sexta-feira, 29 de abril de 2016

os lutos do imaginário



opalescente tenacidade
além do presente símbolo
estado de naturalidade  - eu tranquilo
cortina de premonições
bagagem longa noite
não é nada...não é nada
da natureza transformada
a união dos corpos
descartando o adjecto da perfeição
o ser é fosco, tosco, esgota-se
na sublimação da realidade
o céu forrado de flores e pássaros exóticos
a presença absoluta
globulosa do vagar da vida
no sono arrastado da meia noite
precipita-se o encontro
dos espíritos que vagueiam entre mundos
a nossa falta de ginástica sobrenatural
a engenharia provinciana da paciência
em busca do real maravilhoso
nos confins das paredes de um fosso
a relação autêntica com uma gaiola
reconhecer os seus limites e ama-los
há fins que não se derrubam dentro de nós
antes nos infiltram da voz
das aves que se atrasam e ficam para trás
pendem sobre os murais das águas mortas
dos gestos inestéticos dos venenos
que nos condenam a mente
aos grandes olhos doentes do espírito
o fastio das horas de resíduos
ao lodo, reflexos escondem a morte
o verdadeiro verde clorofílico
não é deste mundo
estátuas de ferro não têm filhos
essa decadente órbita mitómana
nos campos de mijo envernizados
que a nudez agrava
a cidade que enlutámos deita-se com os nossos ossos


space dogs


coisas que matam o tempo
labaredas delírio
querendo rugir cirandando
no Apolo imaginário
gaiatos percorrendo paradoxos de caminhos
do índice vagaroso de uma aventura
escoando das escadas dos anos
o que lá vai lá vem irmão
essa pequena terra redonda que não é visual
sobre a qual nos alinhavamos sem caligrafia
o céu vai encolhendo
há uma imperceptível pureza
na saudação ao sol
multiplicam-se as forças dos destroços
nos soluços do que resta da infância
pedras amorfas alinhadas no passadiço
quando o assombrado se levanta
contemplo em redor a naturalidade
com que tudo se move, em frente
se as coisas pequenas pudessem ser gente
das caprichosas combinações do ventre
raízes a flores, brancura-rubor, milagres a dor
o apetite de inundar os olhos de um mundo que não este
da luta corpo a corpo, do empurra das coisas crescidas
da brevidade circular das mãos vencidas
o pavor não aclama o suor gélido
nem o trabalho acalma a arrelia
o sonho havia de continuar noutra vida
do sentir arquejante das cinzas
o chão dá-nos chapadas duras

sexta-feira, 22 de abril de 2016

sem chão


se as minhas mãos estivessem em sangue
passaria-as pela cal branca
querendo sentir o ardor dessas paisagens
para o corpo não esquecer nunca mais
o caminho de volta a casa
as vísceras serpenteiam-me
à boca chega o veneno
de um olhar saturado
acaricio o crânio
faço-lhe cócegas com o dedo médio
a cabeça encosta-se à outra palma
e uma alma à beira da secretária
os armazéns à beira do rio
são manifestações de um passado arcaico
numa outra cidade eu habito
medito o pesar de um cigarro antigo
a dama do sopro
essa latrina vaporeta
donde aceno
um cinzeiro de lata retorcido
onde apago tudo o que sinto
em todo o caso um casaco para o encontro
desses burgueses astrológicos
espécie de penugem cisne
inalienável belo, despir-me
flutuar sem identidade física
apertar o corpo contra a sombra
dentro de casa, na carícia da erva
no berço da lua, no sexo de uma cratera

há um gesto no lavar da loiça
no engomar da roupa
no temperar do tacho
no aparar dos canteiros
no pentear dos potros
no babar dos sapos
nos confins da memória
meus pés nunca passaram desses muros
o escoar suportando este dormitório
por aqui a asfixia paira carraceira
nos demónios alucino genios do movimento continuo
os reflexos mornos
laranjas vermelhos que entornam o céu de cinza
vende-se constelação
quando se rasga o animal
e as vísceras sabem a sonho

os olhos pesam de um azul glaciatico
massa que envolvo e devolvo à linha
sem os fonemas habituais
seríamos terraquios sem chão
nossas línguas mudas castigam
papagaio de papel ou arame de Babel
é a estrada viva
das luzes extintas
o estranho baloiço que ainda se encontra
nesse vai e vem anatómico de um instante
um céu de platina ao milímetro paulatino
talvez seja alheio


