terça-feira, 31 de março de 2020

O óbito



O lenço negro na cabeça e os olhos postos na lenha que lentamente ardia na solidão da casa de pedra.
Havia um silêncio de fundo de terra desabitada, nem bichos, nem passos, nem respiração. Apenas o crepitar do tronco e as labaredas do fogo. O seu nariz promontório apontava os olhos focados no além ardido. Cinzas aos ossos, velai os mortos...De vez em quando o pensamento retornava do além para divagar num arrasto de pequenas memórias ou vocábulos desconexos. Do lenço espreitavam desalinhadas algumas madeixas brancas. Não havia também odores. As cebolas penduradas há muito que haviam apodrecido e lá fora na terra dura já nenhuma semente chegava. Passava assim dias inteiros sentada no banquito de madeira junto ao lume. Pendurado um pequeno caldeirão fervia a água do poço e ervas que cresciam na rebeldia do orvalho. Qualquer coisa para entreter um estômago pronto para estar quieto. Todos os outros haviam partido para se juntarem aos mortos da frente. Na vida, sabia desde muito cedo, que havia um combate desigual corpo a corpo e que alma era coisa de tormentos para quem tinha ido às lições do mestre. Também esta casa já tivera ideias próprias de movimento, quatro partos, uma duas três gerações de esperanças. Mas todos eles escolheram ir para a frente, excepto ela. Como uma grande árvore robusta plantada no centro da casa, assistiu ao crescimento de todos estes ramos e à queda dos seus frutos. Agora as suas mãos cascas duras, os dedos prolongados e finos abriam frestas de um chão infernal. Ocasionalmente era visitada por rostos que escavavam e rompiam as raizes para se plantarem ao seu lado, também eles no silêncio doentio do prolongamento das coisas mortas. 
Era assim um retrato de natureza pausada. Pequena e curvada, à pele endurecida já não chegava o calor do dia a nascer ou da lenha a arder. Há qualquer coisa para acontecer...há qualquer coisa para acontecer. Saiu-lhe esse murmúrio da boca sem dentes. A língua para a frente e para trás enrolando as palavras. Sentiu o pé, ou o dedo grande do pé esquerdo a levantar e a baixar. Um tique taque de batimento para cima e para baixo. O sangue a começar a circular nas veias frágeis, esse formigueiro de minúsculas entidades rítmicas ainda que sem melodia. Como se marca o ritmo no silêncio. Levou a mão ao peito, muito devagar batia ainda vivo. De vez em quando auscultava-se para saber se ainda lá estava. Hábitos. E o pé continuava como um ponteiro dando a volta ao mostrador. Tinha visto apenas uma vez um aparelho desses que media o tal do tempo. Um viajante que ficara por um noite. Falara de terras estranhas, comera, bebera, dormira e por fim havia dito adeus. Trazia atado ao bolso um desse aparelhos. Recorda-se de nessa madrugada ter-se levantado para estar a olhar para essa coisa. Enquanto todos dormiam observava uma coisa que se movia a ela própria sem o amanho das mãos, sem a corda dos animais, sem a força do sol e das luas. Uma seta muito fina ia saltitando ritmicamente numa volta repetindo-se e repetindo-se, sempre igual a si mesma. O viajante explicara que media horas, minutos e segundos. Ela perguntara para quê e ele não lhe soubera responder, qualquer coisa como lá os homens inventaram isto porque acharam que era preciso. E era preciso para quê? Para medir o tempo...Também não sabia muito bem o que era o tempo mas eles que certamente tinham estado com os mestres, lá saberiam. Essa palavra ela não a conhecia, aqui falava-se de ciclos, de sol e de luas, de novo e velho, de barriga e de sementes. As coisas da terra não precisavam de palavras estranhas para se sucederem. E o pé continuava autónomo a marcar o ritmo. Tentou para-lo, não foi capaz. Essa impotência deixou-a inquieta. Talvez fosse o fim a chegar próximo. Talvez fosse essa tal da alma a despegar-se do seu corpo. Procurou levantar-se e a perna estendida continuava a bater com o pé no