sexta-feira, 20 de outubro de 2017
Tempe - esse vale ameno
andam os pássaros enfeitiçados
melhor do que ninguém
na grande linha dormem tranquilos
vendados imortais aos tiros da obscuridade
feitos de gestos e delicadezas
inspirando o dia de proeza e significados
o voo das coisas pequenas
na sombra dos grandes telhados
à luz trémula dos raios dos homens
que importa a verdade exacta?
a memória muda a cor do tempo
as garras religiosas dos solos
que nos atraem à cova severa
o horizonte limitado da terra
as sebes dos campos já lavrados
de quem não conhece o feitiço
da orla do mar, dos areais primitivos
que os arados egoístas dos homens
rasgaram em farrapos de tristeza
desaparecer levado do sopro
desaparecer numa espécie de baldio
materializado no sonho da garça
no conforto físico das suas patas
lançar gritos no seio da noite
no ataque nocturno das almas
o suspiro que resta depois do asilo
do corpo abandonado noutro corpo
viajando na embriaguez de tudo
minutos antes do crepúsculo
os caminhos corredores do espírito
grosseiro sem eira, um covil de dor
o olhar franco da felicidade completa
trotando contra o grande enigma
das esporas que fazem o girar do dia
ao nascer do sol de inverno
dos reflexos de sangue no céu
um hino ao voo eterno
quinta-feira, 19 de outubro de 2017
o corvo mergulha no abismo
o corvo mergulha invertido
no fundo observa a vida na sua abstinência
ao chão duro, a tudo o que já não é puro
é com toda a serenidade que aceita a tristeza
cada ramo volátil de natureza
e é confortável e quente, como a cinza que fica
para a abstracção solar, para o rastreio de vento
é o espaço que está entre tudo
a pasta que solidifica a pele
depois do encarnar das trevas
a projecção do coração humano
a sombra nutrida do devaneio
ou a metáfora do ângulo morto
o momento traçado altissonante
aliado a uma hipérbole vibrante
insurrectos seremos sempre escravos de afecto
emancipado o andamento desmesurado
banirmos do exílio o passado
a destruição dos teares da morte
e vagar pelo mundo dos vivos
avatares de Prometeu
da fuga dos doentes de engenhos
perdidos nas brumas da metrópole
ou na ficção do átomo isolado
para esse vórtice oracular da vigília
contra a alvura fantasma de uma vida
para a arte do alto voo do incógnito
tudo memorandos de imagens titânicas
descritas pelo voo horizontal ao abismo
o corvo mergulha
o corvo mergulha invertido
traz de volta aos vivos
a paz dos mortos esquecidos
quarta-feira, 18 de outubro de 2017
nossa senhora
a semente caída do aperto
dos parapeitos das janelas
dos maquinismos da infância
da água que ultrapassa o seu nível
para o dia de expansão
à execução da fadiga
dos dias sem aurora
para o transbordar de relevos
onde o peito arfando de fogo
se demora sempre de tão negro
contra aquela janela aberta
onde não chega nem calor nem frio
moramos em lapsos de impaciência
para a asfixia do grande reboliço
-havia entre nós alegres demónios
ora para dentro ora para fora
como as velas que se acomodam ao vento
versículos irados em voz baixa
"um mistério...um mistério..."
tomando o seu lugar o dia sereno
nada absolutamente nada
uma represa que se abre ao espírito
voar por cima das pontes
onde as lágrimas já lavaram a tristeza
e entre nós nessa espécie de tecido
esse sofismo de tudo o que é bonito
como as velas que se acomodam ao vento
tudo caído do aperto do fio do novelo
da primeira ponta do mundo dor
mundo das coisas humanas do amor
tocaríamos a terra mais de perto
com o gozo do sentir-lhe o tecto
graças ao céu e ao inferno
sabemos que estamos sempre por perto
tropeçar na felicidade como um pormenor
cujo passo maior que os nossos pés
e beber desse cálice de amargura
até sentir as borras na língua
para o anunciar estridente da loucura
terça-feira, 17 de outubro de 2017
uma casa de pedra
raro sumido pouco a pouco
o amor cresce dentro das casas
arquitectural
no caos das paredes
a divisa dos afogados
afogados dentro das casas
mas que casas!
