terça-feira, 17 de março de 2020

uma carta mais ou menos fatalista


como se fosse um castigo uma peste uma longa paragem
como se a arma do soldado enferrujasse e as balas fossem ar
só o globo não parou ainda de girar
lentamente todas as portas se fecham como um fade out
e o desespero do isolamento ou pior de futuro incerto
de repente, tudo muda para todos, quando sem licença a noite
penetra nas casas de janelas fechadas e portas trancadas
o ritmo fica mais lento e mais doloroso
o homem sem trabalho perde o seu propósito
a sua hora mais feliz foi sempre ontem
e a sua liberdade cai lhe então ao colo para ser embalada pelo choro
com aquela réstia de esperança de ser já amanhã
amanhã ou próximo do depois, que tudo voltará a ser como dantes
mas dantes, não se dava pela liberdade
era assumida como um bem adquirido à nascença
pelo menos para alguns habitantes deste habitáculo desgovernado
- vês aquela ravina no chão? é uma cova que deixei para o amanhã
- e aquela garrafa vazia? é o esquecimento que não deixei para depois
- e aquele canto do quarto? é o berço que não cheguei a comprar
Vamos passar muitas horas juntos...e entre nós e as palavras haverá silêncios
e horas de choro marcadas para chorarmos à vez, ora no quarto ora na sala
e abraços de esperança, ainda que de mentira ou apenas de consolo
vamos aproveitar todas as horas como se estivéssemos numa espécie de pausa estranha
horas que podemos aproveitar mas dentro de um relógio maquiavélico de clausura
imagino agora de uma forma mais concreta como será estar preso
ou como seria ser controlado por um exército, ou como seria observar o céu
aguardando e rezando para que a próxima bomba não nos caia em cima
imagino de uma forma mais concreta o que sentem aqueles que nunca puderam
conhecer o mar ou a terra vizinha ou outra vida
imagino porque calculo que a natureza seja rebelde e que o Homem seja perfeito
a criar as suas próprias ratoeiras, os seus próprios enterros
quando o estuque do tecto tremer porque lá em cima já não se podem conter
quando todos saltarem à rua porque têm fome ou dor enferma de espírito
imagino então que o precipício será o chão
imagino que nalguns corações estejam a agonia de fugir e correr para os braços do outro
imagina que nalgumas cabeças de criança o mundo tenha de repente deixado de ser, cor de rosa
imagino que de dia para dia muitos pensares farão de nós um ser confuso e mais perdido
como um soluço que atravessa o discurso ou uma gaguez inesperada de fluidez
e que no meio desta caótica barca, alguns caiam ao mar
mas imagino sobretudo que sairemos melhores seres desta batalha
que amanhã nesse tal amanhã do depois
mais se valorize o sol, a família, o amor e sobretudo, a liberdade
- metidos dentro de um uniforme com as mangas demasiado compridas, esta guerra servirá aos vivos
para se alongarem como para além de vivos, seres.


E porque nós temos muito mais força do que aquela que imaginamos
imagino que deste suspenso estar, vamos aprender a dançar







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