palavras ao vento



desse léxico de estáticos limiares
fermenta a madrugada nas vagas sombrias
de não se saber voz ou ventania
a empurrar fixamente as gentes
pesquisando no céu espaços de mistério
para onde caminham as nuvens...
é incerto
do descontentamento inquieto
poderia nascer um verso
com todo o asco pela palavra universo

o vento importuna
desnorteia-me o pensamento
deixa-me o corpo inquieto
os cabelos nos olhos
as folhas reviradas
o cigarro se apagando
o lixo dos outros
o bafo do rio
e um grito devolvido
se estampando no rosto
o verso feito e refeito
e de um só feito: aventá-lo
ao espaço saturado das coisas
que não lhe pertencem
todos os ares remoídos
me vencem

que reconheço eu?
este silêncio que é só meu
os outros pensam a favor do vento
riem de tudo, não dizem nada
há uma ordem que me excluo
numa altura que não sinto
da frente militante da alma
do fascínio pelo corpo na sombra
através da cortina do vento espesso
balanço
essa amputação de forças interiores
onde tudo é passageiro
passa o sentido entre os outros
numa identidade sem nome
a inspiração é algo insuportável
para um grande ansioso
obsessivamente quero ver para além
e o verso não se invade do concreto
farto desta película de brancura
donde não se esboçam lábios
de ternura
o vento gela, rasga, desmancha
o que posso descrever é senão a raiva
do próprio poema que não se encontra

diálogos de pedra



a chuva vai lavando as estátuas
no diálogo de um apego que escorre
esses braços de pedra que acolhem as pombas
na sombra que embala a febre dos dormentes
nesse tapete de corpo alcatroado expandido
aos caprichos do vento a alma é jogada
para longe
e confessar-lhe o murmúrio da vontade
de levar tudo
há um íman que nos arrasta pelas nuvens
cravejado nas estrelas um animal dolorido
as chagas de uma criança que nasce contigo
fins em que os amantes se desconjuntam
separa-os o ciclo da nostalgia
há o inesgotável cântico da morte
que os enlouquece de mágoas
e as minhas mãos calorosas que gelam as tuas
porque nem o sol acorda nem a lua se deita
das origens parece que a primeira palavra
pertence a deus
mas não, tudo foi a terra que nos deu
e à terra tudo se converte
amanhã, o dia será sempre ateu
no fuzilamento dos sonhos que se confessam
comungar-se a fome bestial
quando o sangue é tão fluído que escorre
desse céu sem ideal
o coração deixa de ser uma palavra
feito de pedra e espinhos de cristal
o interdito supremo ódio
donde não se quer ver pessoa, flores ou animal
durmamos por agora.
continuas mãe na tua infatigável obra
sou artefacto nas palavras que te deixo
continuas mãe como se nas tuas voltas
coubesse um deus inchado de vida e sacrifício
sou pura traição em tudo o que te confesso
mas a chuva lava. a chuva lava o que não se chora
no diálogo de um apego que não se sente
esses braços dormentes que me acolhem
pomba que existo dentro da pedra


terça-feira, 19 de abril de 2016

que linda falua


descalço os pés ao chão
a vibração de réplicas de uma realidade
perfilhada do sonho
sou mãe diga, de dizermos
tudo o que não tem valor sem sentirmos
o que tem a brisa morna do para sempre
como se empresta ao chão ao ventre
dos ritmos nascer-se de uma fornalha
sem gente
que nos alimentamos de uma ânsia que não tarda
a alimentar-se de nós
os meus pés caminham com a catarse dos salvados
as articulações das vértebras urbanas
apertando o espartilho desses prédios erguidos
as mãos que afagam o sofrimento
são as mesmas que o sufocam
o ruído afinado dos transeuntes
são deslumbres já finados
há um amanhã que é ainda ontem
as linhas progressivas da contracção
dos rostos que me cruzam
têm o traço final do acabado
desistes-me.
como essa dor inominada de imensurável rectidão
são as forças das raízes que nos investem o chão
que nos irrigam essas catacumbas submersas
de lágrimas caídas de olhos que não choram
vertem
há uma febre que antecede o momento coma
as imagens que caem amorfinadas
pelas pálpebras geladas
há uma cidade que já não te contém
porque ninguém sabe mais de onde vem
para onde vai

sexta-feira, 15 de abril de 2016

um homem ao rio



para lá do sol há um clarão que se agarra às lágrimas
e um homem que se mata na beira do cais