pedras esculpidas do calvário
sombrias estreitas profundas
ruínas muros de desabafo
de pé, alto e isolado
o sonho arado
o chão abatido
dos campanários da escuridão
dos profanados telhados velhos
torres menores arcanos arcanjos
torres pontiagudas que não dão repouso
o batucar do encaixe calcário
falas ao longe de um calão mundano
o tilintar de uma era que chega ao fim
e o buraco olímpico do submundo
cada vez mais aberto
pancadas de mais forte
amortizar as pedras e o chão que é mole
um trapézio firme e denso de raios de sol
à medida que o descrevemos no espírito
na caligrafia dos agachados
dos que cumprem promessas de joelhos
para que a cidade se cubra de tapetes
de calos, de dor, de sacrifício e esplendor
em breve tudo será cinza e gesso
essa antiga cidade que trago
mais as portas que os telhados
mas os telhados, de novo os telhados
jardins e monumentos de anjos vedados
pegadas de um gato atravessado
preces, orações, o desespero do habitáculo
não era apenas uma cidade
foda-se..agora partir isto para que encaixe
cada pedra que nasce é livre
depois as mãos dos homens
a picareta, o martelo, a força
o riso diabólico do trabalho
ai que caralho, foda-se, a pedra é dura
o grande génio da arte da rua
o sabor do remédio na boca
do suor na roupa
a tosse que anuncia a chuva
crianças que brincam na beira dos passeios
risos, pedaços feios de vida
crianças que cresceram calceteiros
dos arabescos dos seus cantos góticos
o nevoeiro levantado desfigurado
pelo dia em que deixou de haver passado
as paredes ardósias de palavras
sussurradas pelo tricolor das fachadas
vibrando figuras em relevo numa cova
o desprezo por quem parte o objecto
para cobri-lo de pancada
distanciam-se-me os pés
os passeios são linhas de um engenheiro
os passeios não sofrem de poesia
eu sofro do que cresce pelo chão
que me sobe pelas pernas ao sexo
a cidade pornográfica deste corpo
raia, limite, renascente
partida e torcida
foda-se, parecia um acordeão
as costelas em fole abrindo fechando
ao toque da minha mão
a poesia escorrendo
abatendo-se sobre o chão
a clarabóia do labirinto
onde contorcido me abato
e nada passo de um buraco
lá fora estão agora calados
amanhã, amanhã a cidade continua-se
de orgasmos de abismos
por agora, os calos sangram
e o amor cresce dentro das casas
um monumento puro e efémero
tal como as calçadas
duma cidade que ainda trago por dentro
quarta-feira, 11 de outubro de 2017
o espírito em visita
a paz dos claustros vazios
dos vivos deambulando
ossos de um fiel cão de arrasto
salmos de solidão
para fomes vulcânicas adormecidas
andam as trevas da extensão
débeis de tanto quererem
o aparelho da madrugada dos homens
o antídoto ao desamparo
para o pó dos dias
e o tempo demora-se
no bico de aves do frio
o corpo febril de lágrimas de cimento
o que escorre agora é a chuva do entorpecimento
e as manhãs nascem do livre arbítreo
revolvendo os espíritos no seu zelo
se a brandura não conhecesse o teu olhar
as mãos adagas com que me afagas
ou a saliva com que me afogas
quando terminam todos os salmos
e as aves abandonam os nossos telhados
o dia não é mais a extensão da noite
porque o caminho de volta se conhece
o medo aperta-nos as mãos
o monstro desaparece das trevas
a angústia de te encontrar na escuridão
que sempre tardou a ser completa
e os passos percorrem as salas
pintados de fresco avidos sangrentos
as criaturas desprendem-se das paredes
e falam tão alto que não as compreendes
a privação do sono, da fome, do sexo
quase submetidas ao fenómeno do sonho
e do olhar fixo dos objectos do mundo
a cabeça é um simulacro da existência
o esqueleto de um homem no centro
uma luz azulada progressivamente
vozes de crianças veladas de véus