chão. Arrastou-se com a ajuda da bengala até à porta. Entreaberta a noite começava a cair e logo a escuridão dos montes traria o sono. E se não conseguisse dormir? E se o pé continuasse a bater por mais dias e noites? Suspirou. Recolheu a perna para debaixo do banco e voltou ao lume a comungar o mistério. Pela primeira vez desde há muitas estações sentiu a falta de outro alguém. Um filho, um neto ou o próprio marido haviam de ter uma explicação, talvez mais os netos que sabiam mais coisas novas. Apertou o xaile e baixou o olhar, estava cansada desta agitação. O pé agora escostado ao pé do banco começava a emitir um toque diferente da madeira a estalar, toc toc toc...em breve esse som seria uma tortura perpétua. Seria isso o tal do tempo? A seta que circulava o mostrador fazia um toc parecido. Parecido com o gotejar no canto da casa de pedra num dia interminável de chuva, parecido com a ideia do poço revirado do avesso batendo no tampo metálico, a massa da água repartida em gotas de pedra. Parecido ainda com a ideia de uma estrela a batucar no tampo do céu, ou alguém batendo sem parar na sua porta. As ideias começaram a disparar na sua cabeça de forma atabalhoada e confusa, muitas ideias, demasiadas ideias para uma cabeça agora habituada ao sossego. Talvez os outros tenham inventado o tal do tempo para se entreterem de ideias parvas...talvez o tal do tempo precise de ideias que o entretenham. Essa coisa era para si agora uma entidade exterior e autónoma. Possivelmente mais forte que o sol ou a corrente do rio ou as fases da lua. E a sua ideia ia crescendo tomando formas bizarras de coisa real. O maldito pé não parava quieto. Seria quieto o oposto do tempo? E quando muitas outras ideias continuavam a juntar-se às anteriores eis que a sua pálpebra começa a tremelicar, uma pulsação rítmica começa a bater-lhe no olho, desconexada do batimento do pé. Pendular de vai e vem, repetindo-se assustadoramente fora do seu controlo. Levantou-se arrastando-se ao espelho. Há muito que não se olhava. O olho não tinha nada de errado tirando a pálpebra que continuava a palpitar. Sentiu desespero, vontade de começar a chorar, não compreendia o que estava a acontecer e o olho era ainda mais incomodativo que o pé. Saiu pela porta em direcção ao riacho. Levou as mãos à água e lavou a cara. Tinha esperança de que a água limpasse a palpitação do olho. Mergulhou também o pé, estava fria, demasiado fria para o seu corpo frágil e velho, muito velho. Quando retirou o pé quase congelado da água começou a escutar um novo toc, uma espécie de toc mais ondulado mas também ele rítmico. Era agora a água a escorrer um terceiro som infernal de batimento. Dentro da sua cabeça os três sons badalavam pendulares perpétuos, a pálpebra batia no olho, o pé batia na água a água batia na própria água. Enterrou as mãos na terra húmida da margem e sentiu enervamento, seria um castigo? Alguma coisa lhe tinha escapado das suas obrigações de antes? Faltara alguma coisa aos seus filhos, aos seus netos, ao seu marido, á sua terra? Tudo o que pedia era para partir para se poder juntar aos da frente e nada, durante todas essas estações do depois, nada disso acontecera, nada de nada acontecera. E um último pensamento toma-lhe a cabeça...O tempo, eu não conhecia o tempo...agora o tempo castiga-me de tempo..Embora antes esse tal tempo já existisse sem que o soubesse, agora conhecia-o porque o sentia, era como se lhe espetassem agulhas na cabeça e uma dor muito profunda e insuportável de impotência tomava-lhe todos os sentidos. As pulsações, os ritmos todos batiam mais alto que o pensamento, batiam tão alto que a ideia proibida tomou-lhe a cabeça. Era a única proibição que conhecia: o fim. Atendendo a que estaria já no maior castigo que podia conhecer, esse estado de insuportável ruído dentro da cabeça, pensou que nada haveria de temer  atirando-se por isso ao rio sem qualquer intenção de nadar. 