e uma noite enfim, quase à força
os leques íntimos da cidade escondem a vida de fora
o rio prostrado no leito toma o silencio onde cabem
todas as pancadas surdas do medo
a perpétua ressurreição
as voltas que a terra dá sem mansidão
nas profundidades da mente
um vaso de flores na varanda
vigiando o movimento do bairro
há um terrível sentimento de abandono
da irregularidade das coisas
como se os passos instintivos não fizessem
o caminho de regresso

eu queria pensar a que pertenço

como um duelo de ti contra o acaso
um aterro de memórias sem passado
as pedras atravessam-nos no sonambulismo da gente
abandonar-se na penumbra que respira
na absoluta contrição de vontade nenhuma
na acender das luzes
a cidade é encontro de sombras
a carícia insinuante das coisas solitárias
do encostar das tristezas ao muro
que separa o rio da terra firme
que testemunha o aparecimento de tudo
o que nasceu sem o choro baixinho da compaixão

sinto o arrepiar do corpo
a temperatura talvez desceu
ando matéria sem faísca viva
temo ser criatura amorfa
sem os méritos da culpa
a causa de todas as ruínas
que me assistem nascer sem história
temo a possibilidade de me perdoar
ou de me reverter nas janelas vazias onde aterro
em qualquer outro
sou pedaço vago de som surdo
o ar de abandono pede para ser esbofeteado
o rio das coisas inertes espelha
um busto de bronze de espírito aventado
levo a mão à água
nasce uma ordem na ondulação convulsa
friamente o corpo despe-se de luta
tirar-se à sorte
renegociar-se a fortuna

há toda uma terra estranha solitária
sempre só, despedindo-se

quando se sacrifica o sangue
que gosto teria
a desgraça de o beber
de um só trago

fico suspenso
toco na campainha
não há barqueiro algum
procuro vagamente por um assento
conservo o perfil do vento que me vai desaportando
a bordo dos menores gestos
eu já nem sei se quero navegar ou ser navegado
talvez queira tudo ao mesmo tempo
com a lentidão de um velho
a intenção eloquente de trocar o verbo
pelo deslizar do silêncio
do outro lado há uma outra cidade gémea
a ponta mastro desligando-me
acabar com a fúria de um animal encurralado
eu quero todo esse amor sujo
que se acumula na borda do cais


eu quero tudo tudo tudo
eu quero tudo quando se acaba



quinta-feira, 14 de abril de 2016

vejo para lá da dor


pelo despertador de cordas dormentes
um elmo sobre partículas rarefeitas
algo se dispersando de pensamento nutridos
do alojar oblíquo de vidas cumpridas
como se desfiasse momentos sílaba
como se desafiasse puro improviso
o espaço calamitoso toma um rumo soberbo
quando coroados os vales do nosso peito
e inclinados os ribeiros das nossas lágrimas
a energia laminosa mimética de tudo
um espectro temperando veios violentos
quando o desfiladeiro de uma mente imprópria
austeramente as pétalas regressam à flor
renovando de arte ígnea
o esplendor da liberdade de não se ser nada
a antiguidade de deus
vem na palavra do adeus
e há frases que terminam por si mesmas
com uma inspiração prolongada
ou um gesto de pausa satisfeita
é o espaço preenchido do lugar do silêncio
o negativo do que faria sentido
que descarrega a sombra do imaginário
no arame acrobático do real
no lugar de torres de pedra estão linhas de seda
e bastaria que alguém saísse de tom
para o castelo de alusões se edificar

a poesia é um labirinto sem saída
ao enclausuramento do comum mortal
que espera desta uma revelação total

que esperas tu do cimo das alturas?
que a terra seja leito macio para todas as torturas
que compõem o teu fastio

a beleza vivente tem um tom lúgubre
o desejo de nos revestirmos lentamente de quente
há um outono lá fora que tudo despe
numa desarmonia de despedida
parte aquilo que já nos serviu
talvez cíclica a primavera seja promessa
débil feminina a vida em flor
se revestindo de prosa e amor

tento colmatar a saudade com a paisagem

terça-feira, 5 de abril de 2016

chovem elefantes


fatigados da viagem

elefantes seduzidos caem sem aviso
a queda do improviso
em alucinação contínua
inclinando a cabeça para adormecer
enquanto
gigantes flocos de nuvem
parecendo a própria nuvem
pedaços de céu caindo das alturas
rochedos ao embate diluente de sonho

