quarta-feira, 29 de maio de 2019
a recta mais longa
A casa dava-me pontapés
numa zanga espiritual de não adeus
do corredor à casa de banho
uma recta tão longa
para um veículo de luzes apagadas
aninhar-se os olhos confortável na paisagem
nesse nocturno de altas formas e ramos
dos fornos fluídos em repouso
para abrigar o braço
dos freios da artilharia do coração
depois aceleramos como canhão
um tiro rápido
e um abraço que estreita o tempo
reparador de calor
a extensão rumina o recalcamento
a terra de uma força viva
animais recolectores desse reco reco
de aço temperado
o vento pela janela esfriando lentamente
para abrandar e pelas lombas de alcatrão
a voluptuosidade do carnal
o meu corpo pensante um recreio
vejo anjos sentados nas copas negras
agitando as pernas baloiço
e as asas em repouso
nesse nada de instantâneo
que é a nossa travessia industrial
a água acumulada nessa obra
dique de lágrima reprimido
e tubos de pvc resinosos
somos particípio do passado
e o anjo vira o rosto com a autoridade
de um animal só e em paz
nós que seguimos sentimos esse rapto
é a nossa alma que deixamos para trás
na fronteira com o Inverno o gelo
no banco do passageiro
sufocante, o ar para o cronometro painel
ou as horas arqueológicas que nos depositam
como contos do passado agora futuro
os animais dormem na beira da estrada
atravessa-se, com a preocupação da descrição
a fita que se arranca da caixa para nenhum aparelho de leitura
as palavras são ondas que se dissipam
e os nossos dedos moinhos sub aquáticos
o anjo regressa com a cabeça meditada
no alfinete e na distorção da sua língua
para nós a recepção é sempre terrível
e sempre ainda assim familiar
as plantações prisioneiras da terra
a terra encantada como cela do imaginário
se o mapa acabasse nessa recta
não mais que a vida chegando à morte
e a chama azulada de um aparelho de soldar
a ânsia de chegar sem nome
e as palavras um enxame neurológico
quando a manhã se aproxima de um lilás desmaiado
e o anjo depois de estrangulado
tomba semente
páro o carro, corro como gente aflita
se eu for agora beira de estrada
talvez o tempo se reflita em mais tempo
e os bichos saiam das tocas no seu resíduo de voracidade
respirar, o oxigénio onírico para entrar na combustão
de espírito limpo
grita, gritar mais alto
para acordar a vigília do mundo
e o quebrar dos ciclos ou o ácido genocídio
e a alma ripada pelo tempo
ritmo, ritmos
nessa sucessão de intervalos metricos
descanso repouso num escudo rombo
Aonde diabo vais?
quero sentar-me para ver os outros passar
cobrir-me do manto pesado da roda
que agora não mais me devora
E a casa zanga-se porque pensa que a abandonei
mas estou aqui, e o anjo e os animais
e as palavras e a recta..e a escuridão
que nos espera
sexta-feira, 24 de maio de 2019
Ruminação sem beira
o silêncio das searas
mas os passos por lá ficaram
passos antigos
que arravessam a extensão dos sonhos
duas irmãs duas vidas
automatica mente ao infinito
para a retribuição da morte
as searas chegando à cintura
os bichos sorrateiros que dormem
a sombra o amarelo torrado
e uma irmã que fica para trás chorando
um futuro natal no cimo do monte
a lua a escuridão os fardos de amanhã
duas irmãs escravas da terra
caracóis negros olhos azeitona verde
e o balbucionar de um não me deixes para trás
os animais profetisando a morte
vagueando como ilha e um faisão
o nascimento súbito do tempo
pentrando pelas vigas do telheiro
esse sol ateu incêndio
saltar da cama cair de joelhos
gatinhar-se de esperança
quando se dissipa o nevoeiro de fim de tarde noutro inverno
e se ajeita a lenha para se acender o esquecimento
daqueles que partem daqueles que ficam
as cinzas atiradas ao vento
com a vontade de gritar o pensamento
duas irmãs caiadas de dor
como paredes onde se regista o tempo
ou a altura do crescimento
castelos de auto controlo
para passos que hão de ser gigantes
Não me deixes para trás
porque as searas são da minha altura
e eu e os bichos somos maus
