sexta-feira, 24 de maio de 2019
Ruminação sem beira
o silêncio das searas
mas os passos por lá ficaram
passos antigos
que arravessam a extensão dos sonhos
duas irmãs duas vidas
automatica mente ao infinito
para a retribuição da morte
as searas chegando à cintura
os bichos sorrateiros que dormem
a sombra o amarelo torrado
e uma irmã que fica para trás chorando
um futuro natal no cimo do monte
a lua a escuridão os fardos de amanhã
duas irmãs escravas da terra
caracóis negros olhos azeitona verde
e o balbucionar de um não me deixes para trás
os animais profetisando a morte
vagueando como ilha e um faisão
o nascimento súbito do tempo
pentrando pelas vigas do telheiro
esse sol ateu incêndio
saltar da cama cair de joelhos
gatinhar-se de esperança
quando se dissipa o nevoeiro de fim de tarde noutro inverno
e se ajeita a lenha para se acender o esquecimento
daqueles que partem daqueles que ficam
as cinzas atiradas ao vento
com a vontade de gritar o pensamento
duas irmãs caiadas de dor
como paredes onde se regista o tempo
ou a altura do crescimento
castelos de auto controlo
para passos que hão de ser gigantes
Não me deixes para trás
porque as searas são da minha altura
e eu e os bichos somos maus
ou apenas o eco da divina loucura
Abriam-se as pequenas janelas postigos
as redes cheias de mosquitos
a avó trazia o leite fervido
e a idade amassada com amargura
Vejo ao longe esses passos que nunca nos levaram ao cume
a superfície lodosa da terra venenosa
Sulfurica
a madeira impregnada de salitre
quando a terra se cobriu de lágrimas
e o juramento de por lá ficarmos
sentinelas da solidão
para assistir à mutação do homem besta
e ao sussurro do ancoramento do mal
em nome do fogo
e das comportas cerradas do coração
e das sombras das redes de almas perdidas
molho agora as mãos no nevoeiro
visito essa praia colina
Vivo à beira de um vale ventoso
como a aranha que se esgueira pela gaveta
como quem
quem nada tem a vender ao diabo
e minha irmã cerra os lábios
num calar-se para sempre de distância
começo a andar mais depressa
porque o tempo não espera
e a avó partiu fazendo o sinal da cruz
como um catamarã de dor funda
para curvar as baías do limbo
para ver finalmente surgir
o canal do coração em aberto
o próprio mar vivo movendo-se sobre nós
com os seus molhes esbugalhados de prata
e o corpo peixe despido
olhos nacarados sem pulilas só fantasmas
o fantasma do som das searas
de uma madeixa de cabelo caído
da avidez dos gestos da penumbra das salas
que agora sem tecto nos aguardam o regresso
Começo a cantar, a meio de uma palavra
uma oração com a imperfeição de um tampo de mesa ou de campa
o som rítmico e estridente da passagem
das cordas que ainda hão de vibrar num amanhã
os braços da criatura abertos
e a força de um ferro de forja
embalo minha irmã nessa cadeira de baloiço
hoje não se sabe se velha ou criança
escultura de animal que decora o espaldar
para que absorva o calor e a música
e a terra a mover-se sem pressa
o som era alto e vibrante
para o divagar desses passos de infância
dou-lhe a mão, nunca a larguei da mão
nessa imagem que hoje, depois de quase morrer
restaurei
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