quarta-feira, 19 de abril de 2017

III


o dormitório de um cão sarnento
mandíbulas os tijolos das paredes famintas
um mecânico de balões de oxigénio
atravesso de um assento desmaiado
cismo de maõs cheias o que está lá em baixo
e olhos vendados
os olhos trago-os nas mãos, parras gigantes
as arcadas movem-se com pernas andas
veio passear-me a curva dos sentidos
como se as patas de porcelana
se houvessem quebrado para sempre
no topo da cabeça ventoinhas descompassadas
a quem sirvo agora?
a uma espécie extinta de outrora
morde no regaço o corpo espaço
corro no ar por esse pátio de portadas
lojas fechadas iluminadas por dentro
em qual destas casas vamos morar?
vamos mudar-nos para onde?
esse tempo espiral de seres um só
um monólogo a título de horizonte contínuo
porque vem sempre tarde o sentido
caem dominós, são os dedos do livre arbítrio
os bicos dos pássaros andarilhos
trazem a rama, o alimento sem alma
aterro nesse pátio, observo por dentro do vidro
um manequim rendado de negro
é um vestido de criança
atravesso o pátio de pedra em pedra
ecoando uma melodia dentro da cabeça
não a reconheço, não é cantilena do começo
os cães coçam as orelhas, sacodem o pêlo
é preciso voltar a alimentar as taças
daqueles que esperam pelas minhas lembranças
alguém me espera pelo fim das minhas tarefas
veio de longe de trás, traz outro alguém
corro mais depressa porque é preciso encontrar
as notas, a noite, um saltitar frenético
o ar quente que me levita
sinto sou eu sem tempo
minha irmã prepara nas panelas um enterro
a porcelana transparente, o luar que atravessa a gente
minha irmã sorri, sorri sempre
os meus amigos ficaram à espera, a espécie extinta
a que sirvo também
e eu recordo nesse pátio donde não quero acordar
a melodia roça ainda na cabeça
como a margem de uma página sem letras
fico fascinada com os meus passos
dos cães não me recordo mais
fico parte do estático do cenário
que não contempla passado nem presente
essa casa para onde vamos mudar, morar
tantas vezes mudei
adivinha-se o timbre dos abutres
que nos farão companhia na sombra
em bicos dos pés, cada porta é um mundo
que se encontra fechado
porque é de noite e eu não tenho corpo
e ainda assim encontro-me deslumbrado

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