quinta-feira, 19 de março de 2020

Para Eva: Arcturo


estas são as suas memórias da cidade natal
um processo de devaneio diluído
num espírito agitado em pleno Inverno
há uma brancura de pérola encantada
o vento despoja e fustiga a alma
e os grandes plátanos convalescentes
aguardam nessa ilha retiro dos topos
o homem procura a cura na recordação
dorme sossegado na senda do passado
como a sua flora o imaginário é paranóia
vive-se no promontório escavado pelas trevas
longe da calmaria calcária da infância
os insectos cruzam o abandono das medinas
amantes simbólicos do voo da solidão
e o relento do asfalto das grandes vias
agora fracturado por nuvens ácidas
pinceladas de caos aqui e ali
uma capa feita de sombras que revestem a ausência
as imagens revestem-se de electricidade estática
a carne inflamada pede a nudez áspera do sol
esse melancólico astro de distância
nos lábios uma sede de gozo e desejo
segredos entreabertos de aromas de cânfora
esta é a noite que recordamos com mais dor
o primeiro rasgo o primeiro sopro
cadências de fluídas garatujas para um fundo cinza
os primeiros rasgos de um sorriso para logo se desvanecer
na perturbada agitação de um fundo doentio
para cair como sombra sob a terra
recorda-se que os homens não caminhavam
antes rastejavam levados por trelas com picos
esganados perfurados para sem vontade
cumprir um destino
recorda-se que foi capaz de subir ao extremo
das suas próprias feridas
o mar um enorme cronógrafo de espelhos
ao longe nesse horizonte linha fervente
um frontão de ilhas também elas desabitadas por dentro
a vida uma flor mutante de transplante
e um olhar metálico corroído
não sabe se feliz se infeliz, nebulosa perda
persianas cerradas para uma paisagem estival
e tão rico esse consolo de estar à deriva
e mesmo o alívio de não haver plano algum
recorda-se, o silêncio activo da mão de deus
a essência sem forma, de um homem vulgar
porque haveríamos de ferir o seu lugar
aponta o extremo norte essa estrela
qualquer coisa que se vai desfazendo dos seus modelos vivos
reconhece o compromisso de girar com esse corpo
no seu hálito, nos seus ossos, nos seus músculos
ressuscitar-se para se transmutar em arte
que se virá a mesclar tranquilamente no restante, nada


tranquilamente em nada




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