segunda-feira, 20 de maio de 2019

Uma casa para a criação



A idade começa a crescer-me entre os ossos
como aquelas ervas rasteiras dos passeios
e um rosto sem par que por mais aparado
suspende-se ao espelho como daninho
aquele corpo ave que se vai cansando de levantar
e as horas deitado ou as patas amarrado
a vida como um relógio de sol sempre na escuridão
e uma alma sincera de dor, exausta por repousar a cabeça no exílio da sombra
a poesia sempre como uma auréola mortal
para a avidez humana de lhe servir de escudo
batem-me à porta homens aflitos
de tudo quanto existe para além do terreno
este quarto uma praia árida onde só o silêncio
em bruto, continuamente o céu empurrando-nos para baixo
só o sopro das janelas uivando de medo
para saborear a liberdade e a dissoluta água que reside no poço da morte
A idade...
como aquele galo que canta atordoado fora de horas
para nos revelar as vicissitudes da luz
e o descanso inigualável da noite
tudo vem ao chamamento magnetismo
a violência dos aquedutos do tempo
e os passos que na surdina da mentira nos afastam de nós
a caneca fica suspensa no canto da mesa
como que por impossível força suspensa
é essa a beleza da decadência
como uma casa agora desabitada por nós visitada
porque se visita a própria vida vista de fora
quando somos animais roedores de vigas
ou cortinas ou a tinta que salta das paredes
e os ecos das pessoas que lá moraram
soam dentro de nós sem saudade
Como se pode ter saudade do que nunca se viveu?
A fantasia visita essas casas quando se entra por uma porta escancarada
e o chão tapete de ervas daninhas
Só então, nesse momento, essa casa pode ser o pensamento, livre.
Fotografam-se, arquivam-se.
Guardam-se em albuns de memória como canecas suspensas antes da queda.
E escondem-se, dentro dessas casas devolutas à espera.
Enrolados na febre da solidão mais forte que o tempo da morte que não vence.
São as unhas que raspam vivas o caixão






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