quinta-feira, 21 de maio de 2020

pela boca de cena / por la boca de escena



pisar de novo os claustros da cidade
o passeio extraordinário de um velho novo mundo
são as cores postais atraentes que abrem novas fachadas
o engraxador volta ao seu lugar na esquina da praça
os pombos levantam voo porque há agora passos
e na beira de uma rua esquecida uma maleta de mão
aberta convidando à curiosidade, mais que aberta deixada
um vestido de noiva, uma máscara, um sapato branco
e uma boneca de trapos de rosto amachucado
o homem pegou no vestido antes branco agora champagne
enfiou-o pela cabeça e apertou-o até ao pescoço
levou a máscara ao rosto e calçou o único sapato
deu a mão à boneca e desfilou mancando pelo túnel
que conduzia a uma das maiores artérias da cidade
passou pela esquina da praça e o seu olhar vago
olhos inertes debaixo da máscara que nem sorria nem chorava
cruzou-se com o do engraxador, fez-lhe uma vénia
abriu a mão da algibeira escapou-se um botão
um botão da cor do ouro para lá de uma viagem
abria em céu esgarrado um raio de sol cegante
o engraxador indicou que se sentasse no pequeno banco
o homem esticou a perna e apresentou o seu único sapato
nesse silêncio de sangue que escorre no corredor apertado
a linguagem do pano polindo de mais branco
não havia tal cor na caixa das latas mas havia um velho frasco de verniz
pincelou com toda a calma e mestria de quarenta anos de oficio
o sapato estalava na dificuldade de conter o pé um par de números acima
e quando levantou a cabeça, da máscara do outro escorria agora a lágrima
uma expressão de gratidão ou de comoção de se sentir cuidado
levantou-se com a imponência de uma noiva que se aproxima do altar
entregou o botão na mão seca agora limpa porque há meses que não havia clientes
o sapato brilhava batucando na calçada um novo ritmo
a boneca saltou para o colo esticou uma das suas pequeninas mãos
e por dentro da máscara limpou a lágrima
encostou-se ao peito do homem para escutar o seu coração
batia forte com o orgulho e a frescura de quem está a começar
uma vida, uma nova vida ainda virgem de atamentos e feridas
para desfrutar no passeio extraordinário de um céu agora mais limpo
de um velho novo mundo a despertar


por la boca de escena

pisar de nuevo los claustros de la ciudad
el paseo extraordinario por un viejo nuevo mundo
son los colores postales atractivos que abren nuevas fachadas
el limpiabotas vuelve a su sitio en la esquina de la plaza
los palomos alzan el vuelo, ca hoy hay pasos
y, en el bordillo de una calle olvidada, un maletín
abierto, incitando al curioseo. Más que abierto, abandonado
un vestido de novia, una máscara, un zapato blanco
y una muñeca de trapo con la faz aplastada
el hombre asió el vestido, antes albo, hora champán
se lo enfundó por la cabeza y se lo abrochó hasta el cuello
se llevó la máscara a la cara y se puso el zapato único
cogió de la mano a la muñeca y desfiló renqueante por la galería
conducente a una de las máximas arterias de la ciudad
pasó por la esquina de la plaza, cuando su mirada vaga
ojos inertes bajo la máscara, que ni sonreía ni lagrimaba
se encontró con la del limpiabotas. Le hizo una venia
abrió la mano, del bolsillo se le escapó un botón
un botón del color del oro. Para allá de un viaje
se abría en el cielo desgarrado un rayo de sol cegante
el limpiabotas lo invitó a sentarse en la silla
el hombre estiró la pierna y presentó su zapato único
en ese silencio de sangre corriendo por un pasillo estrecho
el lenguaje del trapo sacando el brillo más blanco
color ese faltante en el cajón de los betunes, donde había, empero, un viejo bote de barniz
pinceló tranquilamente y con la maestría de cuarenta años de oficio
el zapato estallaba en el apuro de contener un pie de dos números por encima
y, cuando irguió la mirada, de la máscara del otro escurría una lágrima
una expresión de gratitud, o la conmoción, por sentirse cuidado
se levantó con la grandeza de una novia acercándose al altar
le entregó el botón en la mano seca, limpia, pues hacía meses no tenía clientes
el zapato brillaba, percutiendo sobre el adoquinado un nuevo ritmo
la muñeca le saltó a los brazos, alargó una de sus chiquitinas manos
y, por dentro de la máscara, le limpió la lágrima
se apoyó en el pecho del hombre para escucharle el corazón
latía vigorosamente con el orgullo y la frescura de quien está comenzando
una vida, una nueva vida todavía virgen de constreñimientos y heridas
para, en el paseo extraordinario, disfrutar de un cielo ahora más limpio