segunda-feira, 30 de março de 2020

caleidoscópio viral / caleidoscopio viral




aos novos habitantes da casa
são servidas asas e túnicas de branco
um apartamento húmido enjoado de amor
e lá fora as ruas sempre invernosas
na cabeça flores de cerejeira secas
há um prolongamento das coisas mortas
silhuetas que chamam dos bosques
e poentes cambiados por curvas de telhado
a cidade na sua concha adormecida
quartos de luz e espectros lânguidos
o sol furtivo traz a dor da clausura
os novos habitantes da casa saíram com pressa
e a saque só a chuva escorrega e baloiça
quando as paredes apertam e a vida amanhece
produto de um ciclo fechado
ciclos de tempos prolongados de si mesmos
concebida a natureza mais trágica
sentados nas nuvens um par de velhos joga xadrez
vigiados por dois cães gigantes devoradores
morrendo de amor perfeito o pesadelo surrealista
para o encanto exótico que toca o sobrenatural
almofadas de alfazema e lenços bordados
lâminas de paisagem que vista ao microscópio
tem a forma das cavernas do coração
ou de um opúsculo de poemas sôfregos
é também com a tristeza de passaporte sem carimbo
que vem cair nas redes uma noite de automatismo
fuzilada pelo lado de dentro
os espelhos que forram as paredes tomam essas paredes
a cama reveste-se de penas de ave exausta
e os olhos das crianças de larvas e moscas
a rua essa velha passadeira em decomposição
para o homem que se estripa vivo
a rua essa velha passadeira vermelha
para os pântanos da miséria humana
quente como o próprio estio o inferno
vestido do seu próprio corpo com porções de vida e obra
denso de orvalhos que nascem sem expiação
é com o cotovelo apoiado na varanda
e o desejo de comunicar o pensamento
na madrugada desse começo
antes do despertar das aves
que se glorifica a perfeição do deus que está por nascer
e tudo o resto são horas por entreter

nesses espelhos de quartos de pessoa
a cidade parte de nós
o homem regressa a um ventre adulto e bafiento
numa espécie de visão prismática
imagens diferentes para o mesmo rosto mortal
acende um cigarro e senta-se na beira da cama
já não sabe se há-de cumprir as rotinas ou queimá-las
com a fúria de versos recitados em dias de loucura
mas o poeta fala de um amor tão antigo
estranho e ambíguo esse livre em clausura
esse perpétuo esgotamento e complexo
- entro tristemente no terraço da mente
para contemplar infinitos outros terraços pela frente
e nem o voo das aves agora livres dos homens
me pode distrair o pensamento
por isso escrevo cartas de amor ao tempo
abro as persianas arejo os quartos inspiro almas
e procuro levantar-me para assumir a estratégia
do próximo movimento do tabuleiro


e vem como carícias do vento agora mais fresco
o grande respeito pelo tempo vivido
essa espécie de agonia pelo agora
tem o itinerário das nuvens que carregam o par de velhos
e débitos mundanos
porque a loucura tem sempre alimento
e o gosto da especulação metafísica
as pessoas sentam-se inclinadas nas varandas
baloiçam as pernas como faziam as crianças
que muito dormiam e tão mais sonhavam
agora há muito tempo para depois
nesse sarcófago de móveis tubulares e vitrais
agora todas as palavras são virais