o mundo aconchegando-se aos pedaços de alma
labirinto aberto de cavidades desertas
o mundo virgem
da tristeza oculta nas folhagens
quando as ondas começaram a enrolar para o mar
pela indefinível causa de existir ao contrário
no abatimento da saudade

há lugares que nunca foram habitados
como o profundo mistério
dos rostos sagrados do tecto

há um certo fastio nas criaturas eternizadas
nas cinzas enraizadas de animais domados

que fizeram da terra, pensamento tortura

por isso há elefantes caindo ao acaso
de mal calculo aterragem
as nossas histórias são ancoragem
por isso há memórias
que não parecem nossas

porque o que nos fascina é a cadência
deste vai e vem de esquecimento
onde tudo é momento primeiro

o que nos fascina mesmo
é nos descobrirmos ninguém

e como elefantes caindo
as nossas penas parecem mais leves

agitar antes de partir


assim tudo se vai falindo
entre todos os fragmentos que vão partindo
aos poucos
o pouco de mim que foram deserdando
se desfaz na memória do tempo que ninguém
refaz

os refractários impulsos
que vão surgindo de uma dor aqui e ali
mentes acordes discordes
demasiado vibrar
momentos silêncio investindo exercício em si mesmo
elementos acumulados
algum exemplo
ampliando o futuro da nossa impossibilidade

aqueles que passam na penumbra
almas de olhar aflitivo
irromper o predomínio dos pensamentos
através das íntimas sensações

há um diálogo platónico
entre nós e a morte
inviolável estilo de invisibilidade
que quanto mais perto mais vago

talos vazios de espinha dorsal
muros de equilíbrio solitário
fendas de solo que nos delimitam

experimental o momento da hora mágica
em que nos desprendemos de tudo o que é terreno

o perímetro desconhecido da inquietação


o império do sentido



o faro das terras do inferno

quando as amarguras se desprendem da azáfama
e esperamos enfim pelo desejo ardente
de nos aprisionarmos numa casa
na semente de oiro das horas de sono

apalpo de vez em quando o conforto sólido
dos andarilhos que promovem o céu
para a cabeça se confundir de nuvem
a terra, ao longe, uma manta de ávidas criaturas
acresce gente barulhenta ao mundo a todo segundo
numa casa redoma clarabóia o sol é apenas uma estrela

há um suspiro vago de deus no olhar afogado da lua
parece que de noite os gritos soam mais alto
na concertina para gatos que dominam os telhados

no arrombo da sombra os sonhos são brancos (prantos)
a mim apetece-me chorar também

como um sopro de angústia que parece respirar outro corpo
são os passos lentos de uma estranheza
que toma o espaço vago da consciência
há uma necessidade imperativa do frio
uma alma que se encosta à parede
quando o corpo arde de sede

porque as ideias fixas se derretem em lágrimas
em carcaças de arrependimento
que tresandam a medo

& companhia


reconhecer-se
o vício descontrolado magistral
na mão dos contínuos vocábulos
as ferragens do silêncio
sobre o tic-tac do intenso calor do dia
das paredes abafadas
pela toca dos ratos
pelos buracos da meia
tudo tectos baixos
para casas caiadas da ignorância
porque a poesia se pisa de pavimentos
incoerentes

as delinquências
faíscam pelas pedras da calçada
os saltos de verniz pegando fogo
havia um ramos de flores
murchando na paragem do socorro
o tapete verde da entrada
candeeiros latejantes de bafio escriturário
um diploma ao pendurão
tomando o maior lugar do coração

há um ser inquieto no sósia que encontro no espelho
no ar contrafeito que enxuga o peito
porque os poros já não transpiram vida
há uma alma de reserva que parece estar esquecida
entre os detalhes do compromisso
do ser-se isto ou aquilo, das nove às cinco

