quarta-feira, 5 de abril de 2017

a travessia das viúvas


vejo velhas senhoras de negro
ajoelhadas no degrau de terço
numa dor que apenas teve começo
como um condão intuitivo
animado pelo delírio mapeado do agora
agora a vida não tem mais sentido
para a entrega da solidão eterna
latentes dentro delas mães, irmãs e filhas
para as espinhas da voracidade do abstracto
são elas que partem por último no retrato
onde e quando o momento em que atravessam
do outro lado do espelho alguém que não conhecem
vidros que caem e nunca mais se quebram

agora transportam a morte sem saber dela
tudo é paisagem distópica de afecto
a fé é o tecto de uma catedral em céu aberto
contemplam o mar, a serra, a colina, a fábrica
fui tudo o que me projectaram e mais a margem
para lá das fronteiras do tempo, a ausência
a linguagem dos gatos e do trapézio
para as silhuetas de pedaços de memória
que se diluem dentro da cabeça sem tarefa
agora a mesa deixa-se posta e as roupas na corda
ficam, o alimento e o vestir são artifício
porque não como nem durmo sem meu marido
dentro das coisas desbotadas
dentro das páginas marcadas
os passos de arrasto pela casa
dialoga o demónio nos meandros do tiquetar
essa convenção de um espaço mecânico
onde só resta rezar

hologramas de aventesmas fantásticos
as histórias desenrolam-se à lareira
porque nas casas de xisto faz frio
o verão dos ribeiros e dos banhos despidos
fica com alguém que já não ciranda por aqui
as torradas na chapa queimam
há tanto tempo para dialogar com o nevoeiro
nessa luta endérmica do tempo
só o corpo arquitectado se dobra de novo
das escadas têxteis os buracos rendilhados
de alguém que já não habita por estes telhados

vejo velhas senhoras de negro
que atravessam o tempo


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