caleidoscopio viral

a los nuevos habitantes de la casa
les son servidas alas y túnicas de blanco
un apartamiento húmedo, mareado de amor
y, allá fuera, las calles siempre invernizas
en la cabeza flores de cerezo secas
hay un prolongamiento de las cosas muertas
bultos, quienes llaman des los bosques
y ponientes cambiados por curvas de tejados
la ciudad en su concha dormida
cuartos de luz, y espectros lánguidos
el sol furtivo aporta el dolor de la reclusión
los nuevos moradores han dejado la casa aprisa
y, a saco, solo la lluvia desliza y balancea
cuando las paredes constriñen y la vida amanece
producto de un ciclo cerrado
ciclos de tiempo prolongados de sí mismos
concebida la natura más trágica
sentados en las nubes un par de ancianos juega al ajedrez
vigilados por dos canes gigantes devoradores
muriendo de amor perfecto la pesadilla surrealista
para el encanto exótico que toca el sobrenatural
almohadas de alhucema y pañuelos bordados
láminas de un paisaje que, visto con microscopio
tiene la forma de las cavernas del corazón
o de un opúsculo de poemas ávidos
es también con la tristeza de un pasaporte sin sello
que viene a caer en las redes una noche de automatismo
fusilada por el lado de dentro
los espejos que recubren las paredes toman esas paredes
el lecho se reviste con plumas de aves exhaustas
y los ojos de los críos con gusanos y moscas
la calle, ese viejo paso en descomposición
para el hombre, quien se destripa vivo
la calle, ese viejo paso rojo
para los pantanos de la miseria humana
caliente como el mismo estío, el infierno
vestido con su propior cuerpo, con porciones de vida y obra
denso de rocíos que nacen sin expiación
es con el codo apoyado en la barandilla
y con el deseo de comunicar el pensamiento
en la madrugada de ese inicio
antes del despertar de las aves
que se glorifica la perfección del dios, quien está por nacer
y el sobrante son horas por entretener

en esos espejos de cuartos de gente
la ciudad parte de nosotros
el hombre regresa a un vientre adulto y mohoso
en una especie de visión prismática
imágenes distintas para el mismo rostro mortal
enciende un cigarrillo y se sienta en el borde de la cama
ya no sabe si ha de cumplir las rutinas, si quemarlas
con la furia de versos recitados en días de locura
empero el poeta habla de un amor tan antiguo
raro y ambiguo, ello, libre en reclusión
ese perpetuo agotamiento y complejo
— entro tristemente en la azotea de la mente
para contemplar infinitas otras azoteas enfrente
y ni el vuelo de las aves ahora libres de los hombres
puede distraerme el pensamiento
por ello escribo cartas de amor al tiempo
abro las persianas, aireo las habitaciones, inspiro almas
y busco levantarme para asumir la estrategia
del próximo movimiento en el tablero

y viene, como caricias del viento, ahora más fresco
el gran respeto por el tiempo vivido
esa especie de agonía por el ahora
sigue el itinerario de las nubes que cargan el par de ancianos
y débitos mundanos
porque la locura encuentra siempre pábulo
y posee el gusto de la especulación metafísica
la gente se sienta inclinada sobre las barandas
balanceando las piernas como hacían los críos
quienes mucho dormían y aun más soñaban
y se hallan hoy, y de largo
en ese sarcófago de enseres tubulares y vitrales
ahora todas las palabras son virales


Tradução Duarte Fusco

quinta-feira, 19 de março de 2020

Para Eva: Arcturo


estas são as suas memórias da cidade natal
um processo de devaneio diluído
num espírito agitado em pleno Inverno
há uma brancura de pérola encantada
o vento despoja e fustiga a alma
e os grandes plátanos convalescentes
aguardam nessa ilha retiro dos topos
o homem procura a cura na recordação
dorme sossegado na senda do passado
como a sua flora o imaginário é paranóia
vive-se no promontório escavado pelas trevas
longe da calmaria calcária da infância
os insectos cruzam o abandono das medinas
amantes simbólicos do voo da solidão
e o relento do asfalto das grandes vias
agora fracturado por nuvens ácidas
pinceladas de caos aqui e ali
uma capa feita de sombras que revestem a ausência
as imagens revestem-se de electricidade estática
a carne inflamada pede a nudez áspera do sol
esse melancólico astro de distância
nos lábios uma sede de gozo e desejo
segredos entreabertos de aromas de cânfora
esta é a noite que recordamos com mais dor
o primeiro rasgo o primeiro sopro
cadências de fluídas garatujas para um fundo cinza
os primeiros rasgos de um sorriso para logo se desvanecer
na perturbada agitação de um fundo doentio
para cair como sombra sob a terra
recorda-se que os homens não caminhavam
antes rastejavam levados por trelas com picos
esganados perfurados para sem vontade
cumprir um destino
recorda-se que foi capaz de subir ao extremo
das suas próprias feridas
o mar um enorme cronógrafo de espelhos
ao longe nesse horizonte linha fervente
um frontão de ilhas também elas desabitadas por dentro
a vida uma flor mutante de transplante
e um olhar metálico corroído
não sabe se feliz se infeliz, nebulosa perda
persianas cerradas para uma paisagem estival
e tão rico esse consolo de estar à deriva
e mesmo o alívio de não haver plano algum
recorda-se, o silêncio activo da mão de deus
a essência sem forma, de um homem vulgar
porque haveríamos de ferir o seu lugar
aponta o extremo norte essa estrela
qualquer coisa que se vai desfazendo dos seus modelos vivos
reconhece o compromisso de girar com esse corpo
no seu hálito, nos seus ossos, nos seus músculos
ressuscitar-se para se transmutar em arte
que se virá a mesclar tranquilamente no restante, nada