de un viejo nuevo mundo despertando





terça-feira, 12 de maio de 2020

para uma canção / para una canción


soberana feiticeira
que nos cobre o coração de espinhos
a astúcia do seu crime que nos mata
todos os dias com o divagar e a lentidão
de uma grande colcha que está sendo tricotada
as manhãs perfeitas com que nos desperta a dor
obcecada insatisfeita desorganizante
penitências de nadas que nos levantam da cama
para as causas do mundo dos vivos
harmónica de uma promessa de destino
feiticeira contrabandista da alma
remendas e enterras reanimas e matas
corres pelos corredores da morte
sem olhar para trás, persegues quase inumana
branca tão branca quase transparência
passas com a brutalidade dos doidos
e a inocência de uma criança
que pode um homem em paz dar-te a mão
e encontrar a saída da mediocridade
são estas as linhas sintéticas ainda que labirínticas
da própria verdade
da própria sede de liberdade
escavas e enterras nos golpes da madeira
o tempo recriado para ser mais tempo
para falar das coisas sérias com o riso do cínico
e a falta da própria perda
que faz do objecto seu cativeiro

são estas as linhas sintéticas ainda que labirínticas
da própria verdade
da própria sede de liberdade

mas que pode um ser senão converter-se em céu
a terra é um espaço demasiado pequeno
e uma noiva sem véu é como um filho sem berço

mas que pode um ser senão converter-se em meu
a chama é um espaço demasiado quente
e uma palma sem mão é como um verso sem coração


para una canción

soberana hechicera
quien nos cubre el corazón con espinas
la astucia del crimen de ella, que nos mata
todos los días con el divagar y la lentitud
de una gran colcha siendo tricotada
las mañanas perfectas con que nos despierta el dolor
obcecado, insatisfecho, desorganizante
penitencias de nadas, que nos levantan de la cama
para las causas del mundo de los vivos
harmónico de una promesa de destino
hechicera contrabandista del alma
remiendas y entierras, reanimas y matas
corres por los pasillos de la muerte
sin mirar atrás, persigues, casi inhumana
blanca, tan blanca, casi transparencia
pasas, con la brutalidad de los locos
y la inocencia de un niño
que un hombre en paz puede darte la mano
y hallar la salida de la mediocridad
son estas las líneas sintéticas, aunque laberínticas
de la misma verdad
de la misma sed de libertad
excavas y entierras en los golpes de la madera
el tiempo recreado para ser más tiempo
para hablar de lo serio con la risa del cínico
y la falta de la propia pérdida
que hace del objeto su cautiverio

son estas las líneas sintéticas, aunque laberínticas
de la misma verdad
de la misma sed de libertad

pues, qué puede un ser, sino convertirse en cielo
la tierra es un espacio demasiado pequeño
y la novia sin velo es como un hijo sin cuna

pues, qué puede un ser, sino convertirse en mío
la llama es un espacio demasiado caliente
y la palma sin mano es como un verso sin corazón



