sexta-feira, 17 de maio de 2019

Um dia perguntaram-me: porque pensas tanto sobre a morte?



Um dia o meu pai há-de morrer
como um cristal quebrado do lado de dentro
daqueles que trazemos ao peito
assim nú, onde os fluídos da ânsia
apagam depois
as faíscas dos corpos vivos e uma tristeza barroca
depois fica-se à espera
deixando que o quarto anoiteça
com um sopro no coração ou a chuva em queda
Nesse dia morre um pedaço de mim
transbordando dos aglutinados momentos
ou talvez apenas mais um retrato morto
Parte, extingue-se a voz e o calor
e os lacaios estáticos de tons humanos
porque a carne se enrijesse
e tudo anda à roda assim a meia luz
Varriam-se os planos no voo sem alvos
Quando ele dizia que eu andava à deriva
quando me carregava ao cólo
e o meu corpo avião sem sólo
Parte sem que lhe diga adeus ou até breve
e a dor fica-me finada entre os dedos
como a areia dessa ampulheta quebrada
num vago de ausência e presença
para as descargas do pensamento
ou os passos que se aventam sem fé
Um dia passeámos a pé
a vida mudava
e depois como um regaço de gadanhas
cabeças de hidra guizos de prata
ou libelinhas de suavidade
Se eu pudesse dar um passo para fora da terra
os olhos estrelares pintados de negro
e buracos de vácuo
aonde o embate nos vence transferidos
e as linhas batem na janela
porque entre o espaço e o quarto
havia sempre uma fresta
Sucede-se a vida, sem darmos por ela.
Um dia,
deslizando como verniz na porcelana
que hoje nos recebe solitária na entrada
um dia voltaremos a ser pai e filha holográficos
Depois há sempre uma casa
com as suas mutações contínuas
as curvas da escada o tapete o casaco atrás da porta
os objectos que nos vivem das suas crónicas diárias
e o mundo que lhes descansa sobre a forma
Depois há uma folha de jornal ou um vizinho que se chega à porta sem entrar
Porque dentro daquela casa hoje se chora e há respeito



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