tranquilamente em nada




quarta-feira, 18 de março de 2020

o clarão que traz à memória


a caixa negra pregada na parede
ecos de sirenes sentinelas de muros
segundos de metamorfoses horas

cavam-se as trincheiras da solidão
com as mãos atómicas, tudo passado relâmpago
deixou-se cair o céu no regaço
covas, fortalezas do espírito
um camião carrossel de projécteis de sonho
atirado à beira da estrada
para agora seguir à boleia do acaso
há um enorme mapa pendente
traçado a espesso círculo um lugar dúbio
que os óculos embaciados não assumem
dinamitar os extractos da montanha
e assumir o deserto de areias dunas de pó
a bússola uma rampa de levantamento
que posição bestial para alcançar o centro da terra
ou o limiar dos tectos atmosféricos
sair do espírito como o suor que rompe os poros
em pequenas gotas salgadas
num só gesto de implosão engolir a força gravitacional
ser um continuum multiverso para correr para nada
quando um tanque de homens esgotados sujos de terra
começar a cair da chuva miúda
um general de carne e osso aplainando rasando o horizonte
e um enjoo de tontura dentro da lona epidérmica
os homens que antes envergaram a luz
agora relógios antiquados de tampas com mola
repetem o mantra combalido do desespero
pousam as armas junto ao muro e ao lugar vazio das reservas
são soldados andróides sem retorno
frios capacetes de aço que não escondem rostos
sabem apenas correr aos ziguezagues
obedecendo aos silêncios das alturas
ao volante de uma consola plantada
na estufa apática da nave que carregam ao pescoço
só o roncar ao longe do avanço de um globo enferrujado
pincelado de ocre calejado atirado involuntário ao abismo

nesse lugar dúbio de existência
um livro aberto folheado pelo vento
as páginas desertos pontos de reticências
os homens mecânicos
e qualquer coisa ardente palpitante fraturante
uma semente rompendo a vingar a morte
que sem vida deambula pelo desfoque do sonho
comiserada pela estagnação do sangue

a caixa negra pregada na parede
para lembrar a quem puder um dia encontrar
 - escuto o murmúrio dentro do búzio
   ecos de canções que embalavam o tempo e o espaço
   para equilibrar dentro da alma um Homem