ou apenas o eco da divina loucura
Abriam-se as pequenas janelas postigos
as redes cheias de mosquitos
a avó trazia o leite fervido
e a idade amassada com amargura
Vejo ao longe esses passos que nunca nos levaram ao cume
a superfície lodosa da terra venenosa
Sulfurica
a madeira impregnada de salitre
quando a terra se cobriu de lágrimas
e o juramento de por lá ficarmos
sentinelas da solidão
para assistir à mutação do homem besta
e ao sussurro do ancoramento do mal
em nome do fogo
e das comportas cerradas do coração
e das sombras das redes de almas perdidas
molho agora as mãos no nevoeiro
visito essa praia colina
Vivo à beira de um vale ventoso
como a aranha que se esgueira pela gaveta
como quem
quem nada tem a vender ao diabo
e minha irmã cerra os lábios
num calar-se para sempre de distância
começo a andar mais depressa
porque o tempo não espera
e a avó partiu fazendo o sinal da cruz
como um catamarã de dor funda
para curvar as baías do limbo
para ver finalmente surgir
o canal do coração em aberto
o próprio mar vivo movendo-se sobre nós
com os seus molhes esbugalhados de prata
e o corpo peixe despido
olhos nacarados sem pulilas só fantasmas
o fantasma do som das searas
de uma madeixa de cabelo caído
da avidez dos gestos da penumbra das salas
que agora sem tecto nos aguardam o regresso
Começo a cantar, a meio de uma palavra
uma oração com a imperfeição de um tampo de mesa ou de campa
o som rítmico e estridente da passagem
das cordas que ainda hão de vibrar num amanhã
os braços da criatura abertos
e a força de um ferro de forja
embalo minha irmã nessa cadeira de baloiço
hoje não se sabe se velha ou criança
escultura de animal que decora o espaldar
para que absorva o calor e a música
e a terra a mover-se sem pressa
o som era alto e vibrante
para o divagar desses passos de infância
dou-lhe a mão, nunca a larguei da mão
nessa imagem que hoje, depois de quase morrer
restaurei
segunda-feira, 20 de maio de 2019
Uma casa para a criação
A idade começa a crescer-me entre os ossos
como aquelas ervas rasteiras dos passeios
e um rosto sem par que por mais aparado
suspende-se ao espelho como daninho
aquele corpo ave que se vai cansando de levantar
e as horas deitado ou as patas amarrado
a vida como um relógio de sol sempre na escuridão
e uma alma sincera de dor, exausta por repousar a cabeça no exílio da sombra
a poesia sempre como uma auréola mortal
para a avidez humana de lhe servir de escudo
batem-me à porta homens aflitos
de tudo quanto existe para além do terreno
este quarto uma praia árida onde só o silêncio
em bruto, continuamente o céu empurrando-nos para baixo
só o sopro das janelas uivando de medo
para saborear a liberdade e a dissoluta água que reside no poço da morte
A idade...
como aquele galo que canta atordoado fora de horas
para nos revelar as vicissitudes da luz
e o descanso inigualável da noite
tudo vem ao chamamento magnetismo
a violência dos aquedutos do tempo
e os passos que na surdina da mentira nos afastam de nós
a caneca fica suspensa no canto da mesa
como que por impossível força suspensa
é essa a beleza da decadência
como uma casa agora desabitada por nós visitada
porque se visita a própria vida vista de fora
quando somos animais roedores de vigas
ou cortinas ou a tinta que salta das paredes
e os ecos das pessoas que lá moraram
soam dentro de nós sem saudade
Como se pode ter saudade do que nunca se viveu?
A fantasia visita essas casas quando se entra por uma porta escancarada
e o chão tapete de ervas daninhas
Só então, nesse momento, essa casa pode ser o pensamento, livre.
Fotografam-se, arquivam-se.
Guardam-se em albuns de memória como canecas suspensas antes da queda.
E escondem-se, dentro dessas casas devolutas à espera.
Enrolados na febre da solidão mais forte que o tempo da morte que não vence.
São as unhas que raspam vivas o caixão
sexta-feira, 17 de maio de 2019
Um dia perguntaram-me: porque pensas tanto sobre a morte?
