sábado, 29 de abril de 2017

caixa negra


o movimento dos corpos
desenha na plataforma círculos
nas suas possibilidades epidemia
nascendo um campo, contracampo
de um lugar de eu
em que somos a última consequência
em toda a metafísica
onde sonâmbulos nos encontramos
para um núcleo anti dogma
nos confins do íntimo
faz-se corpo e coração universal
com todo o direito de parar!
as notas que se seguem
na presença dos vocábulos infernais
que não fazem mais que o alívio
terás sido alheia como uma mãe a um filho
mas então porque te trago comigo?
uma sensação que não posso descrever
e em todas as primeiras palavras
um acto solitário
a dor irredutível de uma dulcineia
que nos desconcerta de novos silêncios
pós nova vaga de pensamentos
que sempre se abraça de inversão
guerra ao trajecto seguido de longe
no interior do tempo cativo
um único fotograma reconhecível
o vocábulo finito
como elemento fundamental
a uma língua morta
o que é contar pouquíssimo
reafirmando o ontem na sua presença
uma obra em depósito
um vinho avinagrado póstumo
de momentos que se restauram a si mesmos
o que é contar pouco sobre o belíssimo
que nos é contido no surgimento do novo
quando se encontra a vida como pano de fundo
e um homem sentado numa cadeira respira
fundo

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Essas são as pérolas



um simulacro de existência
o náufrago chega a uma ilha criatura
povoada de processos
Ideias implantadas
de um credo manicómio
a sombra internada abaixo de terra
em flexão um mundo rural
as estátuas falsos jubilados
um poeta desidratado
pela transição de reminescências
a vivência da paisagem
desencantar um mapa do corpo
da textura do osso e dos lábios
uma lágrima singular
nunca vem só
e recebe a inesperada visita
da solidão

antigas fábricas da velha cerâmica
que nos reveste a alma
das conchas o que sou...Ficou
pedestres guiados pela rosa dos ventos
um comboio de passeio ou teleférico
estou de visita ao meu edifício solar
quando um panteão de pérolas a acordar
abandono-me em queda sem mistério
a água caindo em liberdade
assente um mundo sustentável
para quem nunca tocou nos seus olhos
essas são as pérolas em oficina de luz
ou talvez as cidades que caem em sonhos
uma coisa assim perfeita



quarta-feira, 19 de abril de 2017

III


o dormitório de um cão sarnento
mandíbulas os tijolos das paredes famintas
um mecânico de balões de oxigénio
atravesso de um assento desmaiado
cismo de maõs cheias o que está lá em baixo
e olhos vendados
os olhos trago-os nas mãos, parras gigantes
as arcadas movem-se com pernas andas
veio passear-me a curva dos sentidos
como se as patas de porcelana
se houvessem quebrado para sempre
no topo da cabeça ventoinhas descompassadas
a quem sirvo agora?
a uma espécie extinta de outrora
morde no regaço o corpo espaço
corro no ar por esse pátio de portadas
lojas fechadas iluminadas por dentro
em qual destas casas vamos morar?
vamos mudar-nos para onde?
esse tempo espiral de seres um só
um monólogo a título de horizonte contínuo
porque vem sempre tarde o sentido
caem dominós, são os dedos do livre arbítrio
os bicos dos pássaros andarilhos
trazem a rama, o alimento sem alma
aterro nesse pátio, observo por dentro do vidro
um manequim rendado de negro
é um vestido de criança
atravesso o pátio de pedra em pedra
ecoando uma melodia dentro da cabeça
não a reconheço, não é cantilena do começo
os cães coçam as orelhas, sacodem o pêlo
é preciso voltar a alimentar as taças
daqueles que esperam pelas minhas lembranças
alguém me espera pelo fim das minhas tarefas
veio de longe de trás, traz outro alguém
corro mais depressa porque é preciso encontrar
as notas, a noite, um saltitar frenético
o ar quente que me levita
sinto sou eu sem tempo
minha irmã prepara nas panelas um enterro
a porcelana transparente, o luar que atravessa a gente
minha irmã sorri, sorri sempre
os meus amigos ficaram à espera, a espécie extinta
a que sirvo também
e eu recordo nesse pátio donde não quero acordar
a melodia roça ainda na cabeça
como a margem de uma página sem letras
fico fascinada com os meus passos
dos cães não me recordo mais
fico parte do estático do cenário
que não contempla passado nem presente
essa casa para onde vamos mudar, morar
tantas vezes mudei
adivinha-se o timbre dos abutres
que nos farão companhia na sombra
em bicos dos pés, cada porta é um mundo
que se encontra fechado
porque é de noite e eu não tenho corpo
e ainda assim encontro-me deslumbrado