Tradução por Duarte Fusco




retorno do ritmo / Retorno del ritmo


abre-se uma caixa de espelhos
com a delicadeza de um elefante
com a paralisia de uma convulsão parturiente
os primeiros passos de masturbação
os primeiros calores da alquimia
que a morte afirma por carência absoluta
extinguir
o mundo fechado ao super homem
o susto inseparável quando se depara só
porque temos guerreiros dentro do peito
que há muito haviam encostado as armas
porque temos a fúria dos dias mais longos
e é a natureza ela mesma que dança
um tango manco pela agulha vermelha do sapato
apertas com braços curvos uma presença
holograma de instáveis forças
apertas nesse último momento a eternidade
flagrante no sopro perverso
como se fossemos um espírito errante sem tecto
noites de sonhos com facas e fugas e medos
havia roupa manchada figuras distorcidas
réplicas de partes de gente
e limiares de fronteiras como se pisassemos
as linhas de um cubo escorregadio
atirado à escuridão
atirado ou girando lentamente sobre seus pontos
o universo um amplo átrio de imaginário balnear
dentro de um sonho mas não dentro
no limiar, no limiar
uma espécie de sinistro enfermo
rebela-te rebela-te contra essas paredes de nenhures
recordas que nos bombeava no peito?
no equilíbrio das espécies de contradição
os fios que nos separam da devoção a um qualquer fim
cheguei morno à manhã que me trouxe de volta
com o sabor de uma hipoteca um roubo assalto
na língua a saliva seca da ruína
quando tudo perece em enigma
e no mais exótico dos compassos o pensamento curva
na magreza de um guru
nos vincos que a pele deixa sobre os ossos
a simbiose da miséria das forças do pulso
o corpo comparado a um eletrodoméstico
mas a energia que carrega é eléctrica
por isso se destina apenas a ser rentável
tenho viajado de olhos abertos
fusões espaciais de antagonismos profundos
para me debater com a imortalidade das palavras
a folha passagem num caminho de pó
uma enorme pira de lenha que depois de ardida
se converte em finas plumas de adubo
mas que adubei eu na minha vida?
uma dentadura postiça para proferir esses vocábulos
que nos trazem retratos de outrora
porque o tempo escrito haverá sempre de ser convertido
em novas e velhas agonias e horas muitas horas
para retratar esses passadiços frágeis
onde nessa espécie de dueto
nesse tal de improviso nos convertemos
em chama de verão eterno


retorno del ritmo

se abre una caja de espejos
con la delicadeza de un elefante
con la parálisis de una convulsión parturiente
los primeros pasos de masturbación
los primeros calores de alquimia
que la muerte afirma por carencia absoluta
extinguir
el mundo cerrado al superhombre
el susto inseparable cuando él se encuentra solo
porque tenemos guerreros dentro del pecho
quienes, hace mucho, arrimaron las armas
porque tenemos la furia de los días más largos
y es la natura, ella misma, quien baila
un tango cojo por el alfiler rojo del zapato
aprietas con brazos curvos una presencia
holograma de inestables fuerzas
aprietas en ese último momento la eternidad
flagrante en el soplo perverso
como si fuésemos un espíritu errante sin techo
noches de sueños con cuchillos, y huidas, y miedos
había ropa manchada, figuras destorcidas
réplicas de partes de gente
y umbrales de fronteras, como si hollásemos
las aristas de un cubo resbaladizo
echado a la oscuridad
echado, o girando lentamente sobre sus vértices
el universo — amplo atrio de un imaginario balneario
dentro de un ensueño, pero no dentro
en el umbral, en el umbral
una especie de siniestro enfermo
rebélate, rebélate contra esas paredes de ningún sitio
¿recuerdas lo que nos bombeaba en el pecho?
en el equilibrio de las especies de contradicción
los hilos que nos separan de la devoción a un cualquier fin
llegué tibia a la mañana que me trajo de vuelta
con el sabor de una hipoteca, un robo, un atraco
en la lengua la saliva seca de la ruina
cuando todo perece en un enigma
y, en el más exótico de los compases, el pensamiento encorva
en la magrez de un gurú
en los pliegues que la piel deja sobre los huesos
la simbiosis de la miseria de las fuerzas del pulso
el cuerpo como un electrodoméstico
con la energía que porta siendo eléctrica
por ello se destina sólo a ser rentable
tengo viajado de ojos abiertos
fusiones espaciales de antagonismos profundos
para debatirme con la inmortalidad de las palabras
la hoja, pasaje en un camino de polvo
una enorme pira de leña, que, ardida
se convierte en finas plumas de abono
pero ¿qué he abonado yo en mi vida?
una dentadura postiza para proferir esos vocablos
que nos traen retratos de otrora
porque el tiempo escrito siempre habrá de ser convertido
en nuevas y viejas agonías, y horas, muchas horas
para retratar esos pasadizos frágiles
donde, en esa especie de dueto,
en ese tal «de improviso», nos convertimos

en llama de verano eterno

Tradução por Duarte Fusco

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Para amar una vida - Tradução Duarte Fusco