Um dia o meu pai há-de morrer
como um cristal quebrado do lado de dentro
daqueles que trazemos ao peito
assim nú, onde os fluídos da ânsia
apagam depois
as faíscas dos corpos vivos e uma tristeza barroca
depois fica-se à espera
deixando que o quarto anoiteça
com um sopro no coração ou a chuva em queda
Nesse dia morre um pedaço de mim
transbordando dos aglutinados momentos
ou talvez apenas mais um retrato morto
Parte, extingue-se a voz e o calor
e os lacaios estáticos de tons humanos
porque a carne se enrijesse
e tudo anda à roda assim a meia luz
Varriam-se os planos no voo sem alvos
Quando ele dizia que eu andava à deriva
quando me carregava ao cólo
e o meu corpo avião sem sólo
Parte sem que lhe diga adeus ou até breve
e a dor fica-me finada entre os dedos
como a areia dessa ampulheta quebrada
num vago de ausência e presença
para as descargas do pensamento
ou os passos que se aventam sem fé
Um dia passeámos a pé
a vida mudava
e depois como um regaço de gadanhas
cabeças de hidra guizos de prata
ou libelinhas de suavidade
Se eu pudesse dar um passo para fora da terra
os olhos estrelares pintados de negro
e buracos de vácuo
aonde o embate nos vence transferidos
e as linhas batem na janela
porque entre o espaço e o quarto
havia sempre uma fresta
Sucede-se a vida, sem darmos por ela.
Um dia,
deslizando como verniz na porcelana
que hoje nos recebe solitária na entrada
um dia voltaremos a ser pai e filha holográficos
Depois há sempre uma casa
com as suas mutações contínuas
as curvas da escada o tapete o casaco atrás da porta
os objectos que nos vivem das suas crónicas diárias
e o mundo que lhes descansa sobre a forma
Depois há uma folha de jornal ou um vizinho que se chega à porta sem entrar
Porque dentro daquela casa hoje se chora e há respeito
quinta-feira, 9 de maio de 2019
A velha e o aquário
A velha coberta de trapos negros olha as marés, a agua que vai e vem aos seus pés
Olha com a serenidade de alguém velho
E a água vai e vem com a impulsividade de algo novo
Mas é sempre a mesma não é? A água dos oceanos é sempre a mesma não é?
Porque a terra é sempre a mesma não é?
E a velha olha para a linha que a separa do infinito sem qualquer pensamento.
Expira de muito fundo o ar que é já rarefeito e volta a inspirar com a salinidade de uma lágrima.
A vida terrivelmente drástica quando atravessada para a morte.
Mas esse é um pensamento exterior à velha.
Avança e recua com o pé descalço na água fria de inverno. Não se recorda do seu último mergulho.
Não se recorda de ter sido criança se alguma vez o foi. Porque as mãos já amanhavam o peixe, quando o peixe ainda era peixe no aquário de outras crianças.
A vida é um grande aquário de perdas.
E nós peixes, no esquecimento das suas paredes redondas. Mas este é um pensamento exterior à velha.
Porque as paredes do oceano não são redondas nem de vidro nem seguras. E o mar não lhe trouxe de volta a vida.
Até os peixes se suicidam. Atiram-se cá para fora, ficam a dançar no chão para o desperdício das suas últimas golfadas de ar.
Os peixes, esses, despedem-se da vida a dançar. Ou a lutar desesperadamente por respirar.
Porque se atiram? Porque as paredes são redondas e eles não se esquecem que já deram a mesma volta centenas de vezes. Matam-se por desespero.
Porque o aquário é redondo e depois, como todos os seres vivos, lutam contra a última golfada de ar tal como lutam para que o ar lhes saia dos pulmões na primeira golfada do nascimento.
Mas este é um pensamento exterior à velha. Que podia ser rocha ou grão de areia ou pedaço de madeira de embarcação.