terça-feira, 17 de março de 2020

uma carta mais ou menos fatalista


como se fosse um castigo uma peste uma longa paragem
como se a arma do soldado enferrujasse e as balas fossem ar
só o globo não parou ainda de girar
lentamente todas as portas se fecham como um fade out
e o desespero do isolamento ou pior de futuro incerto
de repente, tudo muda para todos, quando sem licença a noite
penetra nas casas de janelas fechadas e portas trancadas
o ritmo fica mais lento e mais doloroso
o homem sem trabalho perde o seu propósito
a sua hora mais feliz foi sempre ontem
e a sua liberdade cai lhe então ao colo para ser embalada pelo choro
com aquela réstia de esperança de ser já amanhã
amanhã ou próximo do depois, que tudo voltará a ser como dantes
mas dantes, não se dava pela liberdade
era assumida como um bem adquirido à nascença
pelo menos para alguns habitantes deste habitáculo desgovernado
- vês aquela ravina no chão? é uma cova que deixei para o amanhã
- e aquela garrafa vazia? é o esquecimento que não deixei para depois
- e aquele canto do quarto? é o berço que não cheguei a comprar
Vamos passar muitas horas juntos...e entre nós e as palavras haverá silêncios
e horas de choro marcadas para chorarmos à vez, ora no quarto ora na sala
e abraços de esperança, ainda que de mentira ou apenas de consolo
vamos aproveitar todas as horas como se estivéssemos numa espécie de pausa estranha
horas que podemos aproveitar mas dentro de um relógio maquiavélico de clausura
imagino agora de uma forma mais concreta como será estar preso
ou como seria ser controlado por um exército, ou como seria observar o céu
aguardando e rezando para que a próxima bomba não nos caia em cima
imagino de uma forma mais concreta o que sentem aqueles que nunca puderam
conhecer o mar ou a terra vizinha ou outra vida
imagino porque calculo que a natureza seja rebelde e que o Homem seja perfeito
a criar as suas próprias ratoeiras, os seus próprios enterros
quando o estuque do tecto tremer porque lá em cima já não se podem conter
quando todos saltarem à rua porque têm fome ou dor enferma de espírito
imagino então que o precipício será o chão
imagino que nalguns corações estejam a agonia de fugir e correr para os braços do outro
imagina que nalgumas cabeças de criança o mundo tenha de repente deixado de ser, cor de rosa
imagino que de dia para dia muitos pensares farão de nós um ser confuso e mais perdido
como um soluço que atravessa o discurso ou uma gaguez inesperada de fluidez
e que no meio desta caótica barca, alguns caiam ao mar
mas imagino sobretudo que sairemos melhores seres desta batalha
que amanhã nesse tal amanhã do depois
mais se valorize o sol, a família, o amor e sobretudo, a liberdade
- metidos dentro de um uniforme com as mangas demasiado compridas, esta guerra servirá aos vivos
para se alongarem como para além de vivos, seres.


E porque nós temos muito mais força do que aquela que imaginamos
imagino que deste suspenso estar, vamos aprender a dançar







pontes de singularidade


Tinha os pés cozidos da terra, do sol, do caminho sem pontes, casas ou destino
a centelha da vida soprava ao nível das searas laranja que já iam alto bem alto
o filho do ladrão podia apenas correr sem meta, uma barca sem lemes
para chorar por uma terra bem amada, que só podia agora ver desaparecer
o filho do ladrão roubou a vida, no íntimo furor sem náusea
procura encontrar a pousada da eterna felicidade de víbora na mão
o garoto, filho, uma vez mais, de um assassino
e os bichos de sentinela inútil espreitam para que comece uma nova vida
caleidoscopiana rodopiada agitada para o ácido esquecimento de um novo nada

o acaso trouxe-o aos olhos de um poeta encerrado na sua pequena cidade de cal
foi no cair de uma tarde de verão quente, passou acossado como se não fosse gente
seguiu com os seus olhos de poeta amortizados por uma dor incerta
pegou no lápis e no caderno, assomou-lhe rimas ao coto das calças, às pontas esgrenhadas
de um cabelo piolhoso e aventado ao pescoço
olhou o garoto, olhou o horizonte, olhou as pontes invisíveis que agora os uniam
como um mistério absoluto de notas que ainda não adivinhavam uma melodia coerente
os passos eram lentos e doridos e mais ainda perdidos
o poeta levantou-se para contornar a esquina com ele
salpicando de contrafortes a sua sombra
via-se o fundo, que podia levar muita lágrima, um fundo vago de extenso
o garoto era uma paisagem vista por dentro
de embate e resistência o corpo bronzeado tal um barco ao sol estalando
parou, sentou-se numa pedra, buscou no bolso uma fisga, procurou um alvo
quando contornou as suas costas, o poeta a poucos metros sentiu-se transparente
como se o garoto não apontasse a si gente
o elástico esticou e a pedra atravessou o peito para bater no tronco de um eucalipto
lá do alto nem um arrastar de ramo nem uma folha caída
o garoto suspirou de fastio e o poeta chorou de vazio

virou a página, havia um sitio no leito do rio que lhe queria mostrar
que em muitos anos pouco mudara
era um lugar de restauro ou resguardo para o assalto das manhãs
que baloiçavam como uma arma sem depois
um baloiço de movimento perpétuo sem corpo
os lábios moveram-se mas foi o dedo que apontou no extremo da vista
-quem me dera ser aqui sepultado - disse de pulmão dilatado
num fundo sem alento os ombros magros com as orelhas desapegadas
e uma sujidade mundana de fartura
- não molhes a barriga porque enferruja
O garoto levou os pés ao rio para aliviar o ardor e o poeta levou a negritude à água