Para amar una vida
 
Sabes, mi amor
cómo se da los pasos al revés
cómo se descubre los caminos
por primera vez
que al envejecer nacemos
que los días queden más largos
y las interminables noches sin sueño
Sabes, mi amor
cuando me adormezco temo
que aun así es distancia, cual no pido
Cuánto tiempo ya fuimos un otro
Cuántas veces busqué tu rostro
y mi tristeza retumbaba a la vuelta
Ahora siento en mí un aprieto
un miedo tremendo del fin
que te vayas
o que vaya yo sin ti
Sabes, mi amor
alguien me dijo que amar es así
Fue menester toda una vida
para querer, por fin, vivirla de verdad
Fue menester toda una vida
para querer, por fin, que no se acabe
Todos los ratos
felices pasados contigo
no son las memorias que pido
son las horas para repetirlos

Obrigado irmão 

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Peregrinos do riso / Peregrinos de la risa



por essas janelas trepadeiras
irremediavelmente distantes
jura o dedo espetado de um velho
as tintas por pintar as mobilias por desencaixotar
e os martelos por salvar essa ruína
que intuiu sem o poder de cura-la
ficaram conversas por terminar
quando todas as portas se fecham
a boca negra abrir céus de infestadas trovoadas
seres oceânicos tão próximos
que hoje já não se conhecem
porque passamos a vida a olhar para trás
com o treino dos animais que perecem em cativeiro
repetindo-se em dinastias redondas
a chuva que cai é mansa
condensada do concreto do desbaste do cronometro
das dualidades de palhaço triste
os macacos tomam conta do trapézio
figurinos de uma animação caótica
o faquir engole os golpes da vida
não é mais a luta da dor física
o turbante desenrola-se de cabelos brancos
artista telepático do mundo lá fora
os cavalos pastam comendo a lona
enfardando a mocidade da travessia
que o pó dos vidros das caravanas anuncia
ter chegado ao fim
os bancos corridos servem de camas a outros sem abrigo
e as cordas que sustentavam o circo
servem agora para forcas
anuncia-se o inicio do espectáculo sem ânimo
uma voz rouca caída pela capa virada do avesso
heróis do ar, do fogo, terra e mar
que hoje se enlouquecem no arrastar
dos últimos farrapos
como se o afagar do pêlo de um animal indomável
esse mundo lá fora queimando por dentro
uma motocicleta voadora para a última criança
um pónei uma carroça um colchão de pregos
gaiolas vazias cartolas de dívidas baralhos sem naipes
veludo cor de rosa despido e o brilho o brilho
dessas valquírias trepadeiras
por vezes uma pomba esvoaçante traz aplausos e risos
asas no céu
para o número da alma
entrada em cena do passado
rumo à auto-estrada desse milagre que foi ser-se feliz
bonito esse foxtrote de coxas rijas
esse bombear de ventrículos
agora ventriloquismo da devastação
podemos encher o cachimbo com as mãos 
beber do gargalo com a boca aberta
transbordar sem cautela em forma de cão 
que se atira à estrada
Porque não se parte nunca
dessa ostra que perdeu a sua pérola
A vida é
um lugar onde o circo só esteve de passagem



Peregrinos de la risa

por esas ventanas trepadoras
irremediablemente distantes
jura el dedo sacado de un viejo
las pinturas por pintar, los trastos por desencajonar
y los martillos por salvar esa ruina
que intuyó, sin el poder de curarla
quedaron conversaciones por terminar
en cuanto las puertas se cierran
la boca negra abre cielos de plagadas tronadas
seres oceánicos tan cercanos
que hoy ya no se conocen
porque pasamos la vida mirando atrás
con el adiestramiento de los animales que perecen en cautiverio
repitiéndose en dinastías redondas
la lluvia que cae es mansa
condensada del concreto del desbaste del cronómetro
de las dualidades del payaso triste
los monos se hacen cargo del trapecio
figurines de una animación caótica
el faquir se traga los golpes de la vida
no es más la lucha del dolor físico
el turbante se desenvuelve en pelos canos
artista telepático del mundo de allá fuera
los caballos pacen royendo la lona
atracándose con la mocedad de la travesía
que el polvo de los cristales de las caravanas anuncia
haber llegado al fin
los bancos corridos sirven de lecho a otros sin techo
y las sogas, que sostenían el circo
sirven ahora para horcas
se anuncia el inicio de la función sin ánimo
una voz ronca caída por la capa al revés
héroes del aire, del fuego, tierra y mar
quienes hoy enloquecen en el arrastre
de los postreros jirones
como el acariar del pelo de un animal indomable
el mundo allá fuera ardiendo por dentro
una motocicleta voladora para el último crío
una jaca, una carreta, una cama de clavos
jaulas vacías, chisteras de deudas, naipes sin palos
terciopelo rosa desnudo y el brillo, el brillo
de esas valquirias trepadoras
a la de veces una paloma revoloteante trae aplausos y risas
alas en el cielo
para el número del alma
entrada en escena del pasado
rumbo a la autopista de ese miraglo que fue el haber sido feliz
bonito ese foxrot de muslos tiesos
ese bombear de ventrículos
ahora ventriloquía de la devastación
«podemos rellenar la pipa con las manos
beber a morro con la boca abierta
desbordarnos sin cautela en forma de perro
atirado a la carretera»
Porque una no sale nunca
de esa ostra que perdió su perla
La vida es

