sexta-feira, 15 de abril de 2016
um homem ao rio
para lá do sol há um clarão que se agarra às lágrimas
e um homem que se mata na beira do cais
e uma noite enfim, quase à força
os leques íntimos da cidade escondem a vida de fora
o rio prostrado no leito toma o silencio onde cabem
todas as pancadas surdas do medo
a perpétua ressurreição
as voltas que a terra dá sem mansidão
nas profundidades da mente
um vaso de flores na varanda
vigiando o movimento do bairro
há um terrível sentimento de abandono
da irregularidade das coisas
como se os passos instintivos não fizessem
o caminho de regresso
eu queria pensar a que pertenço
como um duelo de ti contra o acaso
um aterro de memórias sem passado
as pedras atravessam-nos no sonambulismo da gente
abandonar-se na penumbra que respira
na absoluta contrição de vontade nenhuma
na acender das luzes
a cidade é encontro de sombras
a carícia insinuante das coisas solitárias
do encostar das tristezas ao muro
que separa o rio da terra firme
que testemunha o aparecimento de tudo
o que nasceu sem o choro baixinho da compaixão
sinto o arrepiar do corpo
a temperatura talvez desceu
ando matéria sem faísca viva
temo ser criatura amorfa
sem os méritos da culpa
a causa de todas as ruínas
que me assistem nascer sem história
temo a possibilidade de me perdoar
ou de me reverter nas janelas vazias onde aterro
em qualquer outro
sou pedaço vago de som surdo
o ar de abandono pede para ser esbofeteado
o rio das coisas inertes espelha
um busto de bronze de espírito aventado
levo a mão à água
nasce uma ordem na ondulação convulsa
friamente o corpo despe-se de luta
tirar-se à sorte
renegociar-se a fortuna
há toda uma terra estranha solitária
sempre só, despedindo-se
quando se sacrifica o sangue
que gosto teria
a desgraça de o beber
de um só trago
fico suspenso
toco na campainha
não há barqueiro algum
procuro vagamente por um assento
conservo o perfil do vento que me vai desaportando
a bordo dos menores gestos
eu já nem sei se quero navegar ou ser navegado
talvez queira tudo ao mesmo tempo
com a lentidão de um velho
a intenção eloquente de trocar o verbo
pelo deslizar do silêncio
do outro lado há uma outra cidade gémea
a ponta mastro desligando-me
acabar com a fúria de um animal encurralado
eu quero todo esse amor sujo
que se acumula na borda do cais
eu quero tudo tudo tudo
eu quero tudo quando se acaba
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