Inverno tardio ou o pior poema de sempre
Porque o poema chega sempre com a melancolia de um inverno tardio
como se gasto fosse já da sua energia vital
chega com a fatalidade do depois
como em tudo na minha vida e até a própria vida
Eu queria escrever dessas histórias perfeitas um romance ou muitos igualmente ilusório
mas como posso parar de viver se não paro?
vivo ao ritmo da respiração ofegante de um grito abafado nesse peito
e se não paro como posso escreve lo?
talvez por isso só me crio de poema
de rápida combustão e sempre tardio entendimento
Depois paro às vezes por tão breves segundos que os fotografo
novamente a ilusão de que me permaneço de algum lugar com tempo
e são os carris que me seguem do avesso
dizes que ao contrário estaríamos sempre no começo e que dessa forma nunca nos perderíamos na última página
dizes tanta coisa que se perde na verdade
as estações nascem fora de tempo à parte de qualquer tempo
Nascem-me dentro do peito porque as sinto
dessa forma como minhas
tu também nasceste do meu peito ou de um parapeito de onde me inclinei debrucei e caí
E é no fundamentalismo da melancolia que te registo assim alinhavado mal redigido sujo e pouco definido
Talvez o pior poema da minha vida
mas que vida?
Tenho às vezes a sensação de ter vivido tantas vidas que não vivi ao certo nenhuma
porque para se viver alguma é preciso escolher e abdicar de todas as outras
talvez por isso seja cobarde, acima de tudo e em última instância, cobarde
mas não tão cobarde a ponto do fim
esses são os bons cobardes
os outros escrevem poesia
Havia sempre uma cadeira no teu poema
No meu há uma cama
Deito-me nela aqui quando te escrevo
ou crio a ilusão de uma extensão de uma ideia que se deita num poema
e estar aqui
E o poema cansa se de racionalizar
pergunta-se pelo corpo que o faz vibrar
A cama fria vincada de suores frios
Chama pela voz que o há de soletrar
A cama fria deixada pelo corpo que lhe faz vazio...chama, também ela nasce com a sua própria identidade, é só uma cama
Só eu é que não sou..chama..chama-me
Uma e outra vez, entrando e saindo por esse canal húmido..de lágrimas ou fruto de uma masturbação solitária
Ou a grande penetração da vida pela morte
O poema tem a sua própria vida tão maior que a morte
E todos os nós que até aqui enevoaram a sua conclusão é porque são nós atados de paixão
Daqueles nós que agente aprende e depois esquece como se desfaz
E o poema ganha a sua própria vida, os seus pés, as suas pernas, a sua vagina e até..a sua própria ironia
Depois caminha de boca em boca como uma virose que se pega sem roupa
Para nunca mais ser livre
Porque se nos apega e nos apropira e nós dele
E nós? E eu? E a cama...sempre a cama a interpor-se entre nós ou esses nós que nos atam de depois...
Depois o poema nasce e está tudo na mesma foda
quinta-feira, 2 de maio de 2019
Iconoclasta sem asas
A porta das estrelas
O corpo em escamas
A linguagem das trevas
Além para além do anoitecer
caem me pétalas ácidas da boca
O toque do mercúrio para o fim
Reflexo do futuro
Rolos de papiro onde nos suprimimos de tempo
A grande massa de estuque ilusória
em que nos decompomos em memória
Pergaminho de pele humana e suor
As sobrancelhas negras erguidas contra o sol
O segredo do pó do inferno guardado no ventre mais esventrado de morte
Tenho em mim a inquietação fomentada
Aos adoradores do fogo presto o corpo
As duras rugas dos golpes do coração dobram me de dor
O ventre contraído de dor
Homens de todos os cantos do mundo
paridos deste ventre
A bagagem revisitada nos olhos que me mergulham sem ódio
Tâmaras esmaltes estalados os dentes
que me devoram
Uma bacia de azul para banhos de insustentável voo porque não se parte nunca
Missao - cuspir me para o chão
Ser Nómada das tripas da terra
Na ponta dos dedos
sentir a lâmina da cólera
As veias os rios as margens
Fortificações de cisternas e vértebras
As línguas imperiais emaranhadas agora entre nós
Pedaços de pano cutâneo para nos dissolvermos
Furos abertos das falhas do crânio para nos estendermos ao Sol
A areia do lado finito da ampulheta
E o movimento perpétuo desse sonho
Viajantes do barro composto de terra e lágrimas
A existencia revista em absoluta incoerência
Nómada das tripas da terra
Na ponta dos dedos
Sentir a lâmina da cólera
E um clarão imperial que inunda
as forças que nos sugam à terra
Sentir os pés como pás
Para poder levantar voo o arranque
a impulsão de libertar de dentro esse espaço a mais
E rasgar a pedais o fardo do corpo
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