sexta-feira, 1 de abril de 2016

o lugar da poesia


os grandes olhos mortais
duas almas sem par
dos mistérios arredados de um lugar habitado
a palidez das imagens reflectidas
convertidas do tempo em pó
do lugar dos dias vulgares
pousando na perplexidade de um tecido brando
fragmento de vida tangível
retida em todas as tardes inesgotáveis
que as mãos suando de coisas inefáveis
apalpavam o mistério receptáculo do sonho
a hora insólita da poesia
aproxima o exercício do encontro interior
há um mundo obscuro no coração de cada segredo
na infinita longivez de cada luta
sempre virgem inquieta
o ritmo interior das coisas antiquíssimas
deve permanecer inacessível
qual o sustentáculo de toda esta ruína
meu coração é uma criatura extenuada
ávida de esgotar a sua própria sede
o que se acredita é pedra bruta
e em todo o acto de continuar a lapidação
a presença constante de um amor-deus
porque te persegue a mutilação de ser livre
o magnetismo do sangue percorrendo o corpo
contornando as chagas do sofrimento
para embalar um momento de cristal
frágil é a felicidade
quando ao vento atiramos cada chance
e nós sepultos em todos os cantos do mundo
em todos os atalhos nos cruzamos
como reflexos espantalhos espelhos
o mistério da morte revelado na carne mortal
contemplamos estátuas em cidades de pedra
donde desaparece uma memória
dissolver-me-ei nas noites húmidas sem luar
a alma cinética não querendo levitar
corre o tempo na monotonia das estrelas
a hora irremediável dos dons da terra


no lugar do silêncio


a evocação de repente de um gesto

           
               a forma como tocas o queixo
               ou afagas o cabelo
               ou caminhas pelo passeio
               ou esse jeito do canto do lábio

a distância são vozes que apregoam a morte

uma pessoa vai-se embora sumindo-se
esse paralelo horizonte de águas fluídas
móvel dançarina ou árvores turbinas
tudo revirando-se de fatalismo finito

               a presença fraca da vida
               linha ociosa de metáfora
               tudo é sempre outra coisa


a névoa é um olhar fantástico nosso fado
então o chão é mais intenso por dentro
aplainar esse caminho espinhoso
porque somos de carne e osso e horizonte

a evocação de todas as palavras é em vão
porque nos respiramos de distância
serão longe os sonhos que deus enviou
por empréstimo
                                 
                         nesse gesto

a esperança vem de um lugar



nado nas palavras brotando das alturas
um parto sensível de afecto
de retrospectivas de voos de gaivotas furtivas
um coração que sente e não aprende
com o que fica, inebria, um amor de cais
donde nunca partem águas mortais
o que se condensa na curva pacífica
de uma nuvem que fica
não tem tempo nem ogiva
ou epiderme arquitectura de repulso
o clamor é uma alma com paixão-dor
esses laços de desejo bisontes
que encerram eras de ontem
e há tantos demais ontens
terra-mãe, haverá limites de ninguém?
tudo eu sou vasos para sementes de oráculos
o dia tem o dom imbecil de nos viver
sem leis, rompem-se alguns sem o saber
há um poder fecundo nas águas da poesia
após a morte do dia-a-dia
há uma saudade frustrada do ventre
a lágrima da saudade correndo pelo cordão umbilical
oh mãe, ensina-me como chegar
a essa casa deserta que deixaste
ainda a luz acolhe as janelas sem portadas
e os telhados rendilhados sem telhas
como a memória me deixou lá presa
quando ao espelho não vejo senão uma criança

há presenças infinitas que não partem nunca
há poentes que na penumbra são rubras primaveras
longas caminhadas incompletas
o meu tronco arde lentamente
quando chega à cabeça o poema é dor mente
regaço, onde todo o estalido é pânico
de um gigante fogo de pé avançando
terno, o tempo que nos fica de resto
que pede tristemente para revivê-lo
às vezes julgo que os vestígios nos invejam
o fulgor das rugas
que amarás infinitamente como tuas
...porque nunca chegaste a tê-las

tenho a impetuosidade de um chão cão
esse chão que se rasga de frestas
o sétimo céu convidando
abram mãos dadas
a melancolia trespassa-me
unem-se as linhas de terra abatida
porque todas as manhãs são singelas profecias
num tornar de estrela gentil
habita na lembrança um verso versátil
porque tudo podia ter sido tudo
o vínculo que nos une do passado ao futuro
somos ponte levadiça
asa acolhida no labor de uma campa rasa
onde o trigo se atrasa porque toda a ceifa é ingrata
porque se debruça a minha noite
e a vontade imensa não tarda
a ser, uma ribeira seca de cartão postal
que ficou guardado na gaveta
trepa por mim uma escada de verdes cordas
naquele quintal de macieiras e amores
a idade a suplicar
que não se colham as memórias
que o fruto há-de cair na palma
de uma poesia qualquer
esse fruto coração que nos consome a alma

tenho saudades
da voz materna e única
vagueando no ventre
das sombras que estão por nascer
corpos que o tempo dá força
nos lentos passos insanos
a vida suspirante de veios felizes
tudo promessas de dias
que nunca se hão-de viver