un lugar donde el circo solo estuvo de paso

Tradução por Duarte Fusco

segunda-feira, 4 de maio de 2020

acima de nós nada / encima de nosostros, nada



pendurado num gancho do tecto
uma criatura estouvada do mundo
a lâmpada forte imitação barata do astro
debruça-se na plataforma
uma beira de pensamento disforme
manejando um pincel com o hábito
de uma vida inteira
a própria veemência do desejo
arrastado num grande vendaval
criatura conturbado e sombrio
olhos fixos na multidão que espia
a trivialidade da sua partida
ainda um gozo especial para disseminar
com afinco esse retrato
o pincelar de um lado para o outro
da morte extensível nas paredes
a luta para se desprender da pele
atira-se ao chão gritante
abatido de muito doente
com vontade de comer o próprio estômago
obstinado no quebrar de cada osso
abrirem-se as costelas e as vértebras
numa simples cruz e pedra
sendo mais que uma réplica
hoje atiro as árvores contra o céu
piso as sombras que descoloram de tudo
o horizonte que teme ser mais noite
hoje separam-se as quimeras das horas batidas
para a salvação da alma imortal
uma viva sensação de livre
uma regra provisória que se reinventa
a cada novo traço do quadro
um espírito congénere ao seu
inacessível e austero
lembra-me de ser a estátua mais altiva
depositada no monte mais robusto
e prados outros sem bom senso
hoje nasce um homem platónico
um cidade esboço para o futuro
ou acidente natural sem ventre
de alma jubilosa um organismo uma arma
sem sacrifício sem fim sem recompensa
- a velha remexeu no caldeirão, apurou o lume
retirou os ossos para que não se engasgasse
retirou a pele para que não se engordasse
retirou a carne para que não se envenenasse
e engoliu a alma para que ressuscitasse



e o criatura levantou-se



encima de nosostros, nada

colgada de un gancho en el techo
una creatura botarate del mundo
la lámpara, fuerte imitación barata del astro
se inclina en el andén
un borde de pensamiento deforme
manejando un pincel con el hábito
de una vida entera
la propia vehemencia del deseo
arrastrado en un maño vendaval
creatura conturbada y sombría
mirada fija en la turba que espía
la trivialidad de su partida
aún un disfrute singular por diseminar
con ahínco ese retrato
el pincelar de un lado a otro
de la muerte extensible en las paredes
la lucha por desprenderse de la piel
se tira al suelo gritante
abatido de muy doliente
con ganas de tragarse el propio estómago
obstinado en el quebrar de cada hueso
en el apartar de las costillas y vértebras
en una simple cruz y piedra
siendo más que una réplica
hoy echo los árboles contra el cielo
piso las sombras que todo descoloren
el horizonte que teme ser más noche
hoy se separan las quimeras de las horas manidas
para la salvación del alma inmortal
una viva sensación de libre
una regla provisional que se reinventa
con cada nuevo rasgo del cuadro
un espíritu congénere al suyo
inaccesible y austero
me nembra de ser la estatua más altiva
depositada en el monte más robusto
y prados otros sin sentido común
hoy nace un hombre platónico
una ciudad bosquejo para el futuro
o accidente natural sin vientre
de alma jubilosa, un organismo, un arma
sin sacrificio, sin fin, sin recompensa
— la vieja removió en la caldera, templó la lumbre
extrajo los huesos para no atragantarse
extrajo la piel para no engordarse
extrajo la carne para no envenenarse
y engulló el alma para resucitarse