Numa atmosfera singular, o poema nasceu



segunda-feira, 16 de março de 2020

os nenúfares da morte



violinos de menores para a morte
que nasceu vazia de pessoa
a cidade enviou o homem ao ventre
saíra pelas madrugadas da caligrafia
um baile de pastagens infernais
para se entreterem os bichos entre elas
longe de um mundo hostil os centauros
sentados de frente num biombo chinês
a cidade comprimida numa única válvula
são as copas das árvores e o vento
quando um homem for a sua própria casa
e dos seus braços paredes e tecto
e janelas olhos com a candura perdida
de um sapato sem mais préstimo
eram traços de um dia valiosas armas
as palavras prostituidas pelo tempo
a grande lareira de pedra no meio da sala
para o arder de uma clausura corporizada
a vida a lacre branco não guilhotinada
estás a dormir? um sonho lúcido no vácuo
finge que dorme, finge que bate sem asas
um palco de anfiteatro sem palmas
à cabeceira do leito as sombras das pestanas
roucas atravessam o deserto glacial da varanda
sentem-se fechar as últimas portas ao longe
projecta-se nas paredes a lamparina só
que uma locomotiva de choro apagaria
quando todos os ruídos cessarem
e a primavera da noite trepidar na velha casa
o chão tremendo e todos os telhados desses sótãos
hão de destapar quartos vazios

os bichos dormem vergados na espera
nenhum comboio atravessa as linhas
os dentes batem contra a língua
um fogo interior deposita no quarto cinzas
a luz penetra pelas mãos da parteira invisível
quiseram deixar alguém por velar
batendo raivosamente contra o ventre
é tudo tão triste quando arrefece um coração
que não chegou a erguer-se em ramos e frutos
como rugas de gente que não chegou a ter filhos

sentiu novamente frio
os membros cansados sobre a areia
reza frente ao mar na escuta da pulsação da maré
um dialecto de tranquilo sem ruído de passos
a carne por atormentar como o casco por naufragar
um infinito de cansaço que de desfaz em paz
no patamar das escadas rochedos redomas
tricotando com a agulha os nós das cabeça
as perguntas mosquiteiras aves de rapina e fome
as gaivotas atordoadas batendo umas contras as outras
e os peixes atirando-se à areia sem fôlego
para lá de um qualquer mês de Junho

um microglobo
essa casa de bonecas ou caixa de música aberta
por trás do pano, tesouras maternas ensaiando
marionetas origamis de pantufas e rolos do cabelo
imaginar coisas por acidente porque se escutam
os estalidos das estações numa casa de cartão
o vento é o sopro de alguém que espreita
com o seu bafo quente de jovem curioso
lugar onde não crescem as figuras espalmadas
onde se medita a vida sem o peso da morte
a sala forrada de veludo azul,
como um mapa em relevo do céu
um canapé uma poltrona de cola e cosedura
e do candeeiro uma pequeníssima vela de aniversário

rema lentamente margem acima
margens que ardem em ruína
o cais de brumas num seixo solitário
o avesso e as direitas de uma paisagem
a última aldeia que fica para trás
e um enterro singular ao longo do rio
e cantam, cantam tão alto pequenos socos no peito
as palavras apenas começadas e tomadas pelo balanço
um véu de sombra entendido sobre o mundo
agora dilatado pelas chamas
era preciso descoser o forro e arrancar a pele
deixa lo em carne viva ardente
para que viesse depois uma seda macia e espessa
cristalina de seivas limpas
e a lua uma viuva corpo lenta de olhos secos


os violinos dão lugar aos pianos
e uma nova terra habitáculo neocaótica
dá lugar a berços