos deveria então aguardar que fossem absorvidos e eliminados da corrente sanguínea. Tomou então outros dois comprimidos para adormecer de forma a que a presente situação não fosse tão paralisante. E voltou a sentar-se na beira da janela redonda encostado na almofada, aguardando adormecer. E foi nesse momento que a viu.

Uma mulher de gabardine vermelha passando do outro lado do passeio, tal uma rosa num jardim descolorado pela chuva que escorria na vidraça. Abriu a janela para ver melhor. Ninguém usa aquela cor nos dias de hoje, quem seria essa mulher misteriosa? Alex seguiu-a com o olhar absorvido até que ela desapareceu por uma outra rua. E foi nesse momento que perdeu a consciência. 


III

Abriu os olhos meio acabrunhado e logo sentiu um puxão como se uma forte corrente de ar o estivesse a levar. Estava montado numa mota, uma Harley a toda a velocidade no meio de um transito louco, logo se agarrou aos punhos da mota para não ser levado. A mota tomou então os seus pulsos e guiou-o. Nas suas costas, uma capa negra levantava voo e não demorou muito a perceber que na sua boca, a dentição de cima era de ouro, toda ela. Como podia ser? Lembrava-lhe um personagem mas faltava-lhe o elemento essencial. A bem dizer não se recordava do pormenor dos dentes e a nova dentição estranhava-lhe na boca, mas recordava-se do corvo. E foi então que sentiu no seu ombro direito pousar um grande corvo negro. Foi quando entre carros que voavam e outros que rodavam, de frente, dos lados, de cima e até por baixo, em viadutos múltiplos, se recordou da última imagem, a mulher de vermelho. E nesse momento sentiu no seu dorso o abraçar de um corpo, olhando então para trás, agarrada a si, estava ela. Deslumbrante de cabelos ao vento e séria. Desnorteado voltou o pensamento à estrada e quando olhou para as suas pernas não pôde crer, estava de ceroulas, umas ceroulas cor de laranja.
Deu uma guinada e a mota parou curvando junto de um passeio. Não chovia mais. A rapariga desmontou-se e ajeitava agora a gola da gabardine, levantando-a. Pareces desorientado? Não sabes para onde vamos? Alex que nem sabia mais se era Alex respondeu balbuciando Não, tu sabes? A rapariga pareceu espantada, Há-de ser a primeira vez! Tens de mudar de fornecedor, busca no olhar dele! E o corvo levantou voo, planando sobre eles. Alex recordou-se então de que o seu personagem conseguia ver através do olho do corvo e pensou em tentar o mesmo, tudo era tão estranho de qualquer forma. E tomando-lhe o corpo, imagens várias apareceram; um armazém sinistro, alguém produzindo num laboratório, uma arma apontada na cabeça de um homem tatuado com um corvo. Alex piscou os olhos e ao voltar a ver a rapariga disse Temos de ir a um armazém, creio que o reconheço. É melhor ficares por aqui, parece-me perigoso. A rapariga colocou os braços na cintura dele beijando-o Estás mesmo estranho hoje, como se nós não amassemos o perigo! Também não percebo o que fazes de ceroulas, onde deixaste as tuas calças? Não quero nem saber...Vamos então. E seguiram voando na Harley pela cidade fora.


IV

Ao se aproximarem do armazém, a mota abrandou. De longe avistaram dois homens de plantão armados. E na sua capa negra, Alex sentiu uma carabina e nos seus pés, enfiada numa das botas, uma faca. Pensou para si mesmo Saberei eu usar isto? Parece que tudo é lógico menos eu próprio. Inspirou de coragem, embeiçado pela rapariga de formas alucinantes e dando-lhe a mão dirigiram-se para a entrada. Puxou da carabina e atirou nos homens. Entraram. Por uma porta entreaberta passaram e ao fundo de um corredor uma outra dava para umas escadas que desciam. Lá estava o laboratório, amplo e deserto. A rapariga sacou então da mala duas granadas e disse Uma para cada um, lança-a para o fundo e corre! Mas nesse momento ele sentiu algo duro tocar na sua cabeça. A arma, estava a ser-lhe apontada a arma. Ela apercebeu-se e recuou dois passos, dizendo para o homem Se atirares nele, rebento connosco aqui mesmo, agora! E exibiu a granada convicta. Mas o homem estava treinado para o sacrifício e rindo-se premiu o gatilho. Alex sentiu um estalar nos ouvidos e um calor alastrante no crânio. O corvo lá fora voando em círculos sobre a mota e um enorme estrondo mandou o armazém pelos ares.


V

O sol rompeu o céu, inundando o dia de luz dourada. Alex abriu os olhos. Estava deitado sobre a areia numa praia deserta. Olhando para o que tinha vestido, uns calções cor de laranja que também não reconheceu como seus e a uns metros alguém também dormia sobre a areia. Levantou-se ainda meio aturdido e foi ao encontro da pessoa. Era uma rapariga com um fato de banho vermelho, dormindo serena, com a cabeça sobre os braços. Tocou nos cabelos dela e ela despertou. Alex! Estás aqui! Onde estamos? Ele, que não a reconhecia, que não reconhecia a praia e a bem dizer, nem se reconhecia a si mesmo disse Eu...não sei, sabes o que aconteceu? Ela esfregou os olhos e admirou o mar Que frescura! Sei bem Alex, sei que nunca mais compro droga àquele imbecil. Eu já tinha ouvido falar dela, chamam-lhe Led, mas nunca pensei que fosse isso que estivessemos a tomar. Alex sentiu a areia entre as mãos Led? Drogas? Meu Deus, eu nem sei quem sou. Ela tocou-lhe nos lábios com um ar preocupado Então a ti bateu mais forte ainda, maldito dealer! Dizem que independentemente de quem sejas, de onde estejas ou de com quem estejas que essa Led te leva ao céu, literalmente ao céu. Creio que estamos encalhados nele. Não o imaginava como uma praia! Alex levantou-se frenético em pânico Queres dizer que estamos mortos? É isso? Ela levantou-se e caiu em si. Deixou-se chorar Não, tu ainda não, ficaste lá, quer dizer em parte, é por isso que não te lembras de quem és, mas eu...sim, eu lembro, eu estou e abraçou-se a ele. Tu tens de voltar Alex, tens de impedir que aconteça a mais gente, tens de destruir o laboratório, a raiz deste mal. Vai! Ele ficou apático...mas como? E depois do silêncio ela vibrou O corvo! Entra no olhar dele, é ele o caminho de volta! E Alex fechou os olhos e sentiu-se sugado para dentro da escuridão, por um túnel de enjoo indefinido, acordando por fim, deitado sobre a sua cama junto à janela do seu sótão. 
E espreitando lá para fora, lá estava ela, a rapariga da gabardine vermelha. Alex levantou-se e procurou pelo frasco dos comprimidos deixando sair da boca...Led. 






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