O lenço negro na cabeça e os olhos postos na lenha que lentamente ardia na solidão da casa de pedra.
Havia um silêncio de fundo de terra desabitada, nem bichos, nem passos, nem respiração. Apenas o crepitar do tronco e as labaredas do fogo. O seu nariz promontório apontava os olhos focados no além ardido. Cinzas aos ossos, velai os mortos...De vez em quando o pensamento retornava do além para divagar num arrasto de pequenas memórias ou vocábulos desconexos. Do lenço espreitavam desalinhadas algumas madeixas brancas. Não havia também odores. As cebolas penduradas há muito que haviam apodrecido e lá fora na terra dura já nenhuma semente chegava. Passava assim dias inteiros sentada no banquito de madeira junto ao lume. Pendurado um pequeno caldeirão fervia a água do poço e ervas que cresciam na rebeldia do orvalho. Qualquer coisa para entreter um estômago pronto para estar quieto. Todos os outros haviam partido para se juntarem aos mortos da frente. Na vida, sabia desde muito cedo, que havia um combate desigual corpo a corpo e que alma era coisa de tormentos para quem tinha ido às lições do mestre. Também esta casa já tivera ideias próprias de movimento, quatro partos, uma duas três gerações de esperanças. Mas todos eles escolheram ir para a frente, excepto ela. Como uma grande árvore robusta plantada no centro da casa, assistiu ao crescimento de todos estes ramos e à queda dos seus frutos. Agora as suas mãos cascas duras, os dedos prolongados e finos abriam frestas de um chão infernal. Ocasionalmente era visitada por rostos que escavavam e rompiam as raizes para se plantarem ao seu lado, também eles no silêncio doentio do prolongamento das coisas mortas.
Era assim um retrato de natureza pausada. Pequena e curvada, à pele endurecida já não chegava o calor do dia a nascer ou da lenha a arder. Há qualquer coisa para acontecer...há qualquer coisa para acontecer. Saiu-lhe esse murmúrio da boca sem dentes. A língua para a frente e para trás enrolando as palavras. Sentiu o pé, ou o dedo grande do pé esquerdo a levantar e a baixar. Um tique taque de batimento para cima e para baixo. O sangue a começar a circular nas veias frágeis, esse formigueiro de minúsculas entidades rítmicas ainda que sem melodia. Como se marca o ritmo no silêncio. Levou a mão ao peito, muito devagar batia ainda vivo. De vez em quando auscultava-se para saber se ainda lá estava. Hábitos. E o pé continuava como um ponteiro dando a volta ao mostrador. Tinha visto apenas uma vez um aparelho desses que media o tal do tempo. Um viajante que ficara por um noite. Falara de terras estranhas, comera, bebera, dormira e por fim havia dito adeus. Trazia atado ao bolso um desse aparelhos. Recorda-se de nessa madrugada ter-se levantado para estar a olhar para essa coisa. Enquanto todos dormiam observava uma coisa que se movia a ela própria sem o amanho das mãos, sem a corda dos animais, sem a força do sol e das luas. Uma seta muito fina ia saltitando ritmicamente numa volta repetindo-se e repetindo-se, sempre igual a si mesma. O viajante explicara que media horas, minutos e segundos. Ela perguntara para quê e ele não lhe soubera responder, qualquer coisa como lá os homens inventaram isto porque acharam que era preciso. E era preciso para quê? Para medir o tempo...Também não sabia muito bem o que era o tempo mas eles que certamente tinham estado com os mestres, lá saberiam. Essa palavra ela não a conhecia, aqui falava-se de ciclos, de sol e de luas, de novo e velho, de barriga e de sementes. As coisas da terra não precisavam de palavras estranhas para se sucederem. E o pé continuava autónomo a marcar o ritmo. Tentou para-lo, não foi capaz. Essa impotência deixou-a inquieta. Talvez fosse o fim a chegar próximo. Talvez fosse essa tal da alma a despegar-se do seu corpo. Procurou levantar-se e a perna estendida continuava a bater com o pé no chão. Arrastou-se com a ajuda da bengala até à