terça-feira, 17 de março de 2020

pontes de singularidade


Tinha os pés cozidos da terra, do sol, do caminho sem pontes, casas ou destino
a centelha da vida soprava ao nível das searas laranja que já iam alto bem alto
o filho do ladrão podia apenas correr sem meta, uma barca sem lemes
para chorar por uma terra bem amada, que só podia agora ver desaparecer
o filho do ladrão roubou a vida, no íntimo furor sem náusea
procura encontrar a pousada da eterna felicidade de víbora na mão
o garoto, filho, uma vez mais, de um assassino
e os bichos de sentinela inútil espreitam para que comece uma nova vida
caleidoscopiana rodopiada agitada para o ácido esquecimento de um novo nada

o acaso trouxe-o aos olhos de um poeta encerrado na sua pequena cidade de cal
foi no cair de uma tarde de verão quente, passou acossado como se não fosse gente
seguiu com os seus olhos de poeta amortizados por uma dor incerta
pegou no lápis e no caderno, assomou-lhe rimas ao coto das calças, às pontas esgrenhadas
de um cabelo piolhoso e aventado ao pescoço
olhou o garoto, olhou o horizonte, olhou as pontes invisíveis que agora os uniam
como um mistério absoluto de notas que ainda não adivinhavam uma melodia coerente
os passos eram lentos e doridos e mais ainda perdidos
o poeta levantou-se para contornar a esquina com ele
salpicando de contrafortes a sua sombra
via-se o fundo, que podia levar muita lágrima, um fundo vago de extenso
o garoto era uma paisagem vista por dentro
de embate e resistência o corpo bronzeado tal um barco ao sol estalando
parou, sentou-se numa pedra, buscou no bolso uma fisga, procurou um alvo
quando contornou as suas costas, o poeta a poucos metros sentiu-se transparente
como se o garoto não apontasse a si gente
o elástico esticou e a pedra atravessou o peito para bater no tronco de um eucalipto
lá do alto nem um arrastar de ramo nem uma folha caída
o garoto suspirou de fastio e o poeta chorou de vazio

virou a página, havia um sitio no leito do rio que lhe queria mostrar
que em muitos anos pouco mudara
era um lugar de restauro ou resguardo para o assalto das manhãs
que baloiçavam como uma arma sem depois
um baloiço de movimento perpétuo sem corpo
os lábios moveram-se mas foi o dedo que apontou no extremo da vista
-quem me dera ser aqui sepultado - disse de pulmão dilatado
num fundo sem alento os ombros magros com as orelhas desapegadas
e uma sujidade mundana de fartura
- não molhes a barriga porque enferruja
O garoto levou os pés ao rio para aliviar o ardor e o poeta levou a negritude à água

Numa atmosfera singular, o poema nasceu



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