terça-feira, 11 de abril de 2017

Encarnação


os galhos ramos de silêncio da floresta, estalam
dedos de feiticeira magros cadavéricos
entes erguidos no seu posto zelam
pelos portais de outro hemisfério
do vírus vida, tudo brota luz rasgo de folha
lagos santuários de musgo desfigurados
fissurando os muros dos caminhos estreitos
percebidas as palavras que rumam ventos mistérios
as falhas dos seus corpos
deuses contemplam a imperfeição aos seus olhos
da noite seguinte
cada rosto de criança planta
o pronunciar lento de um tempo sem ampulheta
arenoso, pó de canela, que não avança
essas crianças que nunca saíram das entranhas
e eu chamo, chamo a mim todos os planos
de alguém que se deixou cair
ao abate, porque somos todos demais
para que se abram canais entre irmãos
os rios rasgam a terra com as mãos
escravas da lavoura mais próxima do chão
sentir que não se é digno de plano algum
sou como a sombra que atravesso esta vida
os vasos em que me desejei imaginários
tomam os braços de longas impressões
o passar das horas para o aceno involuntário das copas
que a certa altura regeneram o dia
o espírito humilde em harmonia
meu anjo negro obstinado
segura-me pelas arcadas paciente
pendurada para me soltar da carne
receber das chibatas do coração o caminho
fui destinada ao pensamento
e nunca passou um dia em que o corpo em agonia
não me chamasse já de morto
revirei os olhos, senti-me de azul
senti as pernas dobrarem-se ao animal
as malditas queimaram-me
e vezes sem conta morri de novo
tanto me doía, mais profundo, atiraram-me com as ganas
ao limiar pontiagudo do mundo
o abismo sabe a tecido conjuntivo
somos apenas sistema circulatório em contínuo
nutrido de paixão
sente-se o céu em solitude
depois do abandono
no último nano segundo
corro atrás dele
agarra o ventre com ambas as mãos
quase estoira de tanta euforia
esfolem-me enquanto viva
porque depois não sentirei mais a poesia
e as copas evocam a recordação
o que acontece à alma
vezes sem conta encarnada
em vão

quarta-feira, 5 de abril de 2017

vem escutar as orcas



vem escutar as orcas no cais do rio
contemplar as horas mortas
fabricante de clarões a dentro
violinos submarinos tamborilando ao ouvido
o embate contra as paredes da cidade
indo e vindo numa ondulação
cujo instrumento é nosso coração
nas pontas dos pés rasgos de luz
onde reina um prazer sem razão de ser
lugar sombrio do lado esquerdo
onde se fica quieto arredado do medo
que este rio é paixão
que atravesso a cavalo do chão
quero rir das palavras
porque as orcas sentem a vibração
das guelras dos acossados
sou pano cru e colo pintado
de vermelho e branco santo
um peixe liberto de aquário
na boca um pedaço tão grande de mistério
quero precisar este instante
desse branco que é seu reflexo
quando possuo a lua a dentro
sou lanterna farol de desejo
que a maré insiste em trazer contra o peito
os barcos moinhos os dedos dobrados
entrelaçados de escamas
e peixes mortos entediados


vem escutar as orcas
que se levantam das margens do cais
que em nossos pulsos escondem
todos os sinais
e cada gesto teu, perdido do fundo
numa cidade de província
onde os rios só trazem malícia
a cabeça e o busto mergulho
quando se perde a calma do flutuar
ser recluso desse pronuncio lento
puxa-me pela margem e fala-me do tempo
em que mergulhavamos por este rio a dentro





a travessia das viúvas


vejo velhas senhoras de negro
ajoelhadas no degrau de terço
numa dor que apenas teve começo
como um condão intuitivo
animado pelo delírio mapeado do agora
agora a vida não tem mais sentido
para a entrega da solidão eterna
latentes dentro delas mães, irmãs e filhas
para as espinhas da voracidade do abstracto
são elas que partem por último no retrato
onde e quando o momento em que atravessam
do outro lado do espelho alguém que não conhecem
vidros que caem e nunca mais se quebram

agora transportam a morte sem saber dela
tudo é paisagem distópica de afecto
a fé é o tecto de uma catedral em céu aberto
contemplam o mar, a serra, a colina, a fábrica
fui tudo o que me projectaram e mais a margem
para lá das fronteiras do tempo, a ausência
a linguagem dos gatos e do trapézio
para as silhuetas de pedaços de memória
que se diluem dentro da cabeça sem tarefa
agora a mesa deixa-se posta e as roupas na corda
ficam, o alimento e o vestir são artifício
porque não como nem durmo sem meu marido
dentro das coisas desbotadas
dentro das páginas marcadas
os passos de arrasto pela casa
dialoga o demónio nos meandros do tiquetar
essa convenção de um espaço mecânico
onde só resta rezar

hologramas de aventesmas fantásticos
as histórias desenrolam-se à lareira
porque nas casas de xisto faz frio
o verão dos ribeiros e dos banhos despidos
fica com alguém que já não ciranda por aqui
as torradas na chapa queimam
há tanto tempo para dialogar com o nevoeiro
nessa luta endérmica do tempo
só o corpo arquitectado se dobra de novo
das escadas têxteis os buracos rendilhados
de alguém que já não habita por estes telhados

vejo velhas senhoras de negro
que atravessam o tempo