A voz débil apalpou a manhã no descolar das pálpebras. Tinha um ar grave, pesado.
Havia pedaços de sonho derretendo pelas paredes, quebrando as fendas apenas ecos de sensações da noite partida. Um carro resvalando pelo abismo caracol para aportar num pátio de roupas ao sol. E malas por estrear muitas diferentes. Trouxe-as comigo para a comunidade, aqui podem secar. Como pudeste fazer isso? Eles vão levar tudo e eu? Estas coisas eram minhas. Uma a uma observei as peças que diluídas na corda entre outras desconhecidas brilhavam de novas. O verniz, o cheiro das peles, as roupas ainda coloridas e vigorosas. Ocorreu-me que esta sensação era antiga. Quando ia a casa de fim de semana e a minha irmã já havia assaltado o meu armário dizendo sempre que pensava serem dela. Vais alargar tudo...não tinhas esse direito. Houve um tempo em que deixei mesmo o armário trancado. Como se me estivessem a roubar o lugar que havia deixado apenas a levedar. Talvez voltasse, talvez não, mas era preciso que lá estivesse. A família não deve ser um lugar com prazo de validade mas vários anos depois dei-me conta que o lugar não está lá para sempre, ou as pessoas que fazem esse lugar não duram para sempre. Pior que isso, os sentimentos definham, não morrem mas amarguram e definham. Era também um sentimento de egoísmo. Porque não partilhar com os outros? De que me serviam aquelas coisas naquele lugar. Dos fiapos de sonho avistados agora à distância da manhã esse lugar tinha apenas apontamentos. Haverá sempre o dilema do tempo vivido e do tempo escrito. Depois havia a carta que chegara sem aviso. Trazia o passado embrulhado num envelope já há muito selado. Trazia o papel timbrado de uma distância de trinta anos. Conversas remotas, lugares já desaparecidos, pessoas envelhecidas mas não na memória. Trazia escolhas de caminhos sem volta. E notícias novas. E pessoas novas na vida dessas pessoas, nascidas. Na verdade tinha sido uma semana de retorno de alguns fantasmas. Ás vezes tenho a sensação de que fiquei lá sentada naquele canto de quarto perspectivando todo um futuro que não se realizou. A sensação de vida parada propaga-se como uma onda e ecos dessa onda de movimentos perpétuos. Essa lentidão com que se desenrolam os passos da vida incomoda porque corre numa passadeira automática muito mais veloz que ela. Então é como se os nossos passos não aterrassem. Correm no vácuo para lugar nenhum ou pior, encerrados nesse canto de quarto. Naquele tempo eu queria viver tudo ou queria que tudo tornasse em vida. Era uma espera de algo que pudesse começar. Mas hoje, trinta anos depois dá-me a sensação que não começou nada ou que tudo foram uma amálgama de começos sem continuação. Gostava de me recordar da tua resposta. Até porque o sonho reflecte um passado do avesso, muitas foram as coisas que te levei para te dar. A esta falsa irmã dava tudo, à outra não. A outra levava sem pedir, sem precisar. Esta precisava e não pedia. Éramos miúdas, tudo isto era normal entre irmãs de sangue. Entre amigos é diferente, é preciso que as pessoas se lembrem de perguntar se precisam de algo.
