I
Vivemos para morrer aos poucos cada dia e que essa visão fatalista nos aproxima ainda mais da morte que nos rouba o sopro da vida, de dia para dia. Redundante, crónico, imperdoável porque ninguém nos explica esta condição no acto de nascer. É por isso que me dedico à morte, que me fascina a mesma na oposição à vida, que me encantam os idosos e os doentes terminais, que sabem estar tão próximo dela que a aceitam na sua maioria como natural. De resto todos os outros corremos na maratona contra cronómetro, contra a maré, tentando vencê-la, derrota-la, engana-la. A ela, a invencível ponta da navalha onde nos procuramos equilibrar sem nos ferirmos, como se fosse possível, como se a nossa pele fosse impenetrável, como se fossemos imortais.
Foi o discurso dele antes de mandar entrar o grupo de raparigas pela carrinha adentro, amarradas e amordaçadas. Enviadas para a morte. Para um destino adiado por algumas horas de caminho. Raptadas, roubadas do seu quotidiano, da sua juventude, da sua inocência.
II
Foda-se! Foda-se pra isto tudo! Puta de vida caralho, puta de vida! Tás-te a rir sua puta? Foda-se - gritando desesperado pela rua fora arrastando o carrinho de mão e dois sacos de plástico, depois de muitos pontapés na porta improvisada de um resto de portão - Agradece a Deus caralho, agradece a Deus teres comida no prato para ti e para os teus filhos, agradece caralho, ai foda-se, foda-se que puta de vida, quero morrer caralho, morrer!
Pela rua os seus gritos viraram a esquina e os moradores acompanharam a cena de guarda-chuva, impávidos. Quando ja ia longe, sentiram alívio para o comentário...
Já vais tarde! Haviam de morrer todos, miséria...
III
Despediu-se da neta chorando. Há sete anos que ali fora depositada e nem uma visita da mesma. Nesse dia de surpresa a neta apareceu. Sorrindo, pedindo perdão pela ausência, acusando a vergonha e uma saudade inteira.
Eramos tão amigas quando eras pequena. Oh D. Alice esta é a minha netinha, é doutora, você não a conhece porque ela nunca cá veio. É alta não é? Oh Sr. Custódio olhe a minha rica netinha, já viu? É parecida comigo? Vem-me visitar mais vezes, prometes que sim Anita? Elas aqui são muito ruins pra mim, sabes lá. Oh trouxeste-me chocolates, mas os meus diabetes não podem, estão altos, ando sempre a controlar, ah mas não os deixes aí que elas levam tudo, mete aí dentro do armário atrás. Eu até já tinha pensado se estarias chateada comigo por algum motivo. No outro dia levaram-me os pijamas todos, que estavam velhos e depois compraram uns tão apertados, reclamei, pois depois sou chata, tenho de ser, isto aqui tem de ser assim, senão para as outras é sempre tudo antes de mim, deixam-me sempre para depois. Ah esse casaco não, a outra parva chamou-me pinguim, isto aqui é só disto. Pois esse, esse serve, está frio lá fora? Oh mas eu é uma chatice depois quero ir à casa de banho.
IV
A pata do cavalo ainda lá está.
Estava um casal a passear na praia, olha lá em baixo, que imensidão de facto, as ondas chegam até lá onde vês aquelas casas, agora fazem escavações para travar o mar, isto há uns anos não havia nada disto, como cresceu, íamos para a praia com as francesas, isso é que eram tempos! O casal estava a passear de noite junto ao mar, veio uma onda, a sétima, e levou o rapaz. As pessoas não conhecem este mar, deviam teme-lo, não é para brincadeiras. A onda chegou ao farol, como é possível? Andaram a meter veneno por aí para matar as gaivotas, eram demais, isto aqui não se podia estar. De vez em quando lá cai um a tirar a fotografia, chegam-se muito à beira. Um abismo medonho. Que imensidão de facto. Além o porto, dizem que é o mais seguro da Europa, ah pois em Peniche agora é que está a dar, grandes investimentos por lá, é o presidente, um grande homem com visão. Ai isso daqui não há hipótese, é um fundão. Elas são gigantes por causa do canhão, um fenómeno irado.
V
José A. Moreira. 1928-1997. Abandonado.
Lia-se na mais branca das campas de mármore quando atravessaram o cemitério chovendo a potes.
Venha ver o jazigo, venha lá a ver, cuidado com os pés, está tudo enlameado, apoie-se aqui não tropece, está todo limpo, foi arranjado. As colchas sim foram lavadas. Precisam dos nossos terrenos para ampliar as terras do cemitério. Ali está a madrinha, por cima está o padrinho, além o avô e agora já temos espaço para si. Está bonito está, todo florido, o rapaz fez um bom trabalho.
Fez-me a vida negra. Vinte anos de casamento, tu Anita nunca te cases, estás muito bem assim na tua casinha com o teu trabalho. O que eu perdi, podia ter casado novamente, claro que podia, mas não queria, nem pensar. É, vocês escondiam-se debaixo da cama. Comunistas, todos comunistas gritava nessa noite. Malvado, era mesmo ruim. E a outra, essa a que me meteu os cornos, outro dia diziam-me lá no lar que a viram, pois viram, está velha e gorda, sem dentes. Era de madrugada pois saía e era lá no vão das escadas, sabem lá o que ele ia fazer, pão no forno pelo cu da pá. Vamos embora que tenho de ir à casa de banho, olha está-se tudo lá a estragar, tu não precisas de cobertores. Estão lá a ser comidos pelas traças e pelos ratos, ai pelos ratos não? Veneno? Oh, mas o que é que vocês percebem disso? As cobras, ai quando eu tinha juventude, era pela cabeça que as matava. Oh D. Maria há quanto tempo tá boazinha? Esta é a minha netinha, lembra-se? Não lembra que esta era aquela que nunca queria ir lá aos recados.
VI
Ao passarem pela pequena terra andando estrada fora, a placa próxima indicava Venda das raparigas. A sua mente pregava pequenos truques tentando projectar uma saída para o cativeiro. Pela laringe dele a sua voz soara a promessa de morte e o tom faria cumpri-la na certa. Doze jovens, provavelmente como ela, aliciadas pela ideia de um trabalho no exterior. Viajara até este país para isto, para morrer longe dos seus, sem poderem sequer receber essa notícia. Para isto vivera 22 anos, anos de treino em escolas de dança, anos de choro de extensão de corpo, anos de miséria numa nação desmantelada. E um adeus que seria para sempre.
Foda-se caralho sai-me da frente, sai-me da frente que eu nem sei de que terra hoje sou. Tou capaz de morrer ou de matar alguém hoje, queres morrer caralho, queres morrer caralho? Tás mesmo a pedi-las foda-se ai foda-se puta de vida que só apetece a morte, toma lá meu grande cabrão, toma lá a ver se aguentas com esta, esta é pesada não é filho da puta? Aí no chão seu cabrão! E na carrinha caralho, que é que trazes aí, vamos a ver, ah pois agora não falas não é cabrão. Ai foda-se que loucura de dia!
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