e flores e pedaços delgados de dor
não mais humana que essas mesmas
paredes, de claustros de células e veias
e tudo isto é viver e morrer
e tudo isto é triste e belo
sexta-feira, 6 de outubro de 2017
na voz do espírito
um único latido
de morte desse pobre animal
a monte, sem o afrouxar dos passos ao nada
os tapumes lavados de sangue
acariciar o animal moribundo que deambula
nas horas bravas cruzadas na verticalidade
esse animal que lamenta nunca ter visto o mar
nem a brutalidade das ondas contra o peito
sentir o sofrimento dele
uma hemorragia incontida
uma árvore acorrentada pelas suas raízes
uma concha vazia
que passa de mão em mão na surdina
sem o despertar dos sentinelas
das faculdades de atravessa-la no silêncio
a noite suspensa numa forca de dor vaga
pagã, enquanto respira o instante valado
em todo o olhar um banco de praça
ou uma porta de igreja
de olhos fixos na terra
oiço cigarras nas cidades
e cães mortos a sangue frio
no abandono de dono algum
terça-feira, 3 de outubro de 2017
os cães uivam desafogados
o dia é salvo
os cães uivam desafogados
em todas as esquinas os beijos ficam desamparados
no choro das cordas que vibram
há nesta rua um candeeiro que se apaga
de hora a hora
porque não me encontras na escuridão?
um país que se podia atravessar a pé
às vezes sinto que esta não é a hora
de se escrever um poema, ou dizer-se
o que fica por dizer, entre nós
que não são lugares, nem paredes
ou luares
a sombra, a cal
uma lanterna que carregas nas mãos
com a doçura das ruas onde foste
eram pequenas, mistério, desejo
onde corrias descalço sem o anseio
um dia qualquer dia acordares
eram pequenas, as mãos que encontravam no sexo
nos lábios nas costelas do peito
uma mulher que de outro jeito
andaria de triciclo, a cavalo, numa vassoura
estas palavras que atravessas de salto
as ruas nunca seriam só minhas
mastiga-las no vazio
transbordar-se de felicidade
porque há um eco, uma outra voz
que nos diz que:
não se pode esperar a morte antes dela
existir
que mais pode o passado
mas nós ainda não chegamos
e quando todas estas palavras não dizem nada
quero pedir perdão, absolvição
quero olhar-te na paz de não nos cobrarmos
já pertencemos, já fomos, já nos amámos
é só uma parte não iluminada que por agora
nos quer desesperada
a escuridão tem fome do nosso desespero
todos os dias são de luto
já foram e continuarão a ser a morte dos que vivem
em absoluto
um dia, retirar de nós os momentos que nos condenam
constelações que nos absorvem de céu negro
é só um sol que nasce fresco e liberto
de qualquer outro intuito
é só um sol que nos olha de outro jeito
porque lhe rejeitamos a luz
de continuar, de nos continuarmos
desalmados desafogados
segunda-feira, 2 de outubro de 2017
memento mori
um cigarro pendido no cinzeiro
a fera que arde lentamente na mortalha
há no peito um extractor
porque para dentro se carrega
toxinas de um desnível que o mundo
visível rasteiro não conhece
e a pele toma uma força metálica
a ferrugem para o restauro dos pilares
do grande grito da fúria
ou da cinza que cai no vaso
criaturas minguadas depois de ardidas
espirais de fumo
aos comandos
sentimentais sem rumo
o antídoto cristalino giratório
para a cadência em crescendo
para a surpresa da hora
de sentir cada dia mais vivo
abruptamente
rebentam à superfície
notas incandescentes dislexicas
compreender estupidamente essa hora mágica
a língua sucumbida aos travões da vida
para retirarmos do substrato mais
e sempre mais profundidade de um buraco
há uma pauta magnética no corrupio das almas
que não nos assenta
e os dedos calejados, de amarelos doentios
não trazem o cigarro à boca
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