y la creatura se irguió

Tradução Duarte Fusco

Storytelling



A voz débil apalpou a manhã no descolar das pálpebras. Tinha um ar grave, pesado.
Havia pedaços de sonho derretendo pelas paredes, quebrando as fendas apenas ecos de sensações da noite partida. Um carro resvalando pelo abismo caracol para aportar num pátio de roupas ao sol. E malas por estrear muitas diferentes. Trouxe-as comigo para a comunidade, aqui podem secar. Como pudeste fazer isso? Eles vão levar tudo e eu? Estas coisas eram minhas. Uma a uma observei as peças que diluídas na corda entre outras desconhecidas brilhavam de novas. O verniz, o cheiro das peles, as roupas ainda coloridas e vigorosas. Ocorreu-me que esta sensação era antiga. Quando ia a casa de fim de semana e a minha irmã já havia assaltado o meu armário dizendo sempre que pensava serem dela. Vais alargar tudo...não tinhas esse direito. Houve um tempo em que deixei mesmo o armário trancado. Como se me estivessem a roubar o lugar que havia deixado apenas a levedar. Talvez voltasse, talvez não, mas era preciso que lá estivesse. A família não deve ser um lugar com prazo de validade mas vários anos depois dei-me conta que o lugar não está lá para sempre, ou as pessoas que fazem esse lugar não duram para sempre. Pior que isso, os sentimentos definham, não morrem mas amarguram e definham. Era também um sentimento de egoísmo. Porque não partilhar com os outros? De que me serviam aquelas coisas naquele lugar. Dos fiapos de sonho avistados agora à distância da manhã esse lugar tinha apenas apontamentos. Haverá sempre o dilema do tempo vivido e do tempo escrito. Depois havia a carta que chegara sem aviso. Trazia o passado embrulhado num envelope já há muito selado. Trazia o papel timbrado de uma distância de trinta anos. Conversas remotas, lugares já desaparecidos, pessoas envelhecidas mas não na memória. Trazia escolhas de caminhos sem volta. E notícias novas. E pessoas novas na vida dessas pessoas, nascidas. Na verdade tinha sido uma semana de retorno de alguns fantasmas. Ás vezes tenho a sensação de que fiquei lá sentada naquele canto de quarto perspectivando todo um futuro que não se realizou. A sensação de vida parada propaga-se como uma onda e ecos dessa onda de movimentos perpétuos. Essa lentidão com que se desenrolam os passos da vida incomoda porque corre numa passadeira automática muito mais veloz que ela. Então é como se os nossos passos não aterrassem. Correm no vácuo para lugar nenhum ou pior, encerrados nesse canto de quarto. Naquele tempo eu queria viver tudo ou queria que tudo tornasse em vida. Era uma espera de algo que pudesse começar. Mas hoje, trinta anos depois dá-me a sensação que não começou nada ou que tudo foram uma amálgama de começos sem continuação. Gostava de me recordar da tua resposta. Até porque o sonho reflecte um passado do avesso, muitas foram as coisas que te levei para te dar. A esta falsa irmã dava tudo, à outra não. A outra levava sem pedir, sem precisar. Esta precisava e não pedia. Éramos miúdas, tudo isto era normal entre irmãs de sangue. Entre amigos é diferente, é preciso que as pessoas se lembrem de perguntar se precisam de algo.  
A viagem de comboio era muito longa, horas para atravessar o país. Quando chegava a minha mãe ia buscar-me à estação sempre com um ar muito preocupado pela vida que eu levaria lá longe. Trazia sempre comida porque adivinhava-me a fome. Essas viagens para a frente e para trás eram tão longas como dolorosas. Porque havia um corte que levava todo o tempo da viagem a sarar, uma para casa e outra de regresso para a suposta nova casa lá longe. Mas a escolha e a vontade tinha sido minha. Eu queria viver o mundo com os meus olhos e as minhas mãos. Crescer com os meus erros sem que ninguém pudesse dar-me o ombro para que chorasse por eles. Porque assim achava eu cresceria mais forte. Na primeira vez a minha mãe foi levar-me de carro, levei objectos, panelas, panos, cobertores e muitas expectativas de encontrar um mundo novo. O mundo da nossa casa era pequeno, seguro