A viagem de comboio era muito longa, horas para atravessar o país. Quando chegava a minha mãe ia buscar-me à estação sempre com um ar muito preocupado pela vida que eu levaria lá longe. Trazia sempre comida porque adivinhava-me a fome. Essas viagens para a frente e para trás eram tão longas como dolorosas. Porque havia um corte que levava todo o tempo da viagem a sarar, uma para casa e outra de regresso para a suposta nova casa lá longe. Mas a escolha e a vontade tinha sido minha. Eu queria viver o mundo com os meus olhos e as minhas mãos. Crescer com os meus erros sem que ninguém pudesse dar-me o ombro para que chorasse por eles. Porque assim achava eu cresceria mais forte. Na primeira vez a minha mãe foi levar-me de carro, levei objectos, panelas, panos, cobertores e muitas expectativas de encontrar um mundo novo. O mundo da nossa casa era pequeno, seguro mas pobre de novidade. E além disso tinha todo um luxo que não espelhava a dor do mundo. Tinha dor também, a ausência do meu pai, as cefaleias da minha mãe que a enclausuravam no quarto às escuras e as constantes desavenças entre ela e a minha irmã. Era uma casa aos meus olhos triste porque me sentia só. Também não havia amigos, tínhamos mudado de cidade e as pessoas no Alentejo são muito fechadas e levam muitos anos a confiar. Eu tinha chegado à pouco tempo e assim que pude queria partir. Foi um Alentejo partido em vários. Mudamos de cidade algumas vezes, perdi sempre os amigos, os quartos de infância, por isso esse meu Alentejo não tem um só lugar. É uma grande planície de sombras e estrelas. Esse meu lugar de melancolia que me habita no peito inteiro. Vazio de pessoas, vazio de histórias minhas. Estarei sempre de passagem e no entanto tenho a sensação de que nunca de lá saí. Dizem que é assim que habita em nós a nossa mais doce e frágil criança. Mas as coisas mudaram ao longo dos anos, eu voltei ao meu lugar da família, a minha mãe melhorou muito das cefaleias e pôde dedicar-se mais às filhas reformando-se, a minha irmã cresceu e deixou-se estar em paz construindo a sua própria família e o seu mundo e eu...por aqui fiquei nestas memórias como aquelas malas estendidas ao sol. Tenho agora a sensação que o meu brilho se vai diluindo, o verniz vai dando lugar a alguma idade, mas não tenho estampado no rosto ainda a descoloração das restantes peças estendidas. Porque para mim trinta anos não foi quase nada. Vivi como se fossem trinta dias, todos com infinitas horas e passando depressa demais. Os dias para mim são sempre poucos porque tenho angústia de morte. Não quero saber dos médicos da cabeça nem de anestesiantes para esta angústia. Uns dias mais pesada que outros, mas tenho tido a convicção de que sou capaz de suporta-la sozinha. Vamos chegar atrasadas, deixa lá as roupas. Desculpa só queria ser prática, tinha de vir ter contigo e acabei por traze-las comigo para a estender aqui. Além disso não compreendo onde tinha eu intenção de as estender, nós vivemos aqui. Na verdade agora que penso nisso, nem sei onde estava antes de estar aqui. Eu também acho que ficamos a viver dentro dessa comunidade para sempre. Porque a alienação foi tão cortante que nenhuma outra realidade sobreviveu mais dentro de nós, nem no passado nem em qualquer futuro. O mundo que criámos lá dentro era tão mais perfeito. Os nossos irmãos não padeciam dos defeitos que espiávamos lá fora. Nós não tínhamos doenças dentro da cabeça e hoje temos todas as doenças de quem sente demasiado o peso do mundo doente e por mais que tentemos, hoje não conseguimos fazer parte dele. Não, não é possível lá voltar. Foi uma escolha nossa. Fechei os olhos e procurei por ela esticando a última peça na corda. Mas este lugar é onde? Olha à tua volta estamos num buraco. Uma cova cheia de sol. Olha para cima, são só curvas, que vês no topo? Nada. Ela atirou-me com o saco das molas irritada. Mas tu hoje estás parva? Eu conduzo. Vai pro carro. Eu quero ver que desculpa vamos dar ao mestre. Vamos? Vou...porque ele nunca nos viu às duas. Esta ideia de irmos à vez foi um disparate, agora se não acerto com as horas..eu quero ver se nos enganamos. Vá anda. Enquanto isso tens trabalho lá fora para fazer. A reunião lembras-te? Ou também disparataste com a outra vida. Espera...percebi agora. Eu estava a estender a roupa na outra vida. Pois foi. Tenho sempre aquele atraso de me aperceber onde estou quando trocamos. Vá anda. Deixas-me na aula e segues para a reunião. Logo trocamos e vou eu às compras...Sim, vamos.
A voz débil apalpou a manhã no descolar das pálpebras. Tinha um ar grave, pesado.
Pesado porque os fiapos de sonho davam lugar a uma vida inteira, duas grandes vidas inteiras e sempre este acordar, este rasgo doloroso e uma lágrima por ser forçado. Saudades sempre muitas desta metade, neste vai e vem de duas que prometeram viver à vez. Mas silêncio...vamos lá que não podemos chegar atrasadas.
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