sexta-feira, 21 de novembro de 2014

O salteador da Íris



I


Se o limiar do toque pudesse ser interposto pelo imaginário, tocarias no seu rosto? Em quantas faces se perde um olhar, depois de o deixar pousar, ainda que por apenas um instante? No rubro, na ponta do nariz, no canto de um sorriso. Ás vezes sinto falta de não ser eu, poderia explicar-te mas assim como assim, também não estás aqui para o escutares. 
Quem te disse que não estou?
Não sei, acredito que não. 

Esta metade de si muitas vezes se irritava com a outra. E por isso talvez a deixasse em casa, dormindo sobre a cama, desse turbilhão de palavras que nada diziam mas que pesavam, saía a leveza à rua. E o calibre das balas se media na gentileza com que se iludia. Serei sempre um verdadeiro cientista, inchado sob o efeito de grandes revelações. O outro de mim se esconde debaixo dos lençóis, dando voltas de noite, acotovelando-me a sorte da destreza com que salto de sonho em sonho, profético. E os seus restantes órgãos se revoltavam, como podiam concorrer com tamanha extensão se as suas células eram apenas reais? 


II

Pediu ao coveiro que o enterrasse mais abaixo por causa do cheiro. O que são aquelas coisas brancas que ascendem pelo ar? E o homem pesaroso de tanta terra encardida revoltar explicou São bruxinhas, entidades que os nossos desejos levam para a terra das falésias. As falésias, o horror indiscritível abriu-se no seu espírito. Quer dizer que a própria violência dos meus actos me pode levar para longe desses mantos flutuantes? O fino sorriso irónico do coveiro não deixou margem para mais questões e ele afastou-se despedindo-se de uma cara conhecida que à terra se devolvia. Conhecia realmente esse outro rosto no outro? E a sua bengala encalhou numa outra campa enfeitada. Se o vires por lá, diz-lhe que não volte, que aqui apenas o espera a morte. Para lá das falésias, essas células serão intermináveis. E sem vontade de mais conversa saiu do cemitério levando a letra para pagar noutra altura.  


III

Acreditas que não, mas as tuas crenças serão a tua cegueira.
É como a neve que se deposita nos ramos despidos invernosos, nesse mesmo tempo infantil, mandalas de perfeitas formas. É não é? É esse o problema, vermos como vêm as crianças.
Um dia hei-de levar-te à terra das falésias para veres com os teus próprios olhos que só lá estão crianças.
Verdade?
Absoluta.


IV

O coveiro terminou o trabalho e regressou à sua casa simplória no extremo oposto do terreno sagrado. Da porta pendurados os espantalhos torceram os seus braços, afastando os espíritos desenfriados e perdidos. Raios partam esta vida, nem depois de enterrados me dão descanso. Quantos são hoje para o jantar? Deixa cá ver quem se sentou à mesa. A pequena cabana de madeira tresandava a cânfora e buscando a caixa de fósforos alinhou os pequenos troncos para criar uma lareira. Pois vocês não têm frio, mas eu cá já não posso com o reumático, maldito Inverno que não se vai. Pegando no tacho deitou-lhe água para que fervesse e as couves cozesse. Lá fora batiam à porta.

Desculpe incomodá-lo mas seria possível lá voltar?
O quê a esta hora desenterrar um morto? Mas a que propósito amigo?
Temo que tenha levado com ele um segredo de extrema importância, de valor incalculável. 
Se me explicar a situação talvez eu a entenda...mas entre, estou a fazer uma sopa. Não se incomode com eles, são pacíficos.
Não vejo ninguém mas como queira, aceito e explico. O meu comparsa foi a enterrar pelas suas mãos hoje como se recorda. Pois eu imaginei que antes de falecer ele me entregasse o mapa. E lutamos por isso, mas até ao último momento nada...
O mapa? Então mas foi você que o matou?
Sim, acidentalmente, eu não queria. O mapa para a terra das falésias, foi lá que enterrou o nosso tesouro seguro que se apenas um de nós o soubesse que a tentação de o roubarmos um ao outro seria menor, pouco inteligente bem vejo agora mas na altura não lhe vi qualquer segunda intenção.
Para a terra das falésias? Mas na terra das falésias está ele.
Certo, de certo está. Mas nós tínhamos um mapa e quem o conhecesse poderia voltar, esse era o nosso tesouro, a imortalidade entende. E se ele o levou para lá e se ele lá está...temo que regresse para...
Para se vingar por certo. Olhe para esta mesa amigo, o que não falta aqui são mortos, espectros na verdade, porque não podem regressar. Se isso fosse possível, ele já não estaria debaixo da terra pois não?
Pois não, é por isso que preciso que venha comigo com toda a urgência.
Se assim é, não percamos tempo. E foram os dois pelo cemitério fora de pá em riste. 


V

Deixou então o outro eu a dormir e foi com a crença de que esse estaria correcto, o cientista, que avançou pela íris. Não sou eu que não creio, é ele que é louco. Pensou quando não mais que escuridão encontrou mas aos poucos, mínimos flocos de neve começaram a cair e uma claridade se foi revelando e os flocos deram lugar a estruturas mais arabescas, as bruxinhas. Ele estava certo então, se eu pedir um desejo, encontrarei a terra das falésias. Mas se eu a encontrar como posso regressar? As crianças saberão. Farei um mapa, o meu mais precioso tesouro, ah meu cientista, tu podes ter descoberto o céu mas eu descobri o ouro!

VI

O coveiro cheio de paciência começou a retirar a terra metros e metros debaixo dos seus pés. Quando alcançou o caixote de madeira precária, puxou do pé de cabra.
Preparado?
Nunca estive tanto. 
E quando o tampo se revelou, o pânico tomou o rosto do homem.
Eu sabia, eu sabia, ele já voltou e anda por aí para me atormentar, maldito, maldito e agora?
O coveiro sentou-se na borda da terra elevada e puxando de um cachimbo falou calmamente.
Amigo, se fosse o primeiro a bater-me à porta nessas circunstâncias eu até me espantava, mas como lhe disse tenho sempre a mesa cheia de mortos que não são convidados a entrar. Mas que posso eu fazer, já o meu avô era coveiro, já o meu pai o era e eu coveiro sou. 
Não compreendo...
Pois, a maior parte nem percebe o que lhe aconteceu e quando me vêm bater à porta que posso eu fazer, ninguém me paga mais por isso mas eu também nada mais tenho para fazer...e no seu caso até não o consideraria uma situação assim tão banal, pois assistiu ao seu próprio enterro.
Eu? Do outro, o cientista.
Não amigo, uma parte de si até acredito, mas tente a consciência. Pode ser que o reencontre e possa para lá voltar, eu coloco-lhe a terra por cima e vou jantar e ficamos todos serenos, que lhe parece?
Mas o mapa...
O mapa, pois, a nossa mente prega-nos partidas sabe, a imortalidade ou o desejo da mesma leva-nos a cometer actos permanentes. Não há nada a fazer, está morto, siga ou venha juntar-se aos outros para jantar, mais um menos um, tem é que decidir depressa que me estou a impacientar e as couves a empapar. 
E as crianças?
Estão na terra das falésias, ele não lhe mentiu não, nem todos sabem disso, mas você já o sabia antes de o saber. Vai ou fica?
Nesse caso parto. Assim como assim, não tenho apetite para o jantar.
Nem você nem os outros, tenho eu, faça uma boa viagem. 
E a pá voltou à terra.




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