terça-feira, 17 de outubro de 2017

uma casa de pedra


os dias calcetados de gesso
raro sumido pouco a pouco
o amor cresce dentro das casas
arquitectural
no caos das paredes 
a divisa dos afogados
afogados dentro das casas
mas que casas!
pedras esculpidas do calvário
sombrias estreitas profundas
ruínas muros de desabafo
de pé, alto e isolado
o sonho arado 
o chão abatido
dos campanários da escuridão
dos profanados telhados velhos
torres menores arcanos arcanjos
torres pontiagudas que não dão repouso
o batucar do encaixe calcário
falas ao longe de um calão mundano
o tilintar de uma era que chega ao fim
e o buraco olímpico do submundo
cada vez mais aberto
pancadas de mais forte 
amortizar as pedras e o chão que é mole
um trapézio firme e denso de raios de sol
à medida que o descrevemos no espírito
na caligrafia dos agachados
dos que cumprem promessas de joelhos
para que a cidade se cubra de tapetes 
de calos, de dor, de sacrifício e esplendor
em breve tudo será cinza e gesso
essa antiga cidade que trago 
mais as portas que os telhados
mas os telhados, de novo os telhados
jardins e monumentos de anjos vedados
pegadas de um gato atravessado
preces, orações, o desespero do habitáculo
não era apenas uma cidade
foda-se..agora partir isto para que encaixe
cada pedra que nasce é livre 
depois as mãos dos homens 
a picareta, o martelo, a força
o riso diabólico do trabalho
ai que caralho, foda-se, a pedra é dura
o grande génio da arte da rua
o sabor do remédio na boca
do suor na roupa
a tosse que anuncia a chuva
crianças que brincam na beira dos passeios
risos, pedaços feios de vida
crianças que cresceram calceteiros
dos arabescos dos seus cantos góticos
o nevoeiro levantado desfigurado 
pelo dia em que deixou de haver passado
as paredes ardósias de palavras 
sussurradas pelo tricolor das fachadas
vibrando figuras em relevo numa cova
o desprezo por quem parte o objecto
para cobri-lo de pancada

distanciam-se-me os pés
os passeios são linhas de um engenheiro
os passeios não sofrem de poesia
eu sofro do que cresce pelo chão
que me sobe pelas pernas ao sexo
a cidade pornográfica deste corpo
raia, limite, renascente
partida e torcida
foda-se, parecia um acordeão
as costelas em fole abrindo fechando
ao toque da minha mão
a poesia escorrendo
abatendo-se sobre o chão
a clarabóia do labirinto 
onde contorcido me abato
e nada passo de um buraco

lá fora estão agora calados
amanhã, amanhã a cidade continua-se
de orgasmos de abismos
por agora, os calos sangram
e o amor cresce dentro das casas
um monumento puro e efémero
tal como as calçadas
duma cidade que ainda trago por dentro


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