quinta-feira, 9 de maio de 2019
A velha e o aquário
A velha coberta de trapos negros olha as marés, a agua que vai e vem aos seus pés
Olha com a serenidade de alguém velho
E a água vai e vem com a impulsividade de algo novo
Mas é sempre a mesma não é? A água dos oceanos é sempre a mesma não é?
Porque a terra é sempre a mesma não é?
E a velha olha para a linha que a separa do infinito sem qualquer pensamento.
Expira de muito fundo o ar que é já rarefeito e volta a inspirar com a salinidade de uma lágrima.
A vida terrivelmente drástica quando atravessada para a morte.
Mas esse é um pensamento exterior à velha.
Avança e recua com o pé descalço na água fria de inverno. Não se recorda do seu último mergulho.
Não se recorda de ter sido criança se alguma vez o foi. Porque as mãos já amanhavam o peixe, quando o peixe ainda era peixe no aquário de outras crianças.
A vida é um grande aquário de perdas.
E nós peixes, no esquecimento das suas paredes redondas. Mas este é um pensamento exterior à velha.
Porque as paredes do oceano não são redondas nem de vidro nem seguras. E o mar não lhe trouxe de volta a vida.
Até os peixes se suicidam. Atiram-se cá para fora, ficam a dançar no chão para o desperdício das suas últimas golfadas de ar.
Os peixes, esses, despedem-se da vida a dançar. Ou a lutar desesperadamente por respirar.
Porque se atiram? Porque as paredes são redondas e eles não se esquecem que já deram a mesma volta centenas de vezes. Matam-se por desespero.
Porque o aquário é redondo e depois, como todos os seres vivos, lutam contra a última golfada de ar tal como lutam para que o ar lhes saia dos pulmões na primeira golfada do nascimento.
Mas este é um pensamento exterior à velha. Que podia ser rocha ou grão de areia ou pedaço de madeira de embarcação.
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