porta. Entreaberta a noite começava a cair e logo a escuridão dos montes traria o sono. E se não conseguisse dormir? E se o pé continuasse a bater por mais dias e noites? Suspirou. Recolheu a perna para debaixo do banco e voltou ao lume a comungar o mistério. Pela primeira vez desde há muitas estações sentiu a falta de outro alguém. Um filho, um neto ou o próprio marido haviam de ter uma explicação, talvez mais os netos que sabiam mais coisas novas. Apertou o xaile e baixou o olhar, estava cansada desta agitação. O pé agora escostado ao pé do banco começava a emitir um toque diferente da madeira a estalar, toc toc toc...em breve esse som seria uma tortura perpétua. Seria isso o tal do tempo? A seta que circulava o mostrador fazia um toc parecido. Parecido com o gotejar no canto da casa de pedra num dia interminável de chuva, parecido com a ideia do poço revirado do avesso batendo no tampo metálico, a massa da água repartida em gotas de pedra. Parecido ainda com a ideia de uma estrela a batucar no tampo do céu, ou alguém batendo sem parar na sua porta. As ideias começaram a disparar na sua cabeça de forma atabalhoada e confusa, muitas ideias, demasiadas ideias para uma cabeça agora habituada ao sossego. Talvez os outros tenham inventado o tal do tempo para se entreterem de ideias parvas...talvez o tal do tempo precise de ideias que o entretenham. Essa coisa era para si agora uma entidade exterior e autónoma. Possivelmente mais forte que o sol ou a corrente do rio ou as fases da lua. E a sua ideia ia crescendo tomando formas bizarras de coisa real. O maldito pé não parava quieto. Seria quieto o oposto do tempo? E quando muitas outras ideias continuavam a juntar-se às anteriores eis que a sua pálpebra começa a tremelicar, uma pulsação rítmica começa a bater-lhe no olho, desconexada do batimento do pé. Pendular de vai e vem, repetindo-se assustadoramente fora do seu controlo. Levantou-se arrastando-se ao espelho. Há muito que não se olhava. O olho não tinha nada de errado tirando a pálpebra que continuava a palpitar. Sentiu desespero, vontade de começar a chorar, não compreendia o que estava a acontecer e o olho era ainda mais incomodativo que o pé. Saiu pela porta em direcção ao riacho. Levou as mãos à água e lavou a cara. Tinha esperança de que a água limpasse a palpitação do olho. Mergulhou também o pé, estava fria, demasiado fria para o seu corpo frágil e velho, muito velho. Quando retirou o pé quase congelado da água começou a escutar um novo toc, uma espécie de toc mais ondulado mas também ele rítmico. Era agora a água a escorrer um terceiro som infernal de batimento. Dentro da sua cabeça os três sons badalavam pendulares perpétuos, a pálpebra batia no olho, o pé batia na água a água batia na própria água. Enterrou as mãos na terra húmida da margem e sentiu enervamento, seria um castigo? Alguma coisa lhe tinha escapado das suas obrigações de antes? Faltara alguma coisa aos seus filhos, aos seus netos, ao seu marido, á sua terra? Tudo o que pedia era para partir para se poder juntar aos da frente e nada, durante todas essas estações do depois, nada disso acontecera, nada de nada acontecera. E um último pensamento toma-lhe a cabeça...O tempo, eu não conhecia o tempo...agora o tempo castiga-me de tempo..Embora antes esse tal tempo já existisse sem que o soubesse, agora conhecia-o porque o sentia, era como se lhe espetassem agulhas na cabeça e uma dor muito profunda e insuportável de impotência tomava-lhe todos os sentidos. As pulsações, os ritmos todos batiam mais alto que o pensamento, batiam tão alto que a ideia proibida tomou-lhe a cabeça. Era a única proibição que conhecia: o fim. Atendendo a que estaria já no maior castigo que podia conhecer, esse estado de insuportável ruído dentro da cabeça, pensou que nada haveria de temer atirando-se por isso ao rio sem qualquer intenção de nadar.
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