mas pobre de novidade. E além disso tinha todo um luxo que não espelhava a dor do mundo. Tinha dor também, a ausência do meu pai, as cefaleias da minha mãe que a enclausuravam no quarto às escuras e as constantes desavenças entre ela e a minha irmã. Era uma casa aos meus olhos triste porque me sentia só. Também não havia amigos, tínhamos mudado de cidade e as pessoas no Alentejo são muito fechadas e levam muitos anos a confiar. Eu tinha chegado à pouco tempo e assim que pude queria partir. Foi um Alentejo partido em vários. Mudamos de cidade algumas vezes, perdi sempre os amigos, os quartos de infância, por isso esse meu Alentejo não tem um só lugar. É uma grande planície de sombras e estrelas. Esse meu lugar de melancolia que me habita no peito inteiro. Vazio de pessoas, vazio de histórias minhas. Estarei sempre de passagem e no entanto tenho a sensação de que nunca de lá saí. Dizem que é assim que habita em nós a nossa mais doce e frágil criança. Mas as coisas mudaram ao longo dos anos, eu voltei ao meu lugar da família, a minha mãe melhorou muito das cefaleias e pôde dedicar-se mais às filhas reformando-se, a minha irmã cresceu e deixou-se estar em paz construindo a sua própria família e o seu mundo e eu...por aqui fiquei nestas memórias como aquelas malas estendidas ao sol. Tenho agora a sensação que o meu brilho se vai diluindo, o verniz vai dando lugar a alguma idade, mas não tenho estampado no rosto ainda a descoloração das restantes peças estendidas. Porque para mim trinta anos não foi quase nada. Vivi como se fossem trinta dias, todos com infinitas horas e passando depressa demais. Os dias para mim são sempre poucos porque tenho angústia de morte. Não quero saber dos médicos da cabeça nem de anestesiantes para esta angústia. Uns dias mais pesada que outros, mas tenho tido a convicção de que sou capaz de suporta-la sozinha. Vamos chegar atrasadas, deixa lá as roupas. Desculpa só queria ser prática, tinha de vir ter contigo e acabei por traze-las comigo para a estender aqui. Além disso não compreendo onde tinha eu intenção de as estender, nós vivemos aqui. Na verdade agora que penso nisso, nem sei onde estava antes de estar aqui. Eu também acho que ficamos a viver dentro dessa comunidade para sempre. Porque a alienação foi tão cortante que nenhuma outra realidade sobreviveu mais dentro de nós, nem no passado nem em qualquer futuro. O mundo que criámos lá dentro era tão mais perfeito. Os nossos irmãos não padeciam dos defeitos que espiávamos lá fora. Nós não tínhamos doenças dentro da cabeça e hoje temos todas as doenças de quem sente demasiado o peso do mundo doente e por mais que tentemos, hoje não conseguimos fazer parte dele. Não, não é possível lá voltar. Foi uma escolha nossa. Fechei os olhos e procurei por ela esticando a última peça na corda. Mas este lugar é onde? Olha à tua volta estamos num buraco. Uma cova cheia de sol. Olha para cima, são só curvas, que vês no topo? Nada. Ela atirou-me com o saco das molas irritada. Mas tu hoje estás parva? Eu conduzo. Vai pro carro. Eu quero ver que desculpa vamos dar ao mestre. Vamos? Vou...porque ele nunca nos viu às duas. Esta ideia de irmos à vez foi um disparate, agora se não acerto com as horas..eu quero ver se nos enganamos. Vá anda. Enquanto isso tens trabalho lá fora para fazer. A reunião lembras-te? Ou também disparataste com a outra vida. Espera...percebi agora. Eu estava a estender a roupa na outra vida. Pois foi. Tenho sempre aquele atraso de me aperceber onde estou quando trocamos. Vá anda. Deixas-me na aula e segues para a reunião. Logo trocamos e vou eu às compras...Sim, vamos. 
A voz débil apalpou a manhã no descolar das pálpebras. Tinha um ar grave, pesado. 
Pesado porque os fiapos de sonho davam lugar a uma vida inteira, duas grandes vidas inteiras e sempre este acordar, este rasgo doloroso e uma lágrima por ser forçado. Saudades sempre muitas desta metade, neste vai e vem de duas que prometeram viver à vez. Mas silêncio...vamos lá que não podemos chegar atrasadas.